Responsabilização pelos danos decorrentes do direito de greve

AutorJoselita Nepomuceno Borba
CargoProcuradora do Trabalho, aposentada. Mestre e Doutoranda pela PUC-SP
Páginas278-307

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Introdução

O presente trabalho tem por escopo analisar a possibilidade de se imputar responsabilidade ao sindicato pelo exercício do direito de greve.

O tema é desafiador, porque a greve se traduz em uma importante conquista social do trabalhador, direito de solidariedade de terceira geração, reconhecido como uma das primeiras garantias fundamentais do cidadão--trabalhador, pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Além disso, porque o próprio exercício do direito de greve, que importa em sacrifícios mútuos entre partes envolvidas no conflito e até entre terceiros, convive com outros direitos e garantias legais e constitucionais, que se constituem, na mesma medida e extensão, direitos fundamentais.

Isso significa que o exercício desse direito encontra limites na ordem jurídica, seja resultante do próprio conceito de greve, seja do choque com outros direitos fundamentais.

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Além disso, quando se volta ao sistema jurídico interno percebe-se que o nosso sistema é anômalo, por se assentar a organização sindical parte no sistema corporativista e parte no sistema de liberdade sindical, o que dá ensejo, em muitos casos, à existência de sindicato com baixo índice de representatividade ou mesmo sem representatividade alguma.

Ultrapassada a fase de dificuldades enfrentadas pelo sindicato para sua afirmação como um direito fundamental, persiste agora o desafio de se compatibilizar e conciliar interesses de classes de trabalhadores, unidos por sentimentos de solidariedade, na luta por seus interesses e direitos e a repercussão dessa atuação em rota de colisão com os do empregador, amparado pelo princípio constitucional da livre iniciativa, e a repercussão perante a sociedade, notadamente no desempenho de atividades e serviços essenciais para a população.

O direito de greve encontra regulamentação na lei brasileira. Seu exercício não leva à responsabilidade. Tão somente desvios e excessos no exercício do direito fundamental de greve sujeitam a pessoa jurídica, seus órgãos ou representantes a responderem, conforme o caso, no campo do direito civil, trabalhista e penal.

Para se chegar a tal conclusão, necessário investigar, ainda que, em linhas gerais, o instituto da responsabilidade, a evolução do sindicato e a consolidação do direito de greve como garantia fundamental e, por fim, a possibilidade de se imputar responsabilidade ao sindicato e seus dirigentes.

O objetivo do trabalho é, portanto, a tentativa de construção jurídica do instituto da responsabilidade do sindicato no exercício de uma de suas funções essenciais: a greve.

1. Responsabilidade

Pelo núcleo do objeto de investigação, não há necessidade de se colocar em evidência a questão da responsabilidade em si ou centrar a atenção na atividade sindical, mas, acima de tudo, pensar na relevância da liberdade sindical como um dos primeiros direitos do homem, como ressalta Renato Rua de Almeida1, reconhecidos pela OIT2 e a responsabilidade

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do sindicato no desempenho da ação coletiva, em consequência, a necessidade do reto desenvolvimento da função para se chegar à efetividade do direito fundamental de greve, inclusive nos serviços essenciais.

Liberdade pressupõe responsabilidade, de sorte que, por mais relevante que seja a função desempenhada, se se evidenciar desvios no desenvolvimento da atividade, a conduta antijurídica sujeita-se, como qualquer outra na iniciativa pública ou privada, à correção e à responsabilidade.

É certo que não se evidencia tarefa fácil imputar responsabilidade ao sindicato, por sua essência e natureza, principalmente no sistema jurídico brasileiro, onde o ente associativo preserva ainda traços do corporativismo3.

Ademais, nessa fase de desenvolvimento do princípio doutrinário do ordenamento coletivo, é inexpressivo o estudo do instituto da responsabilidade sindical e, em particular, a responsabilidade pela execução do direito de greve.

Alie-se a isso, ainda, a falta de desenvolvimento da jurisprudência e a ausência de sólida doutrina sobre formas de responsabilidade do sindicato,

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o que contribui para tornar tarefa muito difícil a tentativa sistematizar jurídicamente o instituto.

Por isso, o melhor método vislumbrado será examinar o instituto da responsabilidade, situar a questão sindical no sistema jurídico nacional, destacando fundamentos lógico-jurídicos para a responsabilização do sindicato pelos danos decorrentes do direito de greve.

1.1. Responsabilidade em geral

Em geral o conceito de responsabilidade está conectado sempre com o conceito de norma. E a responsabilidade nasce exatamente de um comportamento contrário à norma, ou seja, do que é vedado. Nas precisas palavras de Vittorio de Giorgi4, "a norma põe uma linha de conduta, a violação dessa norma produz responsabilidade". Evidencia o citado jurista que o conceito de responsabilidade é, assim, em primeiro lugar, um conceito essencialmente relativo. E assim o é porque são dois conceitos intimamente conectados: a regra, disciplina de relações humanas, é obrigatória para os indivíduos envolvidos; a obrigatoriedade manifesta-se precisamente na responsabilidade pela inobservância dela5.

Assim, na síntese do jurista italiano, "subjetivamente considerada, responsabilidade é obrigação do autor da violação de sofrer consequência posta pela sanção para efeito da violação mesma"6.

Por isso, com base na doutrina italiana, conclui-se que a norma é pressuposto de responsabilidade e a responsabilidade é o complemento e a integração da mesma norma.

1.2. Responsabilidade jurídica

No iter evolutivo da sociedade, inicialmente, a única responsabilidade era a religiosa, nesta compreendida a moral e a jurídica, ante a confusão reinante entre direito, moral e religião. Mas, em um processo de diferenciação, destacou-se a responsabilidade jurídica, na medida em que ganhou foro de cientificidade a ciência jurídica. E a responsabilidade jurídica se diferencia também da responsabilidade política, não pela substância intrínseca do critério de avaliação, mas pela forma, vez que a norma advém

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de fonte (estatal ou contratual) e é revestida de caráter coativo, o que caracteriza o fenômeno jurídico.

A responsabilidade jurídica deriva da violação de uma norma jurídica e, como acentua Vittorio de Giorgi, "pressupõe necessariamente uma 'injúria', uma ação ou uma omissão, isto é, que violando uma norma jurídica, viole direitos humanos em que o seu objeto queria conceder jurídica proteção"7.

São, portanto, dois os elementos da responsabilidade jurídica: um elemento objetivo, traduzido pela violação da norma jurídica, ou seja, um comportamento contrário ao direito; um elemento subjetivo, a presença de uma parte, um sujeito imputável, e a condição necessária para a aplicação da sanção. Existe no sujeito que praticou o ato ou a ação contrária à norma condição necessária para aplicar-lhe a sanção, evidenciando-se capacidade de valor, de agir e culpa8.

De fato, a lei civil comum9 adotava o sistema da responsabilidade com base na culpa, mas o atual Código Civil adota dois sistemas: responsabilidade civil objetiva e responsabilidade civil subjetiva. Todavia, o sistema geral da lei civil é o da responsabilidade subjetiva, que se funda na teoria da culpa. É o que se verifica da letra do art. 186, do Código Civil, de 200210. Assim, para que haja o dever de indenizar é necessária a presença dos seguintes elementos: dano, nexo de causalidade entre o fato e o dano e culpa lato sensu (imprudência, negligência ou imperícia) ou dolo. Ao lado desse sistema geral, previu o legislador sistema excepcional, da responsabilidade objetiva, que se funda na teoria do risco. Para que haja o dever de indenizar, nessa hipótese, não se perquire sobre a conduta (dolo ou culpa) do agente, mas sim sobre a existência do dano e do nexo de causalidade entre o fato e o dano. O elemento subjetivo da conduta fica relegado em face do risco da atividade do agente que, por sua natureza, implicar risco ao direito de outrem ou do que determina a lei11. Tal exceção à regra geral está positivada no parágrafo único do art. 927 do Código Civil12.

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Ao lado desses dois sistemas de responsabilidade, lembram Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery13, que existem outros subsistemas destes derivados, que se encontram tanto no Código Civil como em leis extravagantes14.

Afinal, como enfatiza Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, a "responsabilidade nada mais é do que o dever de indenizar o dano, que surge sempre quando alguém deixa de cumprir um preceito estabelecido num contrato, ou quando deixa de observar o sistema normativo que rege a vida do cidadão15.

Poderia, ainda, o instituto ser compreendido numa extensão mais vasta, como hoje se delineia no cenário jurídico brasileiro, dimensão esta, na síntese de Álvaro Villaça Azevedo, citado por Giselda Hironaka, consistente na "a aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar o dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de um ato por ela mesma praticado, por pessoa por quem ela responde, por alguma coisa a ela pertencente ou por simples imposição legal"16.

1.3. Formas de responsabilidade

Se sistemas de responsabilidade despontam da regra da lei civil (CC arts. 186,187 e 927 e parágrafo único), várias são as espécies de responsa-

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