Responsabilização no direito societário de terceiro por obrigação da sociedade

AutorVinicius Jose Marques Gontijo
Páginas86-98

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1. Introdução

Conforme muito bem demonstrado por Osmar Brina Corrêa-Lima,1 dois são os princípios capitais que orientam a vida das sociedades: (a) as pessoas jurídicas têm existência própria e distinta da dos seus membros e (b) o património da sociedade e o de seus membros não se confundem.

Do somatório desses dois princípios surte "o efeito benéfico de encorajar o aparecimento e estimular o desenvolvimento da empresa privada nacional".2

Assim, via de regra, o património da pessoa jurídica é que, exclusivamente, deve responder por suas obrigações. Há, no entanto, casos em que a lei excepciona isso, autorizando que, por ato de vontade dos próprios terceiros ou, então, por imposição legal, eles respondam com seu património por obrigação que seria exclusivamente da sociedade.

De fato, ao se examinar a responsabilização de terceiro por obrigações contraídas em nome da sociedade - pouco in-teressando se este terceiro seja sócio, administrador ou membro de conselho ou outro órgão social -, faz-se necessário compreender que ela poderá se dar, como decorrência da relação societária, de três maneiras diversas.

Primeiro, a responsabilização do terceiro pelas obrigações da pessoa jurídica poderá decorrer do tipo societário pelo qual se optou. Assim, os sócios podem, voluntariamente, optar por um tipo de sociedade em que todos eles respondam de maneira subsidiária, porém solidária e ilimitada, pelas obrigações da entidade; ou, ainda que nem todos os sócios da sociedade respondam pelas obrigações da pessoa jurídica, haverá um sócio ou um grupo deles que desta maneira responderá.

Segundo, a. responsabilidade do terceiro decorrente de ações ou omissões ilícitas praticadas em órgão da sociedade. Trata-se de responsabilização civil por dano.

E, finalmente, em terceiro, no caso de desconsideração da personalidade jurídica,3 com isso atingindo terceiros em relação à sociedade.

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No caso de despersonificação, quando se anula a constituição da sociedade por ação judicial própria (art. 1.034,1, do CC e art. 206, II, "a", da Lei 6.404/1976),4 não se trata propriamente de hipótese de terceiro responder por obrigação que seria da sociedade, uma vez que, anulada sua constituição, ela deixa de ter existência jurídica e, assim, naturalmente, não tem existência diversa da dos seus membros, assim como de seus administradores e outros membros - tratando-se, portanto, de responsabilidade direta dos próprios agentes.

2. Tipo societário

Sabidamente, a compreensão do termo "sociedade" enquadra-se em duplo vértice: a sociedade na acepção do instrumento de constituição, que pode ser verbal5 ou não, e a sociedade como efeito jurídico do instrumento que a constituiu.6

Tendo isto como premissa, constatamos a tradicional classificação das sociedades quanto aos efeitos jurídico-patri-moniais de sua constituição sobre as pessoas dos sócios que se obrigaram na sua instrumentalização.7

Por esta classificação, as sociedades se dividem:

- aquelas em que todos os sócios respondem de maneira subsidiária, porém solidária e ilimitada, pelas obrigações sociais - sendo exemplos desta modalidade as sociedades em nome coletivo e as sociedades em comum;8

- aquelas em que há um sócio ou um grupo deles que responde subsidiária porém solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais, enquanto que há, concomi-tantemente, outro sócio ou grupo deles que responde de maneira limitada - sendo exemplos desta outra modalidade as sociedades em comandita simples e as sociedades em comandita por ações; e, finalmente,

- aquelas sociedades em que todos os sócios respondem de maneira limitada -tendo como exemplos a sociedade limitada e a sociedade anónima, por ações.

Com efeito, normalmente os operadores do Direito se limitam a referir, quando fazem essa classificação, "sociedades ilimitadas", "sociedades mistas" e "sociedades limitadas", ficando subentendida a ex-

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pressão: "em que os sócios respondem de maneira". Não seria, mesmo, viável, tecnicamente, classificar as sociedades quanto às suas responsabilidades patrimoniais, na medida em que todas as sociedades respondem ilimitadamente por suas obrigações, tanto que podem ter sua falência declarada e todos os seus bens e direitos arrecadados para honrar seus compromissos. São os sócios que respondem, com ou sem limitação, pelas obrigações sociais.

Não podemos deixar de destacar a curiosa situação jurídica em que se encontra a sociedade cujo tipo seja o "simples". A sociedade tipo "simples" é sui generis, na medida em que ela poderá ser ilimitada, mista ou limitada, conforme houver prescrito o instrumento de sua constituição social. Isso porque o inciso VIII do art. 997 do CC determina que o contrato social mencionará "se os sócios respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais". Assim, ficará a cargo do instrumento de constituição da sociedade a fixação da responsabilidade dos sócios.

Naturalmente, sendo o contrato social omisso, prevalecerá a vontade legal, que não restou derrogada pela opção das partes (típico do direito privado); assim, todos os sócios responderão subsidiária porém solidária e ilimitadamente pelas obrigações da sociedade simples, na medida em que não teria sido afastada a prescrição dos arts. 1.023 e 1.024 do CC.

Dessa feita, tendo os sócios optado por um tipo societário que determina a responsabilidade subsidiária de todos eles ou de alguns deles, porém solidária e ilimitada, eles passam a responder pelas obrigações contraídas em nome da sociedade mesmo sendo terceiros em relação à entidade social.

3. Responsabilização

Além da hipótese de o terceiro responder pelas obrigações da sociedade por ato de vontade ao escolher o tipo societário, existe a possibilidade da segunda situação, que passamos a abordar, e que diz respeito à responsabilização civil do terceiro por" ação ou omissão ilícitas praticadas enquan-to membro componente de órgão social.

Naturalmente, sendo as sociedades entidades abstratas, na medida em que não têm existência física, elas necessitam de órgãos sociais a fim de direcionar sua con-duta, contrair obrigações, exercer direitos, se organizar, fiscalizar etc. Para tanto, estes órgãos são compostos por pessoas, às vezes necessariamente naturais, às vezes facultativamente, uma vez que se admitem pessoas jurídicas, fundações ou, mesmo, entidades despersonificadas, tais como o espólio e a massa falida.

Cada órgão social desempenha umâ função, e seus membros, nesta condição, são titulares das ações ou omissões na medida de suas competências funcionais. É claro que, no exercício regular da função, o membro que componha o órgão social não é pessoalmente responsável, o mesmo não se podendo dizer daquele que usurpa poder ou função de órgão social.9

De fato, em regra, os membros regu-lares dos órgãos sociais não são pessoalmente responsáveis por suas ações ou omis-soes; em exceção (= interpretação restri-tiva), eles serão pessoalmente, responsa- y bilizáveis se procederem de maneira ilícita e causarem dano. Neste caso, eles serão responsáveis não apenas em relação aos terceiros, mas também em relação à própria sociedade.

A responsabilização imputável ao membro de um órgão social varia de acordo com a especialização do órgão que ele esteja compondo. Contudo, as matrizes autorizadores da imputação da responsabi-lidade são semelhantes.

Com efeito, para que haja responsabilização do membro que componha um órgão social, a legislação admite que, veri-

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ficados a ação ou omissão ilícita, o dano, o nexo causal e, conforme o órgão, o dolo ou a culpa, surge o direito à reparação, a responsabilidade civil. Nesse sentido é a precisa lição que se extrai de Orlando Gomes:

"Se o dever de indenizar o prejuízo causado é a sanção imposta pela lei a quem comete ato ilícito, necessário se torna que o dano seja consequência da conduta de quem o produziu.

"Não se exige, porém, que o ato do responsável seja a causa exclusiva do dano. Basta que entre as suas causas responda pela que determinou o prejuízo imediato. Não é preciso, do mesmo modo, que o agente tenha previsto suas consequências.

"Indispensável é a conexão causal. Se o dano provém de outra circunstância, ainda que pela atitude culposa do agente tivesse de ocorrer, este não se torna responsável, uma vez que não há a relação de causa e efeito. Não basta, com efeito, que o dano pudesse sobrevir por efeito da conduta do agente, mas é preciso que se produza na realidade como consequência desta, e não de outro acidente."10

Caio Mário da Silva Pereira esclarece que para emergir a obrigação de indenizar é necessário o erro de conduta do agente (ou seja, atos ou omissões contrários ao Direito), a ofensa a um bem jurídico e, cumulativamente, torna-se "indispensável a sua interligação, de molde a assentar-se ter havido o dano 'porque' o agente procedeu contra o Direito".11

Como se trata de ressarcimento decorrente de dano, a responsabilização sempre tem caráter económico direto, diversamente do que se dá com a desconsideração da personalidade jurídica, que nem sempre o tem, necessariamente.

Em suma: para se imputar a um membro de órgão social uma responsabilidade e exigir-lhe a reparação respectiva é necessária aprova dos elementos integrantes da responsabilização, quais sejam: dano, ação ou omissão voluntária (ou seja: dolo ou culpa, por qualquer de suas modalidades)12 e nexo causal.

A ação ou omissão ilícitas autori-zadoras da responsabilização de membro componente de órgão social constituem um género que se compõe de duas espécies: (a) o ilegal, ou seja, contrário à lei; e (b) o ultra vires, que pode decorrer do...

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