Reserva Legal e Tipicidade

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas25-78

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1.1. Visão panorâmica do ordenamento jurídico e a inserção do direito penal (natureza jurídica e conceito) no contexto

É inegável o acerto da seguinte afirmação: o homem, como ser de natureza e feição eminentemente sociais, jamais pôde viver - e nunca viveu - à margem da sociedade.

Desde o início da vida social humana, no entanto, atos antissociais já eram praticados.

Disse a respeito Luiz Bispo:

"Se, verdadeiramente, o primeiro homem foi Adão, a primeira mulher Eva e os seus primeiros filhos Caim e Abel, muito teríamos de fazer para uma vida ordeira e pacífica. A primeira mulher, induzindo o homem inicialmente ao pecado, à mentira, ao descumprimento da ordem instituída, e o primeiro filho, assassinando o irmão, cheio de inveja, foram prenúncios de uma vida associativa carente de regramentos rígidos e bem definidos. Se a verdade é outra, como nos tenta ensinar a teoria da evolução, ainda maior seria o esforço do homem na criação de regras implantadoras de uma ordem social, dominadora da anterior ferocidade do animal"1.

Inicialmente, nos tempos de antanho, o convívio humano se estabelecia com relações circunscritas a núcleos bem delimitados, por isso mesmo determinados e fechados, constituídos principalmente pelos grupos familiares e os clãs.

O fortalecimento das relações e núcleos sociais dos tempos primevos, entretanto, foi-se erguendo e implantando. Esse espaço de relacionamento ampliou-se e tornou-se cada vez mais difuso e abrangente, de modo a culminar com o desaparecimento dos clãs e grupos para exsurgir um novo poder: o poder público ou estatal, com a formação de Estados e nações. Ensejou este desenvolvimento histórico que as relações, até então singelas e meramente pessoais, igualmente se estabelecessem com o Poder Público.

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Passou então o ser humano, por natureza social e comunitariamente agregado, a conviver num contexto de permanente troca de relações pessoais com seus semelhantes e o Poder Público. Mas nem sempre houve harmonia e equilíbrio nesse burburinho e turbilhonar de relações, nessa convivência social complexa, que por vezes se intranquilizava e conturbava, sofrendo comoções pelas próprias atitudes das pessoas, com o aflorar de conflito de interesses ou desordem.

Era de mister, por conseguinte, que algo se impusesse a todos, com sua autoridade, para garantir, preservar e restabelecer a ordem pública.

Se há um conflito de interesses ou um episódio que agita o equilíbrio da convivência humana, será prejudicial à harmonia e coesão sociais se persistir e não obtiver resolução.

Deixar, porém, entregue aos próprios interessados a solução direta dos problemas com os quais se defrontassem no convívio social significaria permitir que o conflito de interesses e o desequilíbrio permanecessem, em detrimento da paz pública, estimulando que os particulares vissem no desforço pessoal a única forma de deslindar o impasse, com o predomínio da força bruta.

Estaria, desse modo, inaugurado e instalado o caos social.

A necessidade, pois, de regulamentação da atividade humana era premente, no que concernia ao permitido ou proibido, para o surgimento de regras imprescindíveis ao convívio do homem.

Despontaram, então, preceitos dirigidos a todos para a disciplina da atividade do ser humano, cuidando cada conjunto de disposições de uma particularidade.

Daí surgir o Direito, com o propósito de disciplinar a vida social nos seus mais variados aspectos. Direito que, na clássica definição de Ihering, é o complexo das condições existenciais da sociedade, asseguradas pelo Poder Público2.

Como se sabe, os ramos do Direito constituem manifestações do mesmo fenômeno, pois seus segmentos visam à regulamentação da vida social. O ordenamento jurídico é uno. É o contexto que abriga disposições e preceitos legais tendentes à normalidade e estruturação da vida comunitária, em suas diversas facetas. Os ramos jurídicos que compõem o ordenamento somente se distinguem pela sua natureza jurídica (Direito Público e Direito Privado) e por uma questão de divisão do trabalho (constitucional, civil, trabalhista, empresarial, penal, administrativo etc.) em razão do objeto que representa o ponto de convergência de suas normas e para não ocorrer uma indevida intromissão ou ingerência de um determinado ramo do Direito na esfera e seara próprias de regulamentação dos outros.

Ante ao exposto, fácil é dessumir que as relações sociais passaram a ser disciplinadas e organizadas pelo Poder Público com o propósito de apascentar e equilibrar o convívio humano.

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Sob esta vertente, surgiu o direito material, consubstanciado pela previsão legal abstrata e hipotética das situações da vida, regulamentadas coercitivamente (previsão de sanções para o descumprimento) com o escopo de ser disciplinada e organizada a vida social.

Contudo, a simples existência de regramentos na disciplina e organização da vida comunitária não trouxe, por si só, a concórdia e a tranquilidade buscadas no seio social, como se o conjunto de leis, isoladamente considerado, possuísse o condão de apaziguar e colocar em simetria serena e estável as relações humanas. Exatamente porque os destinatários das regras do direito material nem sempre as seguem espontaneamente, todo o acervo e cipoal das normas disciplinadoras do convívio social não são por si mesmos suficientes para o cumprimento de sua finalidade: a pacificação social.

De tal arte, era imperioso atribuir a um órgão, representando o próprio Poder Público e estatal, em nome da sociedade, a missão de, com o espírito infenso às paixões envolvidas e substituindo as partes, proclamar e dizer o direito ao caso aplicável, para apascentar, com imparcialidade, que, consoante Canuto Mendes de Almeida, é a posição desinteressada do espírito entre duas soluções contrárias3, a ordem perturbada.

Surgiu, assim, a jurisdição, que concentra o poder de proclamar e aplicar o Direito, ou seja, de estender as normas, leis e princípios jurídicos cabíveis às hipóteses ocorrentes para dirimir os litígios e restabelecer a harmonia social, impondo coercitivamente e de forma substitutiva à vontade dos particulares a regra de direito material que espontaneamente não foi seguida (jurisdição contenciosa), ou para conferir eficácia a uma situação jurídica não litigiosa no sentido de administrar publicamente e sacramentar determinados interesses privados que necessitam desta chancela (jurisdição voluntária).

Cometeu-se a nobre e árdua tarefa estatal ao Poder Judiciário, a quem ela incumbe com exclusividade como corolário dos princípios da investidura, indeclinabilidade e indelegabilidade da jurisdição.

No entanto, vedado que é ao Judiciário atuar ex officio, ressurte imprescindível que sua atuação seja devidamente provocada pelo interessado na solução da lide, que, no tradicional, sempre repetido e invocado conceito emitido por Carnelluti, é o conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida, mesmo porque, segundo remarcou Calamandrei, vãs seriam as liberdades do indivíduo se não pudessem ser reivindicadas e defendidas em juízo4.

Para a consecução desta finalidade há o direito de ação, constitucionalmente garantido, que condensa o pedido de uma pessoa endereçado ao órgão judiciário e que contém - de regra - a demanda da medida ou providência destinada a atuar na esfera jurídica de outrem, segundo bem se expressou o próprio Calamandrei5.

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Estabelecidas tais premissas, impende situar e definir o Direito Penal dentro do ordenamento jurídico. Para atender esta finalidade, torna-se indeclinável evidenciar, em primeiro lugar, sua natureza jurídica dentro do ordenamento. A seguir, é fundamental destacar qual ao objeto que lhe coube disciplinar na divisão jurídica de tarefas, ou seja, o ponto de convergência de seus preceitos.

Distribuem-se os diversos ramos do Direito, consoante sua destinação, em dois grupos fundamentais: o Direito Público e o Privado.

O critério que permite a inserção de um ramo do Direito em um ou outro destes grupos é o do interesse prevalente.

Todo ramo do Direito é formado por um corpo de leis. Quando estes preceitos legais, em sua maioria, se inclinam para a disciplina e regulamentação do interesse público ou estatal, que é predominante sobre qualquer interesse pessoal, o ramo do ordenamento jurídico projeta-se para a esfera do Direito Público. Quando, entretanto, em sua maior parte, dirigem-se os preceitos legais, primordialmente, para a tutela de direito particular, o ramo da ciência jurídica que os concentra coloca-se no Direito Privado.

Nessa conjuntura, ramo do Direito Público é aquele que estampa em seu conjunto, como característica proeminente, normas imperativas ou cogentes, porque destinadas, principalmente, à regulamentação e garantia do próprio interesse público. Ramo do Direito Privado, ao reverso, é o que descortina, no contexto geral, preceitos permissivos ou facultativos, endereçados à tutela do interesse individual, particular.

Desse modo, ao dispor sobre o direito de propriedade, o Direito Civil, na estruturação da vida social, atende, principalmente, ao interesse pessoal.

Se alguém tem terreno no qual edificou sua casa, garante-lhe o Direito, no seu próprio interesse, o domínio sobre o bem, oponível às demais pessoas. Se outra pessoa, porém, vizinha da primeira, ao proceder à construção de sua residência, invade parcialmente com o muro o terreno alheio, atinge o direito objetivo do...

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