Reproductive rights and abortion: Women in the Zika epidemic/ Direitos Reprodutivos e o Aborto: As mulheres na epidemia de Zika.

AutorVentura, Miriam
CargoTexto en portugues - Ensayo
  1. Introducao

    Em 2015 identificou-se, no Brasil, um vinculo entre o virus zika e a microcefalia, condicao definida como "uma malformacao congenita, em que o cerebro nao se desenvolve de maneira adequada. Neste caso, os bebes nascem com perimetro cefalico (PC) menor que o normal, que habitualmente e superior a 32 cm" (1). Dados oficiais do Ministerio da Saude indicam que ate junho de 2016 registrou-se 1.638 casos de microcefalia e outras alteracoes do sistema nervoso, sugestivos de infeccao congenita, em todo o pais. (2) Adicionalmente, o virus zika tambem pode, em casos raros, levar a sindrome de Guillain-Barre, uma doenca autoimune que afeta o sistema nervoso.

    Em fevereiro de 2016, a Organizacao Mundial da Saude (OMS), em conformidade com o Regulamento Sanitario Internacional (RSI, 2005), declarou Emergencia de Saude Publica de Importancia Internacional (ESPII) a associacao entre a infeccao do virus Zika, transtornos neurologicos e malformacoes congenitas na America Latina (WHO, 2016). No entanto, ha ainda muitas incertezas acerca das vias de transmissao do virus Zika, da dinamica do virus no organismo humano e da propria infeccao, mas a possibilidade de transmissao congenita da mulher para o feto esta confirmada, mobilizando uma ampla agenda de pesquisa sanitaria orientada em resposta as exigencias das instancias internacionais (Barreto et al, 2016).

    Ate o momento, nao ha tratamento especifico ou vacina disponivel para a zika. As formas de prevencao disponiveis sao a protecao contra picadas de mosquito e o controle do mosquito. Tambem nao ha um teste sanguineo preciso para deteccao do virus Zika, porque o anticorpo do virus se confunde com outros, como o da dengue, febre amarela e chikungunya. A deteccao da infeccao zika em uma mulher gravida pode ser realizada durante o pre-natal e no pos-natal. Ja a deteccao de microcefalia no feto so pode ser realizada no final da gravidez, e o diagnostico nao e preciso, principalmente em populacoes com caracteristicas heterogeneas, como a brasileira. Alem da microcefalia, especialistas apontam que o virus Zika pode provocar lesoes cerebrais sem produzir uma grande diminuicao no tamanho da cabeca, e o diagnostico desse tipo de lesao tambem so e viavel a partir de seis meses de gravidez (Lowi, 2016).

    As incertezas presentes e a complexidade do diagnostico trazem dificuldades e desafios adicionais para a saude publica, especialmente para a saude reprodutiva, considerando as fortes evidencias cientificas da transmissao congenita e, mais recentemente, sexual. Como destaca Lowi (2016), a concentracao dos esforcos brasileiros na deteccao da microcefalia no diagnostico pos-natal e contra propagacao do virus Zika sao objetivos importantes e que envolvem tarefas dificeis. Interromper a propagacao do virus implica o desenvolvimento de uma vacina anti-zika e a eliminacao do seu vetor, o mosquito Aedes aegypti, alem de medidas sanitarias nos territorios que, como atestam os surtos de dengue, tambem nao sao empreendimentos faceis. No entanto, as consequencias da Zika, em especial em relacao a transmissao congenita e sexual, exigem respostas governamentais que vao alem da capacidade dos servicos de saude no diagnostico e tratamento da infeccao do Zika e suas consequencias. Uma das respostas prementes e pertinentes a discussao etica e juridica e a de como garantir direitos humanos basicos relacionados aos direitos reprodutivos, que tem como pressuposto a efetiva garantia da livre decisao das mulheres e o acesso aos recursos necessarios de suporte para realiza-la.

    Enquanto isso, mulheres, profissionais de saude e cientistas manifestam o seu desespero e sentimento de impotencia frente a um numero crescente de criancas nascidas com comprometimento neurologico grave no Brasil, diante da ausencia de uma rede de apoio social e familiar de suporte para o desenvolvimento e assistencia dessas criancas. A midia diariamente traz o drama de mulheres tanto na busca de diagnostico e tratamento para os filhos com suspeita de microcefalia, quanto aponta as graves insuficiencias e deficiencias do sistema de saude brasileiro. Mulheres com melhores condicoes economicas, diante da gravidez ou da intencao de engravidar, planejam mudanca do pais para evitar o contato com o virus Zika. Pedidos de asilo em outro pais para evitar o retorno para o Brasil tambem sao noticiados. Alternativas de auto abortamento e abortamento clandestino, e nem sempre seguro, tambem sao buscadas, comprometendo o direito a saude e integridade fisica dessas mulheres (3).

    As questoes de saude reprodutiva historicamente tem sido fortemente relacionadas a aspectos legais, a etica medica e aos direitos humanos (Cook, 2004). Estrategicamente introduzida a partir dos conceitos de saude sexual e reprodutiva, a ideia de direitos reprodutivos e sexuais e a perspectiva de genero se fortaleceram com intensa participacao de grupos organizados feministas e LGBT, que denunciavam como os sistemas e estatutos legais nacionais respaldavam intervencoes e medidas de saude publica violadoras dos direitos humanos (Villela e Arilha, 2003). Assim, a construcao dos direitos reprodutivos marca o reconhecimento e a "definicao de uma esfera de direitos associada a sexualidade e a reproducao, com fundamentos em teorias liberais classicas de direitos individuais e em principios socialistas de justica social e igualdade, bem como em principios de direitos humanos, trouxe novos argumentos aos debates sobre as relacoes entre o pessoal e o social, o individual e o coletivo", com forte valorizacao da mulher como sujeito de direitos pleno em convencoes internacionais de direitos humanos (Pitanguy, 2016).

    Declaracoes e Planos de Acao de Conferencias das Nacoes Unidas, legislacoes nacionais, como a Constituicao Federal de 1988 e a Lei Federal 9263/96 (Lei do Planejamento familiar) foram sendo produzidas e trouxeram novos desafios para o debate sobre o direito de escolha no que se referem a vida reprodutiva, os limites, as possibilidades de atuacao e as responsabilidades do Estado frente a tais escolhas. O governo brasileiro tem incorporado em suas regulamentacoes sanitarias e politicas publicas a perspectiva dos direitos reprodutivos e de genero (Brasil, 2005). As dificuldades repousam na efetividade dessas normas e a existencia de restricoes legais ainda presentes para a plena garantia a autonomia reprodutiva.

    Nesse diapasao, a discussao sobre a lei penal que criminaliza o aborto voluntario torna-se inevitavel ao tratarmos da infeccao da Zika e seus efeitos na reproducao humana. A desproporcao entre as restricoes legais a autonomia reprodutiva feminina diante das incertezas sobre os desfechos das gravidezes, e o onus imposto as mulheres e suas familias pelo diagnostico de infeccao pelo Zika, evidenciam injusticas e desigualdades sociais apontadas nos dados epidemiologicos, na imprensa e nas declaracoes oficiais das instancias internacionais. As mulheres mais pobres e residentes nas areas mais carentes no Brasil pais sofrem de forma mais acentuada as deficiencias de recursos de saude e de garantias de outros direitos reprodutivos.

    Nos campos juridico e da saude publica vem se buscando desenvolver mais densamente as relacoes teoricas e praticas entre direitos legais e direitos humanos, e destes com a saude publica, e incorporar a perspectiva de genero neste desenvolvimento. O presente estudo visa colaborar nessa discussao buscando investigar as seguintes questoes: Qual tem sido a discussao academica sobre o direito ao aborto voluntario na emergencia sanitaria da epidemia de Zika? Como as especificidades femininas e os principios eticos e juridicos dos direitos reprodutivos tem sido considerados? Por fim, se buscara problematizar as necessarias transformacoes do marco legal brasileiro referente ao aborto voluntario frente a imperatividade da legislacao e jurisprudencia internacional dos direitos reprodutivos como direitos humanos.

    A analise adotara uma perspectiva feminista buscando iluminar as implicacoes de genero na pratica social e nas normas juridicas frente a epidemia de Zika. Dessa forma, as perguntas propostas incluem a dimensao de como e de que modo as mulheres tem sido consideradas (ou nao) pela lei e normas sanitarias produzidas em resposta ao fenomeno. Pretende-se, ainda, identificar omissoes buscando apontar como podem ser corrigidas, e que diferenca isso faria para a saude e direitos das mulheres, e internamente entre elas, indagando-se "que mulheres a lei exclui ou prejudica? Sao as mulheres brancas ou negras? O prejuizo legal e o mesmo para as mulheres em desvantagem economica?". Nesse claro contexto de desigualdades e de vulnerabilidades especificas mundiais e locais, o marcador do genero associado a outros, como raca/etnia, situacao economica, educacao, permite identificar as diferentes opressoes ou subordinacoes das mulheres e como se desdobra a epidemia internamente entre as mulheres (Campos, 2014).

    Ao enfatizar essas lentes, se busca evitar o essencialismo e reconhecer que o genero nao e algo intrinseco aos seres humanos, mas um conjunto de "efeitos produzidos em corpos, comportamentos e relacoes sociais, por meio de uma complexa tecnologia politica" no qual o "sexo resulta desta experiencia historica singular e nao uma invariante" (Correa e Aran, 2009).

    Compreende-se ainda que Saude Publica e Direito institucionalizam, especialmente a partir do seculo XIX, um conjunto de praticas de controle e regulacao do corpo social e individual predominantemente biologizante, especialmente no ambito da sexualidade e reproducao humana. A principal direcao dessa normatizacao e normalizacao (4) e a gestao da vida (nascimentos, mortalidade, saude, etc), que Foucault propoe definir como uma tecnologia anatomo-politica do corpo, uma biopolitica da vida. Nesse contexto, os sistemas legais vem servindo para respaldar modelos de intervencao da Saude Publica justificados pela dupla funcao do Direito (e da propria democracia): garantir o exercicio das...

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