Representações dos povos indígenas em Francisco de Vitória e as origens etnocêntricas do direito internacional moderno

AutorAirton Ribeiro da Silva Junior
Páginas151-178
Recebido em: 04/05/2018
Revisado em: 15/09/2018
Aprovado em: 25/09/2018
http://dx.doi.org/10.5007/2177-7055.2018v39n80p151
Direito autoral e licença de uso: Este artigo está licenciado sob uma Licença Creative Commons.Com essa licença você
pode compartilhar, adaptar, para qualquer fim, desde que atribua a autoria da obra, forneça um link para a licença, e
indicar se foram feitas alterações.
Representações dos Povos Indígenas em Francisco
de Vitória e as Origens Etnocêntricas do Direito
Internacional Moderno
Representations of Indigenous Peoples in Francisco de Vitoria’s Thought and the
Ethnocentric Origins of Modern International Law
Airton Ribeiro da Silva Júnior1
1Centro di Studi per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno Università degli Studi di Firenze, Firenze, Itália
Resumo: O presente trabalho, partindo do ins-
trumental teórico da história dos conceitos,
busca compreender as representações dos ín-
dios americanos nas relecciones de Francisco
de Vitória. Para tanto, é reconstruída a carga
semântica acumulada historicamente dos dois
principais conceitos, já existentes à época da in-
vasão da América, utilizados em referência aos
índios, a saber, bárbaros e selvagens; em segui-
da, explora-se o pensamento jusinternacionalis-
ta de Francisco de Vitória à luz de tais conceitos
etnocêntricos.
Palavras-chave: Direito Internacional. História
do Direito. Francisco de Vitória. História dos
Conceitos. Bárbaros. Selvagens.
Abstract: The present essay attempts to understand
the representations of the American indigenous
peoples in the Francisco de Vitoria’s relecciones
by using the theoretical tools from the history
of concepts. In order to do this, the historically
ascribed meanings of the two main concepts
applied to the indigenous peoples had been
reconstructed, which are barbarian and savage, both
already existing by the time of America’s invasion.
Then, taking into consideration these ethnocentric
concepts, it is explored the thought of Francisco de
Vitoria on international law.
Keywords: International Law. Legal History.
Francisco de Vitória. History of Concepts.
Barbarian. Savages.
1 Introdução
Toda disciplina possui um cânone como tradição ideada, apologéti-
ca e geralmente mitológica. Sua construção dá-se pela operação de sele-
cionar autores representativos dos valores que a disciplina escolheu para
152 Seqüência (Florianópolis), n. 80, p. 151-178, dez. 2018
Representações dos Povos Indígenas em Francisco de Vitória e as Origens Etnocêntricas do Direito Internacional Moderno
si, além de eventos históricos a serem reconhecidos como momentos de-
cisivos no desenvolvimento da disciplina. O processo, que pode parecer
aleatório é, com efeito, útil e inevitável, na medida em que fornece coe-
são e identificação entre os juristas, cultores da disciplina, independente-
mente de seus locais e histórias. O direito internacional moderno, como
não poderia deixar de ser, também possui seu cânone, fruto notadamente
de um processo contínuo de reiteração de uma narrativa-padrão, em um
sentindo quase mitológico, organizado por seus juristas visando à forma-
ção da autoimagem da disciplina baseado em uma particular considera-
ção do passado. Por contingente, no entanto, essa narrativa convencional
do passado tende a promover determinados valores, comprometidos com
uma perspectiva parcial da história, no mais das vezes, eurocêntrica.
Francisco de Vitória, nesse cânone, tem papel destacado. Em verda-
de, costuma ser celebrado como um dos fundadores do direito internacio-
nal moderno; tradição que fora inaugurada em princípios do século XX
por juristas como James Brown Scott, Antoine Pillet e Enrst Nys, e man-
tém-se inquebrantável na doutrina de muitos juristas contemporâneos.
A imagem que é reiterada do teólogo salmantino, todavia, é de um pre-
cursor de um universalismo baseado na humanidade, e até mesmo, de pri-
meiro defensor dos índios americanos recém-descobertos.
O presente trabalho, seguindo o movimento que Galindo nomeou
de giro historiográfico1 no direito internacional, pretende desafiar algu-
mas narrativas convencionais do cânone da disciplina, como essa recém-
-exposta. Assim, a advertência de John Haskell (2017, p. 246) de que
“[...] dedicar-se com a história é refletir não apenas sobre o passado, mas
sobre a consciência da disciplina em si e como a mesma cria e organiza
suas condições de reprodução [...]”2 é que justifica a presente empreitada.
1 “The expression historiographical turn refers to a constant and growing need on the part
RILQWHUQDWLRQDOODZ\HUVWRUHYLHZHYHQ WRFRQ¿UPWKHKLVWRU\RI LQWHUQDWLRQDOODZDQGWR
establish links between the past and the present situation of international norms, institutions
and doctrines. The historiographical turn also involves the need to overcome the barriers
that separate the theory from the history of the discipline.” (GALINDO, 2005, p. 541).
2'R RULJLQDO³>«@ WRHQJDJH KLVWRU\LV WRUHÀHFW QRWVLPSO\ RQ WKHSDVW EXWXSRQ WKH
consciousness of the discipline itself and how it creates and manages its conditions of
reproduction”.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT