A regra-matriz do imposto sobre serviço de comunicação

AutorJulio Cesar Pereira
CargoMestrando em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo/USP. Advogado.
Páginas201-222

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Quem não comunica

Sim, vivemos o tempo do imediatis-mo. Há sempre, de plantão, os pregadores do "preto no branco": oponentes naturais dos prolegômenos. A rapidez, vaticinada por Italo Calvino como uma das seis propostas para o corrente milênio, é alardeada por muitos em prol do ritmo, ainda que em desfavor do conhecimento. Ocorre que o adágio cunhado por Abelardo Barbosa, ou, se preferirem, por seu personagem, o Cha-crinha, impõe-se a todo instante: o risco iminente da "trumbicação" - fado impos-tergável de quem não se comunica. Os prolegômenos, ao menos neste ensaio, comunicam as regras do jogo, sem as quais não se pode dar o objeto por conhecido, ao final da leitura. Portanto, a despeito da ne-crose de alguns narizes torcidos, o presente artigo seguirá seu ritmo próprio, ora com o vagar quase indolente, ora apertando o passo.

A presente advertência serve tanto aos que tem pressa quanto aos que dispõem de tempo. Se a estes já anuncia o estilo e o procedimento, àqueles faz o favor de não lhes estorvar o tempo, ou a falta de tempo. De todo modo, esta é a função maior das advertências: garantir ao leitor a ampla liberdade de escolher ler ou não um texto e, ao mesmo tempo, permitir ao próprio texto a seleção dos leitores que quer para si. Se, por um lado, tal postura representa qualquer óbice na condução das massas, por outro, angaria uma ou outra moça que se permita buzinar.

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1. Prolegômenos - Um punhado de truísmos

A comunicação é um fenômeno eminentemente humano. É condição sine qua non da ordem social.1 Sua ocorrência só é possível por meio de linguagem. Cada civilização, em cada época, enxerga a linguagem de acordo com o seu saber, suas crenças, seus princípios, seus métodos. O homem estuda a linguagem há mais de dois milênios. Até o século XVIII, o mundo ocidental possuía uma visão teológica da linguagem, pondo em evidência a problemática acerca de sua origem e regras universais de sua lógica. Dominado pelo cientificismo, o homem do século XIX, por sua vez, debruçou-se sobre a linguagem, procurando descrever-lhe os mecanismos e tipos, o que culminou no aparecimento de uma ciência geral da linguagem - a Lingüística. Hoje, a linguagem é um dos campos de estudo mais complexos e diversificados sobre o qual nos debruçamos.

Do trato diário com as questões hermenêuticas, os problemas diversos em torno da linguagem, como o da ambigüidade e da vagueza, é que acometem o operador do direito, na exegese de textos jurídicos. Nos dizeres de Luis Alberto Warat,2 fazer ciência é traduzir numa linguagem rigorosa os dados do mundo. Warat vai além, dizendo que sem rigor lingüístico não há ciência, pois, em última instância, ciência e linguagem são exatamente o mesmo.

Sendo a ciência uma linguagem, então o ponto de partida para a dissecação do objeto deste artigo é seu escrutínio lingüístico. Entendendo-se linguagem como um conjunto ordenado de signos que possibilita a comunicação entre dois ou mais sujeitos, perfilamo-nos dentre os que consideram situarem-se na categoria dos termos indissociáveis as idéias de linguagem e comunicação.

1. 1 O "uso" como ponto de partida

A partir da segunda filosofia de Lud-wig Wittgenstein (1889-1951), temos um importante rompimento na filosofia da linguagem. Os apontamentos que se seguem, caso não sejam capazes de delinear um tênue esboço a respeito da Teoria dos Atos de Fala, serve, ao menos, aos não iniciados como um lampejo para os conduzir a referências bibliográficas básicas. Àqueles que já são estudiosos de Searle e Austin, indicamos a última linha deste item como porta de saída de um punhado de truísmos e, ao mesmo tempo, entrada no assunto propriamente dito: o núcleo da regra-matriz de incidência do imposto sobre serviço de comunicação.

Para compreendermos a Teoria dos Atos de Fala criada por John Langshaw Austin (1911-1960), faz-se necessário compreender, antes de tudo, que foi Wittgenstein quem deu um passo fundamental para a superação da semântica tradicional, embora tenha deixado muitas questões em aberto.3

Austin propôs-se responder a uma indagação que pairava da sugestão filosófica de Wittgenstein que entendia ser o "uso" o que determina o sentido das palavras. Os passos dados por Austin, visando a encontrar uma solução que desse resposta àquela pergunta, foram essenciais para o desenrolar da noção que se tem hoje da teoria dos atos fala.4 O ponto de partida de Austin, no entanto, é o mesmo do autor do Tractatus, ou seja, a contraposição ferrenha à teoria tradicional, pela qual miniaturiza-se toda a linguagem, relegando-a a uma posição de

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instrumento meramente designativo das coisas. Lembremos que para a teoria tradicional a linguagem é descritiva.

Assim, Austin introduz a noção de "enunciados constatativos", que seria um tipo de enunciado mais amplo do que o meramente designativo. Além desses enunciados, Austin percebeu que existem outros que não constatam ou simplesmente descrevem ações, mas sim que efetivamen-te são a ação. O "sim" dito na cerimônia matrimonial, por exemplo, não descreve o ato de casar, mas, antes, o constitui, o "sim" é a própria ação de casar. Este é o ponto heurístico da Teoria dos Atos de Fala.

A princípio, Austin faz uma distinção que depois ele próprio negará: a classificação dos atos em constatativos e performa-tivos.5 Os constatativos seriam aqueles que têm função meramente designativa. Os performativos, por sua vez, correspondem à classe de atos pelos quais descrevemos o que pensamos e simultaneamente realizamos uma ação. Ao proferir a frase "eu aposto que o time do São Paulo ganha a partida", o torcedor não só descreve o que está em sua mente como realiza um ato - o de apostar.

Os atos performativos, para realizarem as ações a que se propõem, necessariamente, devem respeitar uma série de normas convencionais preestabelecidas. Segundo a teoria de Austin, estes atos são o que são exatamente por cumprirem essas normas e, nas palavras de Manfredo Araújo de Oliveira, "não em virtude de intenções próprias do sujeito".6

A despeito da dissecação dos atos de fala em três dimensões (atos locucionários, ilocucionários e perlocucionários), classificação que não cabe esmiuçar no presente artigo, o mais importante é não perder de vista que, a partir do redemoinho filosófico iniciado por Wittgenstein, Austin enxerga na linguagem o olho do furacão do fenômeno comunicacional e, por meio de incansáveis giros heurísticos, procura demonstrar que a linguagem equivale a qualquer ação humana, que ela é, de fato, uma "forma de vida",7 nos termos de Wittgenstein. Percebe-se que ambos os filósofos enxergam a linguagem como uma ação social. Há um mutualismo entre linguagem e sociabilidade, de modo que a estrutura de um não pode sobreviver independentemente da estrutura do outro. "Sentido", para Austin, não pode ser compreendido isolado do contexto. Nas palavras de Manfredo, para Austin, investigar a linguagem significa tematizar o contexto de sociabilidade, ou seja, o contexto sociocultural, onde ela se insere.8

1. 2 O "status" rizomático do ato de fala no fenômeno comunicacional

JohnRogers Searle (1932-), discípulo de Austin, parte da idéia anteriormente enunciada para afirmar que descrever a linguagem nada mais é do que tematizar aspectos de um domínio específico de capacidade dirigida por regras. Searle, assim como os seus predecessores, considera fracassado o modelo da semântica tradicional. Diz que quando certos modelos de explicação fracassam na aplicação de certos conceitos, são os modelos que devem cair e não os conceitos.9

Quando falamos certa língua, demonstramos o domínio que temos dela e, desse modo, emitimos caracterizações lingüísticas que não se relacionam com emissões particulares, mas sim, que possuem um caráter geral. Contudo, assevera Searle, que tais considerações não obstam que, num mesmo grupo dialetal, outras pessoas interiorizem regras diferentes, fazendo com

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que as nossas caracterizações lingüísticas se distingam das delas.10

Searle situa os atos de fala no centro do fenômeno comunicacional e é exata-mente este ponto da Teoria dos Atos de Fala que justifica a importância desta breve incursão expositiva. Para o filósofo, os actos (sic) de fala são a unidade básica ou mínima da comunicação lingüística. Por isso, ele empurra para a periferia do fenômeno da comunicação os suportes dos atos de fala, ou seja, afirma que a unidade da comunicação lingüística não corresponde, como se supusera, ao símbolo, à palavra, ou à frase, ou mesmo à ocorrência do símbolo, palavra ou sentença na execução do acto (sic) de fala.11 Isto porque considerar a ocorrência como uma mensagem equivale a considerá-la como ocorrida ou emitida, e, se ocorreu ou foi emitida, isto quer dizer que preexistiu um ato de fala.

Fixemos, então, o pressuposto de que a...

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