Os regimes de verdade nas sentencas criminais/The truth's regimes in the criminal sentences.

AutorSantana, Samene Batista Pereira

Consideracoes iniciais

Este artigo e constituido de um recorte da dissertacao intitulada "Sentencas do ritual do Tribunal do Juri Brasileiro, memoria discursiva e regimes de verdade", em que fazemos a analise de tres pronunciamentos de sentencas (1) oriundas do Tribunal do Juri, sob a otica da Analise de Discurso de linha Francesa e de alguns pressupostos da arquegenealogia de Foucault, a fim de analisarmos alguns desdobramentos da doutrina juridica.

Neste recorte, tratamosdas sentencas criminais de um ponto de vista geral, procurando entender quais discursos atravessam o funcionamento do Tribunal do Juri, e quaisas instituicoes (articuladas pelos Regimes de Verdade) que produzem essas sentencas face as redes de saber e de poder. Esta compreensao acerca da sentenca criminal se baseia, sobretudo, na filosofia de Michel Foucault.

Partindo do pressuposto de que as sentencas criminais sao decisoes que definem e delimitam o agente criminoso, a culpabilidade e a pena, defendemos que elas sao maneiras de se exercer o poder e que constituem uma forma juridica que mostra a emergencia de saberes (juridicos, religiosos, psiquiatricos, e etc.). Para tanto, em primeiro lugar, definimos nosso objeto: a sentenca condenatoria no processo de Juri e diferente da homonima que se passa em sede de processo criminal comum. No processo criminal comum, ha apenas um orgao encarregado de julgar e delimitar o quantum--estabelecer criterios quantitativos da pena a ser aplicada ao acusado: e o juiz ou o tribunal. Ja, no processo de Juri, a sentenca condenatoria e ato jurisdicional complexo, em que, segundo Mirabete (2003), os jurados (a sociedade) decidem sobre o crime (fato principal, ilicitude, culpabilidade, circunstancias) e o juiz presidente (Estado) decide sobre a aplicacao das sancoes penais. Desta forma, a sentenca condenatoria fica dividida em duas partes quando se trata de processos da area do Juri Popular: a primeira parte corresponde a condenacao ou nao do acusado (ou dos acusados), de acordo com os quesitos apresentados aos jurados pelo juiz-presidente do tribunal; e a segunda parte diz respeito a dosimetria da pena, em caso de condenacao, devendo o juiz-presidente obedecer, para tanto, ao que foi respondido nos quesitos, de forma que assim seja respeitada uma prerrogativa constitucional conferida aos jurados: a soberania de seus vereditos (2).

Para explicar as maneiras pelas quais o poder se exerce no Juri, analisamos as sentencas condenatoriascom base no que propoe a obra de Foucault (2005, 2011), acerca das relacoes de poder-saber, a fim de relacionar esse poder com os saberes que emergem e acolhem varios discursos que contribuem para a constituicao das sentencas. Articulamos, ainda, os conceitos de regimes de verdade e vontade de verdade, do mesmo autor, para compreender quais as instituicoes e ostatus no/do discurso autorizado pelo corpo social para dizer o que e "verdadeiro"; neste caso, o que e a verdade sobre o ritual do Juri e sobre as sentencas produzidas a partir dele.

Temos, portanto, dois principais pontos que consideramos acerca das sentencas oriundas do Tribunal do Juri. O primeiro e a compreensao da rede de saberes e poderes constituidos historicamente para que se consolidem algumas verdades sobre o Juri: uma verdade macroscopica, sobre as condicoes de aparecimento e possibilidade do Juri; e uma verdade microscopica, sobre os discursos que circulam no interior do ritual e que dao a ver seus modos de atuacao, cujo resultado encontra-se materializado nas sentencas. O segundo ponto diz respeito ao(s) proprio(s) lugar(es) institucional(is) de onde sao "trazidas" estas verdades, fazendo-as funcionar no Juri. Mobilizamos, assim, alguns conceitos de Foucault a fim de compreender a relacao entre poder, saber e verdade, tomando como corpusuma das praticas judiciarias mais discursivizadas no corpo social: o Tribunal do Juri e as sentencas que dele decorrem.

  1. Pelo vies da nova historia

    Neste topico, apresentamos, primeiramente, a maneira como a historia e seus deslocamentos constituiram o rito do Tribunal do Juri e a sentenca como seu resultado imediato. Para isso, enfatizamos uma investigacao historica, a qual e desinteressada da procura de uma "origem", pois remete ao que Foucault chama de "nova historia" (FOUCAULT, 1969 [2008]); e a utilizacao de uma genealogia, ou ainda, uma investigacao historica que parta do presente para entender o passado. Le Goff (2003) ressalta que Foucault observou a historia no meio das ciencias humanas para atestar que aquela possui uma anterioridade em relacao a esta (bases antigas do pensamento grego). Logo, para Foucault, a historia que deve interessar aos historiadores e a "historia da historia", que esta sujeita a rupturas e descontinuidades, bem como ligada a escolha de novos objetos.

    Ademais, Foucault (1972 [2005]), discute, em "Retornar a Historia" as implicacoes da relacao entre Estruturalismo e Historia na reformulacao do conceito de acontecimento. Para o autor, nenhum dos dois campos do conhecimento atentava-se para a descontinuidade da historia, pois, enquanto o Estruturalismo procurava fazer uma historia "rigorosa e sistematica", a propria Historia via-se em si mesma como linear. Foucault (1972 [2005]) entao propoe um questionamento: como falar da historia sem falar do tempo? E, para responder a essa pergunta, ele mostra que e preciso considerar a mudanca e o acontecimento e nao mais o tempo e o passado. Trata-se, portanto da:

    historia "serial" que, por sua vez, faz emergir diferentes estratos de acontecimentos dos quais uns sao visiveis, imediatamente conhecidos ate pelos contemporaneos e, em seguida, debaixo destes acontecimentos que sao, de qualquer forma a "espuma" da historia, ha outros acontecimentos invisiveis, imperceptiveis para os contemporaneos, e que sao de um tipo completamente diferente. (FOUCAULT, 1972 [2005], p. 162). Nao se trata de colocar tudo no plano do acontecimento, mas de considerar que existe todo um escalonamento de tipos de acontecimentos que nao tem o mesmo alcance, a mesma amplitude cronologica, nem a mesma capacidade de produzir efeitos. Segundo Foucault (1972 [2005]) o problema e, ao mesmo tempo, distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes e os niveis a que pertencem e constituir os fios que ligam e que fazem com que se engendrem, uns a partir dos outros.

    Desta forma, em oposicao a historia tradicional, aquela na qual o historiador busca a causa ou o sentido escondido por tras de um determinado fato visivel, a "historia serial", conforme Foucault, permite ao historiador a descoberta do interior da historia e de diferentes tipos de duracao (duracoes multiplas).

    Tendo em vista as breves enumeracoes feitas sobre a "nova historia", o aparecimento/reaparecimento do rito do Tribunal do Juri na historia do Direito Criminal e bastante incerto e diluido nos diversos sistemas judiciarios basilares, como o sistema ingles, o normando, ou ainda, o frances. Nao ha origem ou evolucao dos acontecimentos. Para alguns estudiosos, o instituto mais proximo do Juri ocorreu como "decorrencia das deliberacoes registradas no IV Concilio de Latrao, o maior concilio ecumenico da Idade Media, convocado pelo Papa Inocencio III, por meio da Bula Vineam Domini Sabaoth, de 10 de abril de 1213" (GRECO FILHO, 2009, p. 387). Ha ainda, doutrinadores juridicos que defendem que "certamente a figura (Tribunal do Juri) pode ser dada como nascida na Inglaterra, a partir deHenrique II, por volta do ano de 1100" (GRECO FILHO, 2009, p. 388).

    Azevedo (1958) afirma que a forma e a estrutura empregadas na redacao dos setenta canones do IVConcilio de Latrao indicam que a elaboracao desses escritos ocorreu por especialistas em direito canonico e romano. Boa parte dos canones trata da justica e dos procedimentos que deveriam ser tomados na aplicacao do direito eclesiastico. A busca por uma unidade religiosa, combatente da heresia e das demais crencas, levou o concilio a abolir a pratica das ordalias (3), considerada cruel para o julgamento dos acusados. Banida a forma de julgamento pautada nos juizos de Deus, surge a necessidade de substituir esse procedimento por outro pautado em criterios mais logicos e racionais. Movida por esses novos discursos, a Inglaterra desenvolveu uma nova sistematica de julgamento, baseada na lembranca dos 12 apostolos, que, orientados pelo Espirito Santo, anunciavam o amor e a justica. Era a concreta reconfiguracao do Juri, forma de julgamento que se propagou para outros paises da Europa e da America. De acordo com Azevedo (1958), o novo modelo assumido para o julgamento baseava-se "na lembranca dos doze apostolos, que haviam recebido a visita do Espirito Santo, quando doze homens de consciencia pura se reuniam sob a invocacao divina, a verdade infalivelmente se encontrava entre eles. Desta crenca nasceu o Juri" (AZEVEDO, 1958, p. 179).

    Embora o Juri tenha se consolidado em torno dessa sistematica de julgamento em "pares", em que a decisao era tomada por dois orgaos, o do julgador e o dos "grandes homens", a forma juridica do Juri, tal qual como a conhecemos hoje, foi constituida a partir de um deslocamento do saber sobre o inquerito. Foucault (2005), em "A verdade e as formas juridicas", explica a maneira como, na Idade Media, se deu o que ele chama de segundo nascimento do inquerito, uma vez que sua primeira forma aparecera na Grecia Classica:

    houve na Grecia, portanto, uma especie de grande revolucao que, atraves de uma serie de lutas e contestacoes politicas, resultou na elaboracao de uma determinada forma de descoberta judiciaria, juridica, da verdade. Esta constitui a matriz, o modelo a partir do qual uma serie de outros saberes filosoficos, retoricos e empiricospuderam se desenvolver e caracterizar o pensamento grego. Muito curiosamente, a historia do nascimento do inquerito, permaneceu esquecida e se perdeu, tendo sido retomada, sob outras formas, variosseculos mais tarde, na Idade Media (FOUCAULT, 2005, p. 55). A partir deste...

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