Reformar a justica penal a partir de seu sistema de pensamento: por uma sociologia das ideias penais/Reforming the criminal justice system through its system of thought: for a sociology of penal ideas.

AutorXavier, Jose Roberto Franco
  1. Introducao

    Falar sobre reforma da justica, pensando aqui especificamente em justica penal, e de certa forma simples. Uma vez que os discursos sobre a falencia das respostas penais (sobre os disfuncionamentos das instituicoes judiciais, sobre as mazelas do processo penal, sobre as iniquidades da aplicacao da pena etc.) sao abundantes ha varias decadas (1), sabemos que a necessidade de reforma (do ponto de vista da literatura penal) se faz presente em incontaveis praticas e instituicoes da justica penal. Basta o observador eleger para o seu estudo uma dessas praticas ou instituicoes que rapidamente vislumbrara institutos, praticas ou mesmo teorias e ideias penais que precisam de "reforma".

    No entanto, se encontrar disfuncionamentos nao e exatamente uma tarefa dificil, a tarefa de pensar caminhos para reformas no sistema de justica penal se revela bem mais complexa. Ha, num primeiro nivel, a dificuldade de se pensar em praticas alternativas que parecam viaveis para os operadores e as instituicoes, que sejam aceitas e possam ser implementadas. Mas ha tambem, num segundo plano, a propria dificuldade dos academicos da area de pensarem em novas formas de proceder que fujam de sugestoes triviais e que no fundo sugerem reformas que nao atacam praticas e semanticas tradicionalmente problematicas.

    Neste texto, defendo duas ideias principais com relacao a nocao de "reforma" do sistema penal. Em primeiro lugar, que propostas de reforma do sistema penal nao sao de fato verdadeiras transformacoes em praticas problematicas e ideias estabelecidas, sendo apenas mudancas superficiais que nao lidam com alguns obstaculos cognitivos das quais essas praticas estao impregnadas. Em segundo lugar, que as transformacoes num sistema social - no caso, o sistema de justica penal - so ocorrem de fato quando sao levadas a cabo por um movimento interno, dos proprios operadores desse sistema, e nao por propostas de outros sistemas sociais que querem forcar uma mudanca de fora para dentro (2). Ambas as ideias ja foram discutidas por outros autores em outros contextos (3), mas me parece apropriado retoma-las num texto em que se pretende discutir num plano teorico a questao da reforma da justica penal.

    Para entender os dois pontos acima, este texto se dedica em grande parte a explicacao da teoria da racionalidade penal moderna desenvolvida por Pires (1999, 2000, 2002, 2004, 2007, 2008). Para que o leitor possa entender o que chamamos aqui de reformas ou transformacoes penais nao inovadoras, e preciso primeiro que seja feita uma explicacao sobre um sistema de ideias que utilizamos como quadro de referencia para essa avaliacao. Entendemos que reformas, como deixaremos claro mais a frente, so sao de fato inovadoras quando conseguem escapar dessas ideias fortemente estruturantes e problematicas que constituem um nucleo identitario do sistema penal.

    Por fim, devemos esclarecer que entendemos este trabalho como inserido numa sociologia das ideias penais. Ao que nos parece, para alem de uma sociologia das praticas penais, a possibilidade de reforma do sistema penal tem muito a ganhar com uma sociologia das ideias que orientam e, com muita frequencia, impoem praticas penais que se tornam inconvenientes mas que nao conseguimos abandonar por falta de uma reflexao teorica que possa sustentar um fazer diferente. O intuito aqui e descrever como as ideias penais constituem um verdadeiro obstaculo epistemologico (Bachelard, 1975) para a transformacao de um sistema penal que prima pela iniquidade e por seus efeitos negativos para apenados, vitimas e sociedade em geral.

  2. Sobre um sistema de pensamento onipresente no sistema penal (4)

    O que podemos explicar com uma sociologia das ideias penais e quais sao suas possiveis contribuicoes para uma agenda de reforma do sistema penal? Para tentar responder a essa questao, pensemos antes em algumas questoes que intrigam aqueles que se debrucam sobre o direito penal. De onde vem a dificuldade de se pensar e de se colocar em pratica respostas penais que sejam menos voltadas para a distribuicao do sofrimento e para a exclusao social do condenado? Como podemos compreender a dificuldade que o sistema penal tem em lidar com solucoes alternativas para os conflitos com que lida? Ou com respostas que possam fazer alguma contribuicao para a sociedade, que possam ver o conflito como menos atomizado, que possam levar em consideracao vitimas e o circulo social do apenado? Como enfim podemos interpretar o fato de que respostas menos aflitivas para os conflitos penais quase nunca sao pensadas e, quando o sao, sao apenas para crimes considerados menos relevantes, para questoes marginais para o direito penal?

    Na tentativa de entender esses questionamentos, lancamos mao de um quadro teorico proposto por Pires, o qual ele denomina "teoria da racionalidade penal moderna" (5). Para responder a essas questoes, propomo-nos a apresentar as linhas gerais de uma teoria que trata da evolucao do sistema de direito criminal e de seu sistema de pensamento dominante, intitulada por Pires de "racionalidade penal moderna". A ideia fundamental dessa teoria e que a formacao dos sistemas penais no Ocidente se deu em grande parte pela colonizacao, nesses sistemas, de um conjunto de ideias sobre o que e e para que deve servir uma pena criminal. Esse conjunto de ideias (um verdadeiro sistema de ideias, como veremos mais a frente), que emerge no final do seculo XVIII, torna-se incontornavel em materia de punicao criminal. A propria identidade do sistema penal passa por esse sistema de pensamento. Vejamos mais em detalhes o que entendemos aqui por racionalidade penal moderna (doravante RPM).

    2.1. Consideracoes gerais sobre a racionalidade penal moderna (RPM)

    Por racionalidade penal moderna entendemos um sistema de ideias (ou de pensamento) do sistema penal. Uma teoria sobre essa racionalidade pretende descrever e explicar as dificuldades que esse sistema coloca para o sistema penal quando esse procura pensar penas fora do quadro tradicional de referencia. Falamos, portanto, de uma teoria que pretende explicar as dificuldades de evolucao do sistema penal e jogar luz sobre o papel exercido pelas teorias da pena como obstaculo cognitivo a essa evolucao. A teoria pretende, dessa forma, mostrar que as teoria da pena, para alem de suas incompatibilidades e divergencias, convergem numa funcao de justificar decisoes em materia de penas. Juntas elas formam um quadro decisional que vincula decisoes quando se trata de atribuir uma pena criminal. Essa teoria nos sera util aqui tanto para descrever uma logica de atribuicao de penas quanto para entender as dificuldades relativas ao surgimento de inovacoes em questoes penais.

    2.2. O sistema de pensamento chamado racionalidade penal moderna (RPM)

    Retomando Pires, podemos dizer que a racionalidade e um sistema de pensamento ou de ideias que abarca discursos academico-filosofico-cientificos (6) que foram "selecionados, validados, estabilizados e generalizados pelos sistema social em questao" (Pires, 2004: 183). Esse sistema de pensamento funciona como fonte de identidade do sistema penal, garantindo-lhe discursos que lhe dizem o que ele (sistema penal) e e quais sao as suas atribuicoes. O sistema penal observa o seu ambiente a partir desse sistema de pensamento, assim como observa a si proprio e as suas funcoes a partir desse mesmo conjunto de discursos.

    A racionalidade penal moderna, como sistema de pensamento, e formada por um conjunto de ideias que os penalistas e filosofos do direito penal conhecem tradicionalmente por teorias da pena. Esse sistema de pensamento seria uma "resultante de forcas": "um conjunto de ideias que nao sao sempre convergentes e que nao se propoem necessariamente a formar um todo harmonico, mas que e capaz de no conjunto emanar diretrizes para guiar a acao" (Xavier, 2010).

    Para descrever esse sistema de pensamento, algumas formulacoes de Morin (1977) nos parecem bastante adequadas. Um sistema de ideias, para esse autor, e ao mesmo tempo menos e mais do que uma teoria. Um sistema de ideias carece da coerencia logica de uma teoria, e nesse sentido ele e menos que uma teoria. No entanto, um sistema de ideias possui aquilo que Morin (1977) chama de "qualidades emergentes": especificamente no caso da racionalidade penal moderna, ha aqui um conjunto de discursos que embora muitas vezes contraditorios, reforcam mutuamente uma identidade comum do sistema penal e a forma que ele deve responder ao que identifica como crime (7).

    Por fim, Morin mobiliza o conceito de unitas multiplex (1977: 105) para falar sobre um sistema de ideias. Uma unitas multiplex, quando observada a partir de suas teorias, parece formar um todo heterogeneo, contraditorio e inconciliavel. No entanto, se observarmos a partir das qualidades emergentes, ou seja, mudando o nivel de observacao, conseguimos ver concordancia e reforco mutuo de alguns pontos para alem das diferencas de cada unidade. Esse e o nosso ponto aqui com relacao a racionalidade penal moderna: um conjunto contraditorio e inconciliavel no plano de cada teoria que a compoem, mas uma unitas multiplex com caracteristicas bastante solidas quando observadas a partir de suas qualidades emergentes.

    Para uma defesa da utilidade e da relevancia de uma analise nesse plano de abstracao, mobilizamos Foucault num outro momento (Xavier, 2010). Retomavamos ali as criticas que foram feitas a "Vigiar e Punir", sobretudo as de historiadores que viam no longuissimo periodo tratado por Foucault (mais de...

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