A reforma previdenciária e as imunidades tributárias
Autor | Ives Gandra da Silva Martins |
Cargo | Professor Emérito da Universidade Mackenzie, em cuja Faculdade de Direito foi titular de Direito Constitucional e Econômico e Doutor em Direito |
Páginas | 44-67 |
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Tendo em vista a PEC 287/2016, que trata da reforma da previdência, uma questão que se impõe é se tal proposta coloca em risco a imuni-dade das filantrópicas devidamente certificadas como entidades beneficentes de assistência social.
Em outras palavras, a questão de fundo que se coloca é: seria possível uma emenda constitucional revogar uma limitação constitucional ao poder de tributar?
É o que passo a analisar.
Tenho a convicção de que a reforma previdenciária é essencial. Defendi esta necessidade, assim como de outras reformas, como se pode ler no editorial escrito para a revista Justiça e Cidadania endereçada especialmente aos 18 mil magistrados brasileiros, em que declarei:
A reforma política é necessária. Embora eu, pessoalmente, defenda o parlamentarismo desde os bancos acadêmicos, creio que o primeiro passo seria a adoção de cláusula de barreira, com avaliação da performance partidária para a manutenção dos partidos; voto
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distrital misto, ou seja, metade dos deputados sendo eleitos no distrito e metade por eleições proporcionais; financiamento de campanha sob rígido controle e eliminação de coligações partidárias. A reforma previdenciária, embora de impacto a mais longo prazo, é imprescindível. Se não vier, a população que trabalha não terá como sustentar uma população superior de aposentados, no futuro. A reforma trabalhista, no que concerne à terceirização e às convenções coletivas de trabalho, é relevante para reduzir o desemprego. Quanto à reforma burocrática, temos esperança de que o nosso anteprojeto, que surge de uma Comissão criada pelo próprio Senado com esta finalidade, possa ser aprovada. A reforma tributária não pode esperar mais. Eliminar a guerra fiscal do ICMS e ISS e simplificar a legislação são requisitos básicos, para começar. É de se lembrar que o STF sempre considerou inconstitucional tal prática, sem que os Estados se curvassem, pois editavam novas leis padecendo do mesmo vício, tão logo a lei anterior era declarada violadora da Carta da República. A reforma do Judiciário é importante, visto que a Lei Complementar 35, de 1975, está ultrapassada. Nitidamente, vencer os anticorpos do atraso enquistados no poder e os privilégios que tornaram "direito adquirido" toda a espécie de benesses é importante. temos que ter condições de competir com os demais países, inclusive com aqueles do contexto latino-americano. trata-se de tarefa que exige uma cruzada cívica da sociedade em aceitar os sacrifícios necessários e dos governantes em abrir mão dos auto-outorgados benefícios, sobre reduzir o tamanho da máquina burocrática, nas mais de 5.500 entidades federativas. Afinal, o servidor público deve servir à nação e não dela se servir, assim como o cidadão deve ser considerado como tal, não um objeto da administração, um escravo do poder, um cumpridor de inumeráveis obrigações burocráticas que se multiplicam para justificar a manutenção da máquina. Quanto maior for a burocracia desnecessária, maior será a corrupção. Quanto maior o número de leis inúteis impostas aos novos escravos da gleba em que o povo se transformou, maior o acúmulo de processos penais, em que o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Polícia devem intervir, não poucas vezes confundin-
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do o abuso de autoridade com a busca de justiça. O Brasil precisa ser passado a limpo. As reformas são necessárias, mas a cultura política e da cidadania têm que, de um lado, repelir a manutenção de uma máquina burocrática e esclerosada, e de outro, exercer o seu papel. O país depende não só desse respeito ao direito da cidadania, mas do compromisso dos diversos segmentos sociais para fugir a esta inércia. Estamos em tempo de mudança. De mentalidade e de costumes, na busca de um país de que os nossos filhos possam vir a orgulhar-se no futuro. É o que espero, como um velho advogado que jamais perdeu a esperança de ver o Brasil como líder mundial, onde a justiça social e a livre iniciativa de braços dados tornem a vida de todos os brasileiros digna de ser admirada no concerto das nações (os grifos não estão no texto)2.
Estou convencido que reforma tão essencial como a previdenciária é fundamental para que uma população cada vez maior, com longevi-dade crescente e com precoces aposentadorias, não seja sustentada por um número cada vez menor de trabalhadores, o que torna impossível a manutenção do sistema por tempo indefinido. Diria, mesmo, por tempo limitadíssimo, antes das contas implodirem.
Assim, convém destacar que a PEC 287/2016 pretende alterar, entre outros, os seguintes dispositivos da Constituição Federal relacionados às contribuições previdenciárias, dando-lhes a seguinte redação:
Art. 149. (...)
§ 5º O disposto no inciso I do § 2º não se aplica às contribuições previdenciárias incidentes sobre a receita em substituição às incidentes sobre a folha de salários (NR)
Art. 167. (...)
XII - a utilização de recursos dos regimes de previdência de que trata o art. 40, incluídos os valores integrantes dos fundos previstos no art. 249, para a realização de despesas distintas do pagamento dos benefícios de aposentadoria ou pensão por morte do respectivo fundo vinculado ao regime e das despesas necessárias à sua organização e ao seu funcionamento, na forma da lei de que trata o § 23 do art. 40; e
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XIII - a transferência voluntária de recursos e a concessão de empréstimos, financiamentos, avais e subvenções pela união, incluídas suas instituições financeiras, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios em caso de descumprimento das regras gerais de organização e funcionamento dos regimes de previdência dos servidores titulares de cargos efetivos, conforme disposto na lei de que trata o § 23 do art. 40.
(...)
§ 4º É permitida a vinculação de receitas próprias geradas pelos impostos a que se referem os art. 155 e art. 156 e dos recursos de que tratam os art. 157, art. 158 e art. 159, inciso I, alíneas "a" e "b", e inciso II, para a prestação de garantia ou contra garantia à união e para pagamento de débitos para com esta e para o pagamento de débitos do ente com o regime de previdência de que trata o art. 40. (NR)
Art. 195. (...)
I - (...)
-
a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço de natureza urbana ou rural, mesmo sem vínculo empregatício;
(...)
II - do trabalhador, urbano e rural, e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201;
(...)
§ 8º O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais, o extrativista, o pescador artesanal e seus respectivos cônjuges ou companheiros e filhos que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão de forma individual para a seguridade social com alíquota favorecida, incidente sobre o limite mínimo do salário de contribuição para o regime geral de previdência social, nos termos e prazos definidos em lei. (NR)
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Entre eles não se encontra o artigo 150, inciso VI, letra "a", e o artigo 195, § 7º, cuja dicção é a seguinte para ambos os comandos constitucionais:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à união, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...)
VI - instituir impostos sobre:
(...)
-
patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei;
Art. 195. (...)
§ 7º São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.
O próprio artigo 195, cuja alteração é proposta, cuida do § 8º, e não do § 7º, além dos incisos I e II do caput do dispositivo.
Não há, portanto, na proposta de reforma qualquer referência às imunidades de impostos e contribuições sociais. Assim, desde logo, não vejo como a PEC 287/16 possa pôr em risco as imunidades tributárias, pois os artigos-chave que autorizam tal reforma não agridem as imunidades, conforme veremos a seguir.
É de se lembrar que, muito embora cuide o artigo 195, § 7º, de isenções, já decidiu a suprema corte, em julgamento pioneiro, que a Constituição não cuida de isenções, mas de imunidades.
É que das quatro mais conhecidas formas de desoneração tributária (imunidades, isenções, não incidências e alíquota zero) - deixo
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de lado as anistias e as remissões, as imunidades representam vedação absoluta ao poder de tributar, razão pela qual não se confundem com as isenções, renúncia fiscal com objetivo determinado autorizado pelos governos, através de leis.
Como a Constituição define direitos, deveres e impedimentos, nas imunidades tributárias estabelece vedação ao poder de tributar, razão pela qual, quando se refere a "isenções", de rigor cuida de imunidades, como em relação ao § 7º do art. 195 decidiu o Supremo tribunal Federal no leading case da Associação das Igrejas Adventistas (igrejas com ação social), que meu escritório patrocinou e perante cuja 1ª turma sustentei oralmente, em 1995. Leia-se a ementa desta decisão:
Recurso Ord. em Mandado de Segurança n. 22.192-9
Distrito Federal
Relator: Min. Celso de Mello
Recorrente: Associação Paulista da Igreja Adventista do Sétimo Dia Advogados: Ives Gandra da Silva Martins e outros
Recorrida: união Federal
Advogado: Advogado - Geral da união
Ementa: Mandado de segurança - Contribuição previdenciária - Quota patronal - Entidade de fins assistenciais, filantrópicos e educacionais - Imunidade (CF, Art. 195, § 70) - Recurso conhecido e provido.
- A Associação Paulista da Igreja Adventista do...
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