Reforma Constitucional ? Aspectos Materiais e Procedimentais

AutorAlexandre Camanho de Assis
Páginas15-30

Page 15

Duas abordagens merecem ênfase imediata na questão da revisão constitucional. Primeiro, a de que cuida-se de assunto próprio e restrito a países que têm previsão de controle de constitucionalidade: a possibilidade, normativamente prevista, de desautorizar normas produzidas pelo Poder Legislativo que estejam em desacordo com a Constituição, declarando- as nulas ipso facto. Claro, se não há controle, a Constituição não é, desde logo, obrigatória, como leciona Kelsen:

“Uma Constituição à qual falta a garantia da anulabilidade dos atos inconstitucionais não é, no sentido técnico, plenamente obrigatória. Embora, geralmente, não se tenha consciência disso – porque uma teoria jurídica dominada pela política não permite tal consciência –, uma Constituição em que os atos inconstitucionais e, particularmente, as leis inconstitucionais permanecem igualmente válidos – não permitindo sua inconstitucionalidade que sejam anulados – equivale mais ou menos, do ponto de vista propriamente jurídico, a um desejo desprovido de força obrigatória.”1

Donde, em um Estado cuja Constituição vindica a condição de cume do ordenamento jurídico positivo (logo, hierarquizado), existem limites materiais e procedimentais para que ela seja reformada2;

Page 16

estes limites têm a ver, portanto, com a observância de regras procedimentais específicas dirigidas ao Poder Legislativo, relacionadas a ritos, formas e quórum de votações, mas também com a advertência prévia - e expressa na própria Constituição - de que determinados temas são sumariamente insuscetíveis de alteração: são as cláusulas pétreas, expressamente ali elencadas, e que constituem os limites materiais à revisão.

Todavia, antes de tudo, é preciso notar que essa ideia de limites à revisão pressupõe, de sua vez, que a Constituição seja passível de revisão, e isso deve-se a um aspecto que antecede sua normatividade.

Com efeito, uma norma consagra-se no texto constitucional mediante um processo de adensamento das percepções e concepções culturais prevalentes à época. A Constituição é o estuário do ideário jurídico-cultural partilhado pela sociedade, que vem sendo constantemente revistado pelos influxos próprios da dinâmica da civilização - notadamente a ocidental. Esta ideia é secundada por Häberle:

"A Constituição é cultura. Isto significa: não está feita apenas de materiais jurídicos: a Constituição não é só a ordem jurídica para os juristas e também para que estes possam interpretar as regras antigas e novas. A Constituição também serve essencialmente como guia para os não-juristas: para os cidadãos. A Constituição não é só um texto jurídico ou uma obra normativa, mas também a expressão de uma situação cultural, instrumento de autorrepresentação do povo, espelho de seu patrimônio cultural e fundamento de suas esperanças. As Constituições "vivas", como obra de todos os intérpretes constitucionais da sociedade aberta, são a forma e a matéria que resulta melhor expressão e mediação da cultura, o marco da (re)produção e a recepção cultural, assim como o depósito das informações culturais sobrevindas, as experiências, as vivências e a sabedoria. Igualmente profunda é sua validez cultural." 3

Esta corporificação do princípio em uma norma constitucional é, no entanto, fim de um processo e começo de outro, já que este status trará, como consequência, o balizamento de uma série de atos - estatais ou não - e o fortalecimento daquela ideia que até então apenas difusamente a sociedade partilhava. Para usar uma imagem de Lévi-Strauss, da imaginação e da percepção passa-se à razão.

Sucede que esse processo é continuamente dinâmico; aquilo que se estabelece como a expressão de seu tempo tende a ver-se superado pelo contínuo processo histórico, que transforma a vanguarda em contemporaneidade e, em seguida, em arcaísmo.

A Constituição é uma expressão jurídica, logo cultural; portanto, conformada pelo espaço e pelo tempo4. Sediada num país específico - o componente espacial, por assim dizer -, uma Constituição vê-se permanentemente sob o influxo do tempo, ou da historicidade. É a lição impecável de Paulo Grossi, relativa ao próprio Direito:

"Mais que a rigidez, mais que seu fechar-se em proposições normativas genéricas, a historicidade mostra-se como caráter proeminente do fenômeno jurídico. Desse modo, o direito pertence ao relativo da história, à própria vida da sociedade civil no seu devir, é, em suma, por sua estrutura interna, um material que pode e deve, em seu máximo grau, ser observado, percebido e avaliado do ponto de vista histórico.

(...) se é verdade que o direito é história, é mutabilidade, é relatividade extrema no tempo e no espaço, também é verdade que o direito é a tradução de certos esquemas organizativos desde o impreciso terreno social ao terreno mais

Page 17

específico dos valores, e, enquanto percepção de valores, não pode deixar de ser percorrido por uma tendência a se consolidar, a criar raízes muitas vezes profundas, a se tornar também esquema lógico, sistema. O valor - ainda que expressão da variedade e da variabilidade histórica -, justamente por esse mínimo de certeza que deve conter em si, tende a se fixar, a se separar do variável, a permanecer.

O universo jurídico, percorrido por uma contradição interior, insere-se idealmente entre historicidade e sistema."5

Essa tensão entre sistema e historicidade é que justifica tanto a Constituição quanto a sua possibilidade de revisão; afinal, essa tensão gera uma dinâ-mica que é uma tentativa de superação de opostos. A Constituição espelha a cristalização, a tentativa de imobilização e de rigidez de valores; a sua revisibilidade (aliás nela prevista) é a aceitação, por parte da própria Constituição, de que ela está à mercê do tempo e que necessita de mecanismos idôneos - ou seja, intrassistêmicos - para adaptar-se. Nessa dupla condição - rígida, mas reformável -, reside a superação do conflito, sua sabedoria e sua longevidade.

Essa visão, aliás, supera também a divergência entre Carl Schimtt e Hans Kelsen, no aspecto - próprio da teoria constitucional alemã - da chamada "dupla constituição", conceito que volta à mais recente discussão graças a Mathias Jestaedt. Diz ele:

"Meu conceito de dupla constituição, ou seja, de "constituição por trás da constituição", evoca a besta negra dos constitucionalistas alemães: Carl Schmitt. Ele é o representante mais conhecido da ideia segundo a qual não existe somente uma constituição, a constituição de direito positivo; ele sustenta, ao contrário, que se encontra por detrás desta primeira constituição uma outra constituição mais possante, uma segunda constituição essencialmente diferente da constituição positiva quanto a seu caráter e, por assim dizer, sua essência e existência jurídica. Carl Schmitt denomina essa segunda constituição de "constituição no sentido positivo do termo" ("Verfassung im positiven Sinne") e a define como "escolha global do gênero e da forma de unidade política" ("Gesamtentscheidung über Art und Form der politischen Einheit")." 6

Ora, essa percepção decorre da crença de Schmitt - ainda na explicação de Jestaedt - de que a existência prevalece em relação à norma: "Die Existenz geht der Norm vorauz". Logo, se há uma superioridade da existência quanto à norma ("Überlegenheit des Existenziellen über die bloße Normativität"), que Schmitt considera "a noção positiva de constituição", então quando a "escolha global do gênero e da forma de unidade política" já não corresponde ao texto da Constituição - ou seja, quando as condições materiais que conduziram àquela "lei constitucional" alteram-se -, o texto normativo vê-se privado de seu fundamento e deve desaparecer.

Já Kelsen anunciava ostensivamente seu ceticismo quanto a isso, ou seja, quanto à crença de que um "ser" ("Sein") podia se transformar em um "dever-ser" ("Sollen"). Uma norma só poderia, segundo ele, extrair sua validade a partir de outra norma. Antes de render-se à prevalência do real ante a norma, resignou-se a um fundamento hipotético: a norma fundamental. Como arremata Jestaedt, "a ‘dualização’ da constituição apresentada por Schmitt é efetivamente contrária a um ponto de vista que insiste na autonomia do direito positivo, um ponto de vista que se pode também chamar de ‘positivista’"7. Badura acentua este aspecto em Kelsen:

"Inobstante a relação que vem instaurar-se entre Sein e Sollen, Kelsen estabelece o princípio de sua absoluta contradição como base de sua concepção metodológica. Neste modo de pensar, a norma torna-se objeto de conhecimento apenas recorrendo ao método normativista, mas não recorrendo ao método sociológico advindo da realidade."8

Portanto, entre o "positivismo" de Kelsen e a "superioridade da existência" de Schmitt9, a Consti-

Page 18

tuição optou por uma solução-síntese quanto à sua revisibilidade: previu-a expressamente, de forma que, quando os elementos materiais inspirarem ou exigirem uma alteração sua, a previsão normativa a validará - pois prevista não só na Constituição esta possibilidade como a forma procedimental de fazê-lo -, tornando o movimento de mudança insuscetível de dúvida jurídica.

Sujeita ao tempo e às circunstâncias10, e assim naturalmente propensa a mudanças, a Constituição prevê, portanto, um modo de ser alterada. Cuida-se de processo inteiramente normal, e que não constitui ruptura nem deslegitimação: antes, ao contrário, é pelo modo de revisar-se que a Constituição vai se mantendo em sincronia com a contemporaneidade e renovando sua legitimidade11 - fosse o oposto, ou seja, se ela fosse insuscetível a alterações, certamente, estaria sempre fadada ao advento rescisório de uma outra ordem constitucional que enunciasse os postulados de seu tempo.

É fato, entretanto, que o poder revisional pode ser tanto a inclusão, no texto constitucional, de uma alteração já ocorrida na realidade, como uma vontade de impor prospectivamente uma orientação. Daí a lição, a partir de Häberle, de Mario Dogliani, de que a revisão:

"pode ser um meio através...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT