Reforma da Coisa Julgada Inconstitucional

AutorOrlando Luiz Zanon Junior
Páginas42 - 63

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Palavras-Chave

Coisa julgada; Constitucional; Máxima da proporcionalidade

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1. Introdução

O instituto jurídico da coisa julgada foi concebido há muitos séculos como uma garantia do jurisdicionado de não ser compelido, por via de nova ação, a rediscutir a decisão já proferida pelos juízes, de sorte que tal pronunciamento se tornasse efetivamente definitivo, eliminando, desta forma, as angústias e incertezas que caracterizam a lide. Os romanos já diziam: “Res judicata pro veritate habetur” (ou, em tradução livre: a coisa julgada traduz a verdade). Com o progresso do constitucionalismo, a garantia da coisa julgada passou a constar expressamente da Lei Fundamental de diversos países, que, apesar de reconhecerem a importância do instituto na salvaguarda da segurança jurídica, relegavam para o plano infraconstitucional a delimitação dos contornos da res judicata.

Tal a força que se conferiu a esta garantia do princípio da segurança jurídica, mormente com a sua consagração no patamar constitucional, que os tribunais têm reiteradamente conferido posição absoluta ao instituto, protegendo as decisões judiciais de quaisquer interferências posteriores dos poderes executivo, legislativo e do próprio judiciário1. Para esta corrente jurisprudencial, amplamente difundida, não importa quais os interesses em jogo, o ato posterior de qualquer espécie (administrativo, legislativo ou judicial) não pode sequer tangenciar a membrana protetora da sentença latu sensu proferida pelo juízo.

Entretanto, há casos em que a excessiva proteção à coisa julgada pode acarretar absurdos, inconstitucionalidades ou ilegalidades. No caso das ilegalidades, como será visto, há a possibilidade, dentro de certo prazo, de se desconstituir a barreira protetora da sentença, possibilitandose a reapreciação da lide. O ordenamento jurídico de diversos países concebe a existência desta modalidade de ação desconstitutiva, como é o caso do brasileiro, que prevê a possibilidade do manejo da chamada ação rescisória. A existência do prazo para o desfazimento da ilegalidade se justifica exatamente pela manutenção do princípio da segurança jurídica, mesmo que, em certa medida, relativizado nesta hipótese. Contudo, em se tratando de inconstitucionalidades ou absurdos, o ordenamento jurídico brasileiro não contempla hipóteses de relativização da coisa julgada, admitindose, por extensão, a possibilidade de se questionar a aplicação de norma inconstitucional somente dentro do exíguo prazo de dois anos, a par do que ocorre com rescisão de sentença que aplica preceitoPage 44ilegal. A questão que surge, então, é a seguinte: pode ser conferida à coisa julgada tamanha potência para perpetuar absurdos ou inconstitucionalidades em nome do princípio da segurança jurídica?

É este o ponto nodal do presente estudo, tendo em vista a moderna teoria das normas constitucionais, encabeçada principalmente pelo renomado jurista alemão Robert Alexy, em face do sistema jurídico brasileiro.

E, para que se possa alcançar uma posição satisfatória ou ao menos razoável2 sobre o tema, mister se faz tecer algumas considerações sobre a natureza das normas constitucionais, as características da coisa julgada e a máxima da proporcionalidade. Exatamente sobre estes assuntos se discorre na seqüência, permitindo que, por meio de uma leitura seqüencial, seja possível captar a solução proposta para a resolução desta questão no âmbito da dogmática constitucional moderna.

2 Breves noções sobre normas constitucionais

Como o instituto da coisa julgada encontra amparo constitucional e o presente estudo discorre sobre a possibilidade de reforma da coisa julgada inconstitucional, nada mais coerente do que tecer algumas considerações preliminares acerca da teoria das normas constitucionais, que constitui premissa básica para o aprofundamento das questões posteriores.

Em primeiro lugar, cabe destacar o já amplamente conhecido princípio da supremacia da Constituição princípio da supremacia da Constituição, que configura dogma basilar do Estado Democrático de Direito. Segundo este princípio implícito, as normas constitucionais, sejam elas materialmente constitucionais (pois encerram ditame de organização estatal ou de direito fundamental) ou apenas formalmente constitucionais (que, apesar de constarem do texto constitucional, têm como conteúdo ditame alheio à função organizacional e garantística da constituição), gozam de prevalência total sobre todas as demais normas que compõem o ordenamento jurídico3 . Para corroborar este entendimento, podese parafrasear Carlos Ayres Britto que, em palestra proferida antes de sua nomeação para compor o Supremo Tribunal Federal (STF), esclareceu que não é a Constituição que está contida no sistema normativo, mas sim o sistema normativo que é decorrência da Constituição, quePage 45lhe constitui o ápice e é a sua condição de validade. E, nos dizeres do constitucionalista José Afonso da Silva, “todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se se conformarem com as normas da Constituição Federal” (1998, p. 48).

Outrossim, sempre que se estiver diante de uma contradição entre normas constitucionais e normas infraconstitucionais, as primeiras deverão prevalecer.

Resta perquirir acerca das normas que compõem o texto constitucional. Antes, contudo, é preciso estabelecer uma diferença entre os conceitos de texto constitucional (ou dispositivo constitucional) e norma constitucional constitucional) e norma constitucional. Texto constitucional é o texto constante do instrumento em si (é o significante, para a hermenêutica jurídica) ou, em outros termos, é o texto formado por modais deônticos de proibição, permissão ou obrigação. Norma constitucional, por sua vez, é o significado que se dá para determinado texto (ou dispositivo) constitucional. Desta forma, um determinado dispositivo constitucional pode implicar diferentes normas constitucionais ao longo do tempo ou dependendo do contexto em que se insere. Suponhase, como exemplo, que conste o seguinte texto da Constituição: “É proibido usar biquíni”. Tal hipotético dispositivo constitucional não é unívoco, como parece à primeira vista, podendo assumir diferentes significados conforme a época da interpretação e o seu contexto social. Explicando: se a interpretação se der no âmbito de um convento de freiras durante o verão, implicará a norma constitucional que proíbe a utilização de trajes tão sumários pelas freiras, mesmo em dias quentes. Em contrapartida, se a hermenêutica ocorrer no contexto de uma praia de nudismo, significará norma absolutamente diversa, impedindo que as banhistas se utilizem sequer de tais vestimentas mínimas (WARAT, 1995, p. 67).

Apreendida esta diferença, é necessário, ainda, para os fins deste estudo, se delimitar a diferença entre regras e princípios diferença entre regras e princípios no âmbito constitucional. Segundo a teoria dogmática mais aceita hodiernamente, tanto as regras como os princípios são normas, pois ambos implicam em comandos de dever ser e ambos contêm os modais deônticos de proibição, permissão ou obrigação. Não se pode aceitar as antigas teorias que relegam os princípios ao segundo plano, atribuindolhes uma função meramente completiva ou interpretativa das outras disposições normativas. Neste sentido, transcrevese a lição de Norberto Bobbio, in verbis:

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Os princípios gerais são, a meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. O nome de princípios induz em engano, tanto que é velha a questão entre juristas se os princípios são ou não normas. Para mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as demais. E esta é a tese sustentada também pelo estudioso que mais amplamente se ocupou da problemática, ou seja, Crisafulli. Para sustentar que os princípios gerais são normas os argumentos vêm a ser dois e ambos válidos: antes de tudo, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê porque não devam ser normas também eles: se abstraio de espécies animais obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para a qual são abstraídos e adotados é aquela mesma que é cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso. Para regular um comportamento não regulado, é claro: mas agora servem ao mesmo fim para que servem as normas expressas. E por que então não deveriam ser normas? (1999, p. 158/159).

Os principais doutrinadores da atualidade adotam o mesmo entendimento (atribuindo força normativa aos princípios), entre eles Robert Alexy4 , Paulo Bonavides (2002, p. 228/238) e Ronald Dworkin5 . Seria uma fuga muito grande do escopo deste trabalho...

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