Reflexões sobre a inelegibilidade por vida pregressa negativaAndré Puccinelli Júnior

AutorDaniel Castro Gomes da Costa
Páginas325-340

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Recente discussão aflorou na Justiça Eleitoral brasileira sobre a eventual inelegibilidade de candidatos que respondam ações criminais ou cíveis de improbidade administrativa, sem condenação transitada em julgado, por manterem movimentada vida pregressa supostamente incompatível com a representação popular.

O tema é mais complexo do que aparenta ao primeiro olhar, posto deitar raízes na moderna dogmática constitucional e, em especial, nos capítulos reservados à análise da principiologia e da eficácia normativa da Lei Fundamental.

Juristas de escol já se ocuparam em classificar as normas constitucionais à luz de sua eficácia e aplicabilidade, destacando-se o professor JOSÉ AFONSO DA SILVA que, em primoroso trabalho1, sistematizou-as em três categorias distintas, a saber: I - normas constitucionais de eficácia plena ou auto-aplicáveis; II - normas constitucionais de eficácia contida; III - normas constitucionais de eficácia limitada.

As normas de eficácia limitada não surtem a plenitude de seus efeitos de imediato, necessitando, em geral, de regulamentação legislativa ou injunções administrativas para lograrem aplicação integral.

Pois bem, consoante pacífico entendimento doutrinário e jurisprudencial, pode-se afirmar convictamente que a norma constante do § 9º, do art. 14, da CF/88, é de eficácia limitada, uma vez que sua aplicação está condicionada à aprovação, pelo Congresso Nacional, de lei complementar tendente a estabelecer as hipóteses fático-jurídicas e os critérios objetivos para fixação das inelegibilidades aí previstas.

Por palavras outras, enquanto os casos de inelegibilidades relativas - e não absolutas - aí relacionados não forem alvos de ulterior regulamentação legislativa, ter-se-á

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uma norma constitucional incapaz de surtir na prática os efeitos a que se preordena, consoante se depreende de sua própria dicção normativa, senão vejamos:

Art. 14. (...) § 9º. Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

O assunto é um tanto vetusto e encontra-se inclusive sumulado pelo Tribunal Superior Eleitoral que, reconhecendo cuidar-se de dispositivo de limitada eficácia, sanou todas as dúvidas jungidas à análise da falaciosa e inexistente auto-aplicabilidade do § 9º, do art. 14, da CF, editando súmula com o seguinte teor:

Súmula 13. Não é auto-aplicável o § 9º, do art. 14, da Constituição, com a redação da Emenda Constitucional de Revisão nº 4/94.

Vislumbra-se, pois, com meridiana clareza, que o constituinte originário optou por reservar exclusivamente à lei complementar a fixação de novos casos de inelegibilidade, justamente por atentar para a relevância do tema em discussão.

Os direitos políticos ativos (de votar, subscrever projeto legislativo de iniciativa popular e participar de plebiscito ou referendo) e passivos (de disputar cargos eletivos) constituem uma das várias espécies de direitos fundamentais, estando imunes inclusive às investidas do constituinte derivado que deseje aboli-los.

Ora, se o núcleo essencial dos direitos político-eleitorais, entre os quais está o de se candidatar e receber votos de eventuais simpatizantes, não pode ser extinto sequer por emenda constitucional fora do arquétipo originalmente traçado, que dizer então da pretensão de obstar uma candidatura legítima com fulcro em suposta inelegibilidade por vida pregressa negativa que, repita-se, em momento algum foi estabelecida pela Constituição Federal?

A Carta Política de 1988, é bom que se frise, não criou nenhuma espécie de inelegibilidade auto-aplicável por vida pregressa supostamente incompatível com a representação popular. Pelo contrário, limitou-se unicamente a repassar tal incumbência ao Congresso Nacional que, se desejar criar tal sorte de inelegibilidade, deverá obrigatoriamente aprovar lei complementar para dita finalidade, o que até o presente momento não ocorreu.

De fato, a Lei Complementar nº 64/90, ao elencar uma variada tipologia de inelegibilidades, não previu esse fato como impeditivo invencível para registro de candidatura em nenhum de seus incisos, parágrafos, alíneas ou artigos.

Nesse sentido, merece transcrição o magistério de ALEXANDRE DE MORAES:

"A lei complementar é a única espécie normativa autorizada constitucionalmente a disciplinar a criação e estabelecer os prazos de duração de outras inelegibilidades relativas, sendo-lhe vedada a criação de inelegibilidades absolutas, pois estas são previstas taxativamente pela própria Constituição.

Existe, portanto, reserva de Lei Complementar, e, consequentemente, qualquer outra lei, regulamento, regimento, portaria ou resolução que verse o assunto

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será inconstitucional, por invasão de matéria própria e exclusiva daquela espécie normativa."2Dissertando sobre o tema, o constitucionalista UADI LAMMÊGO BULOS espraia a mesma luz sobre o temário em questão:

"Leis ordinárias, medidas provisórias, regulamentos, portarias, regimentos, resoluções ou quaisquer outros veículos normativos, podem dispor sobre inelegibilidades negativas?

- Não. Apenas leis complementares disciplinam esse assunto. O art. 14, § 9º, previu uma reserva de lei complementar. Nenhum outro tipo normativo, seja qual for, poderá estabelecer outros casos de inelegibilidade relativa. Do contrário, haverá invasão constitucional de competência. Aliás, o constituinte deixou sob os auspícios da União Federal, e de mais ninguém, o encargo de dispor sobre esse tema (CF, art. 22, I)."3Salta aos olhos, portanto, a impossibilidade de extrair diretamente do texto constitucional novel hipótese de inelegibilidade cuja instituição o constituinte reservou exclusivamente ao alvedrio do legislador complementar.

Pretender transferir esse mister legiferante à magistratura equivaleria a fazer ouvidos moucos ao princípio da separação dos poderes, que, por sua importância transcendental, foi alçado ao patamar de cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º, III).

Anote-se, outrossim, que a competência para legislar sobre direito eleitoral e, consequentemente, sobre inelegibilidade, é de domínio exclusivo da União (CF, art. 22, I), exercitável apenas mediante lei complementar (CF, art. 14, § 9º), a ser aprovada com o substancial apoio de no mínimo 41 senadores e 257 deputados federais (CF, art. 69 - maioria absoluta), sendo, ademais, insuscetível de delegação legislativa ao Presidente da República (CF, arts. 68, § 1º, e 62, III) e ao Poder Judiciário (CF, art. 60, § 4º, III).

Outro não é senão o entendimento perfilhado pelo Tribunal Superior Eleitoral, a saber:

"Legislar sobre matéria de inelegibilidade é da competência privativa da União Federal e somente pode ser regulada por lei complementar federal (Constituição Federal, art. 14, § 9º c/c art. 22, I" (TSE - Consulta nº 397 - Classe 5ª - Distrito Federal - Brasília - Resolução nº 20.144 - Rel. Min. Eduardo Alckmim, DJ, Seção I, 9.04.1998, p. 4)

Nada obstante, há quem defenda que a simples instauração de processo criminal ou de improbidade administrativa contra dada pessoa - pouco importando a culpa ou inocência pelas acusações desferidas -, constituiria razão bastante para a aplicação imediata da sanção de inelegibilidade, que seria cominada mesmo na ausência de regulamentação legislativa do art. 14, § 9º, da CF, como resposta à crescente onda de moralização do setor público.

Em verdade, está a se presenciar um injustificável ataque, às mais lídimas garantias do cidadão - com a implosão de princípios estruturantes como o da segurança

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jurídica, da presunção da inocência, da dignidade humana, da ampla defesa e do contraditório - para obstar candidaturas legítimas com esteio numa nova espécie de inelegibilidade que não foi estabelecida pela Constituição Federal ou pela Lei Complementar nº 64/90, admitindo-se a substituição de critérios que deveriam ser objetivamente plasmados pelo legislador complementar pelo subjetivismo moralizador do julgador, o que, data venia, afigura-se incorreto.

Há tempos vêm os pretórios brasileiros rechaçando esta ilegal e inconstitucional tentativa de privar dadas pessoas do pleno exercício de seus direitos políticos, consoante se depreende do aresto colacionado abaixo:

"EMENTA - Registro de candidatura. Deputado Estadual. Impugnação. Vida pregressa. Ação penal e ação civil de improbidade administrativa. Ausência de sentença condenatória transitada em julgado. Causa de inelegibilidade. Inocorrência. Impugnação improcedente. Registro deferido.

A existência de ação penal em curso, bem como de ação de improbidade administrativa, sem sentença condenatória ou decisão transitada em julgado, tidos como configuradores de vida pregressa não recomendável a afastar a idoneidade moral, não ensejam causa de inelegibilidade ante o princípio da presunção de inocência, em face da ausência de sentença condenatória ou de seu trânsito em julgado, sendo de eficácia contida o disposto no artigo 14, § 9º, da Constituição Federal, por conter hipóteses ainda não tipificadas em Lei Complementar.

Defere-se o pedido de registro de candidato ao cargo de Deputado Estadual quando satisfeitos os requisitos legais pertinentes."4Por aí se vê que o enquadramento de processos penais ou de improbidade administrativa em curso, sem condenação definitiva, como testadores de vida pregressa desabonadora, a afastar a tão reclamada idoneidade moral, não encerra novel hipótese de inelegibilidade.

Apesar desse remansoso entendimento, o Tribunal Superior Eleitoral acirrou os debates ao decidir, por apertado score - maioria vulnerável de quatro votos a três -, a Consulta nº 1.621, Classe 10ª, João Pessoa/PB, afastando a tese da inelegibilidade por fatos pretéritos negativos face à violação de princípios...

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