A RECUSA E O INCOMODO: Uma leitura da leitura de Luciano Oliveira sobre Michel Foucault.

AutorFilho, Roberto Efrem
CargoResena de libro

A RECUSA E O INCOMODO: Uma leitura da leitura de Luciano Oliveira sobre Michel Foucault Oliveira, Luciano. O Aquario e o Samurai: uma leitura de Michel Foucault. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2017.

"E exatamente porque o homem esta imerso na historia, exatamente porque o seu olhar sobre o passado e sempre um olhar do presente, que ele pode emitir julgamentos que, mesmo sendo subjetivos, podem ser objetivamente validos. Sim, do ponto de vista da constelacao de Sirius, nao ha nenhuma diferenca entre o "pau-dearara" a que meus colegas foram submetidos e a reclusao com direito a visita intima a que depois tiveram direito. Ou seja: do ponto de vista dos militantes de esquerda que, nos anos 70 do seculo passado no Brasil, eram engolidos pela repressao e cuja esperanca era conseguir sobreviver ate passarem a fase oficial do processo na Justica Militar, ha uma diferenca, sim. No limite, a "canconeta" antihumanista pode se transformar num esnobismo intelectual contra o qual se rebela a sensibilidade humana ate no sentido mais elementar, fisico, da expressao".

Luciano Oliveira, O Aquario e o Samurai

Luciano nao sabe, mas na estante da sala de trabalho, eu mantenho uma prateleira reservada para os seus livros. Estao la--logo abaixo dos Foucault, Arendt e Butler; ao lado dos estudos sobre crime e criminologia--, os meus "Luciano Oliveira": o livro a respeito da pena de morte e do carrasco; o livro sobre a democracia e o pensamento de Claude Lefort; o texto com as dez licoes sobre Hannah Arendt; a coletanea de ensaios acerca de Machado de Assis e Graciliano Ramos; a coletanea de ensaios de "Sociologia Juridica", com os incontornaveis "Sua Excelencia o Comissario" e "Nao fale do Codigo de Hamurabi! "--os quais eu li aos vinte anos, entre uma aula e outra da Faculdade de Direito do Recife, e que me acompanham em toda sala de aula desde que me tornei professor; o manual (nada manual) de Sociologia Juridica; e, enfim, o cortante livro sobre a tortura, aquele que me fez compreender definitivamente as suas posicoes, mas sobretudo a sua recusa profunda a qualquer formulacao teorica ou "teoria geral" que elimine ou subestime a potencialidade dos sujeitos, a sua conflituosa "humanidade".

Agora, "O Aquario e o Samurai: uma leitura de Michel Foucault", o seu livro mais recente, publicado em 2017 pela Lumen Juris, prepara-se para se juntar aos demais naquela prateleira. Com ele, a recusa profunda a que me referi acima se volta a um dos mais notaveis intelectuais do seculo XX, autor de trabalhos que se tornaram canones por mais antifoucaultiano que isso possa soar...--em diferentes areas do conhecimento, disciplinas academicas e, em especial, no que me toca mais diretamente, nos campos de estudos sobre crime e violencia e sobre genero e sexualidade. A "leitura de Foucault" levada a cabo por Luciano Oliveira consiste, portanto, numa oportunidade unica para o adensamento analitico daquela recusa, isto tanto em razao da mencionada importancia da obra em questao quanto por conta de um incomodo antigo--e fundante--que parece haver acompanhado parte significativa dos empreendimentos teoricos de Luciano: o incomodo provocado pelo "anti-humanismo" presente em "Vigiar e Punir", o primeiro texto de Foucault com que ele se deparou, posto em suas maos por Joaquim Falcao no inicio dos anos 80.

Numa entrevista concedida a Jose Luiz Ratton em abril de 2011 (1), Luciano Oliveira conta que em fevereiro de 1976, no final de semana que antecedeu o carnaval, ainda antes de sua saida de Aracaju em direcao ao mestrado em sociologia no Recife, muitas pessoas do seu circulo de amizades comecaram a desaparecer. Eram sindicalistas, estudantes, professores, advogados, alguns deles amigos intimos de Luciano, que, ao que entendi, possuiam ligacoes mais ou menos proximas com movimentos e organizacoes de esquerda. "Passei um final de semana pavoroso, esperando minha vez de ser levado sabia-se la para onde!". Todos reapareceram uma semana depois, com marcas de tortura. "Isso foi uma coisa que me chocou muito e, definitivamente, me marcou como pessoa e intelectual". Entretanto, o "choque" derivado dessa experiencia, associado a consequente defesa de direitos humanos que se eleva diante de tamanha crueldade, confrontar-se-ia alguns anos depois, ja durante o mestrado, com o seu contato com as criticas de origem marxista a nocao de direitos humanos e, notadamente, com as criticas foucaultianas ao reformismo humanista do sistema penal desenvolvidas em "Vigiar e Punir".

O primeiro tratamento analitico que Luciano Oliveira daria a esse confronto ocorreu por ocasiao de sua pesquisa de doutorado, orientada por Claude Lefort e realizada junto a Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales, na Franca, sobre o tema da relacao dos direitos humanos com o pensamento politico de esquerda no Brasil (2) (Oliveira, 1991). Na tese e em alguns textos provenientes dela e publicados posteriormente no Brasil (Oliveira, 1992; 1995; 2009), Luciano Oliveira explorou o argumento de que os anos de Ditadura Militar trouxeram para as esquerdas brasileiras mas nao so para elas--a incorporacao da defesa dos direitos humanos num contexto em que as violencias, os desaparecimentos e as torturas passaram a marcar as experiencias e os corpos nao apenas de seus amigos de Aracaju, mas de parte da classe media brasileira, embora tais violencias, desaparecimentos e torturas ja marcassem, desde muito, as experiencias e os corpos da maior parte de nossa populacao, racializada e comumente vitimada pelo modus operandi policial nacional de gestao das "classes perigosas" (3).

Foi como se, face ao inadmissivel, as vitimas da "guerra suja" tivessem descoberto uma nova especie de "ultima instancia": a etica ... E, o que e interessante, as referencias a essa instancia etica nao se limitaram a uma tatica ocasional, uma vez que foram incorporadas ao discurso mas tambem a pratica politica dos sobreviventes da "guerra suja" como uma estrategia permanente (Oliveira, 1992, p. 155).

Segundo Oliveira (1992), a incorporacao da defesa dos direitos humanos como uma "estrategia permanente" acabou produzindo alguns deslocamentos nas compreensoes de nossas esquerdas, ate entao presas a metafora "estrutura--superestrutura" e a definicao do direito como reprodutor de relacoes sociais anteriores. "E dizer: a experiencia vivida do 'horror superlativo' foi um acontecimento politico, mas tambem teorico, na medida em que significou uma ruptura na maneira como o marxismo tradicional encarava alguns fenomenos tidos por superestruturais" (Idem, p. 156). Essa ruptura se baseou, desse modo, na vivencia de uma experiencia extrema, a tortura, a violencia. Dai a imperatividade da afirmacao dos direitos humanos. Dai o incomodo de Luciano diante da acepcao foucaultiana de que as investidas dos reformadores penais do seculo XVI11, sobremaneira de Cesare Beccaria, contra a tortura, o suplicio e as demais formas violentas e corporais de aplicacao da pena nao passavam de uma retorica a dissimular o projeto de uma "sociedade disciplinar".

"O Aquario e o Samurai" se inicia, como notei acima, a partir do adensamento analitico daquela recusa a reducao teorica dos sujeitos a determinacoes sociais. Esses sujeitos sao os amigos torturados de Luciano na Aracaju de 1976, sao os militantes de esquerda que adotaram a defesa dos direitos humanos como estrategia, tais quais sao os reformadores humanistas que viam em cenas como a do suplicio de Damiens--apresentada por Foucault nas primeiras paginas de "Vigiar e Punir"--uma atrocidade que nao deveria se repetir. Logo na introducao do livro, Oliveira alerta que nao se opoe, "obviamente", a necessaria analise das condicoes sociais e historicas nas quais os reformadores penais obtiveram exito. Salienta que se deve mesmo perquirir os porques de, apenas no seculo XVI11, as posicoes de certos intelectuais a esse respeito haverem se transformado num "movimento de opiniao". O que lhe parece excessivo--e, como diz, "perigoso"--"e nao ver no acontecimento historico que foi o movimento abolicionista qualquer coisa que vai alem da cadeia das condicoes socio-historicas nas quais ele se inscreve, e que, portanto, permanece irredutivel as mesmas" (Oliveira, 2017, p. 08).

Enfrentando a ilacao foucaultiana, Luciano Oliveira se ergue contra a negacao do sujeito; a negacao das potencialidades e complexidades dos sujeitos. Seus amigos, os militantes de esquerda, os reformadores, mas, ironicamente, o proprio Michel Foucault, aquele segundo o qual o "humanismo penal" e a eliminacao dos suplicios consistiam num subproduto da disciplina, mas que era, a um so tempo, um aguerrido militante contra a tortura, a pena de morte e as detencoes arbitrarias. E levando em conta essa "contradicao" que Oliveira questiona acerca de Foucault: "como ve-lo como um simples adversario do humanismo penal"? E sugere: "Ha que se ver nas suas aporias, acho, algo de mais sofisticado--uma disjuncao, digamos assim, entre sujeito empirico e sujeito epistemologico" (Oliveira, 2017, p. 15). Para dar conta dessa disjuncao, Luciano Oliveira se vale de duas imagens acionadas pelo historiador Paul Veyne (2008), amigo de Foucault e, como ele, professor do College de France: a imagem do aquario e a imagem do samurai.

A imagem do aquario remete a ideia de que estamos sempre num deles sem nos apercebermos disso, sem conhecermos as suas paredes, como os peixinhos dourados que o habitam. A imagem do samurai, por sua vez, alude a possibilidade de existencia de acontecimentos disruptivos ou, com eles, de uma criatura "anormal" no interior de um aquario em meio aos peixinhos dourados. Afinal, "se estamos todos presos ao aquario do tempo--ou da episteme, como talvez dissesse Foucault--em que vivemos, e cujas paredes nem vemos, como e possivel que surjam novos aquarios?" (Oliveira, 2017, p. 16). De acordo com Paul Veyne e Luciano Oliveira, Michel Foucault seria um desses samurais...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT