Reconciliando os irreconciliáveis: Globalização Neoliberal e Direitos Humanos

AutorPaul O’Connell
Páginas176-198

Paul O’Connell. LL.B. (Trinity College Dublin), LL.M. (NUI Galway). Lecturer in Law, National University of Ireland, Galway. Este artigo é baseado no texto originalmente produzido para a Conferência Social de Justiça e Direitos Humanos na Era da Globalização, ocorrida em Leuven, Belgium em 21-23 de Agosto de 2006 e enriquecida com os comentários de participantes da referida conferência, para os quais dedico minha gratidão. Antes da conferência, versões anteriores do presente documento foram beneficiadas pela ajuda dos comentários de Geraldine O'Connell e Padraic Kenna e, posteriormente, um primeiro rascunho do presente artigo foi beneficiado com a ajuda de dois colaboradores anônimos da Human Rights Law Review, em relação aos quais o autor também deseja manifestar o seu agradecimento. Evidentemente que a responsabilidade por quaisquer erros ou deficiências do texto é do autor.

    Tradução Bruno Costa Teixeira

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1. Introdução

Neste artigo pretendo desenvolver e defender, de forma tão direta quanto possível, o argumento de que a proteção aos direitos fundamentais não pode ser comprometida e, ao mesmo tempo, deve-se olhar de forma crítica o atualmente dominante modelo de globalização,1 que chamarei aqui de globalização neoliberal. Meu argumento é no sentido de que os defensores dos direitos humanos (sejam eles universitários, militantes populares ou membros de órgãos oficiais de proteção) devem ter uma postura firme diante das ortodoxias predominantes, a fim de que possam enraizar, com antecedência, uma verdadeira cultura de proteção aos direitos humanos. Na primeira parte deste artigo, destaco os contornos daquilo que considero um discurso dominante e emergente sobre a relação entre direitos humanos e globalização. Posteriormente, comentarei que esta narrativa foi mal-entendida, ou melhor, falhou ao interrogar inadequadamente o processo de globalização, e, por fim, ofereço umaPage 177 alternativa a este processo, com uma conseqüente discussão acerca da relação entre os direitos humanos e a globalização.

À medida que estabeleço minha compreensão do modelo atual e dominante do processo de globalização, quer dizer, a globalização neoliberal, afirmo que esta forma de globalização é intrinsecamente incompatível com a defesa dos direitos humanos. Com o intuito de fundamentar esta proposição que proponho para lidar com o antagonismo entre a globalização neoliberal e os direitos humanos proponho duas distintas, embora intimamente relacionadas, áreas, a saber: a tensão entre a globalização neoliberal e os direitos humanos no campo teórico e, o real e negativo impacto de tal globalização sobre aqueles direitos, na prática. No que tange ao aspecto teórico devo me concentrar em duas críticas no sentido de que a globalização neoliberal e os direitos humanos são incompatíveis, nomeadamente, o conflito ético ou ideológico (ou, na verdade, ontológico) entre as premissas de cada um e os diferentes papéis que cada um atribui ao Estado.

No que se refere ao conflito entre globalização neoliberal e direitos humanos no campo empírico e com o objetivo de reforçar meu argumento supramencionado, utilizo como recurso os trabalhos de três Relatores Especiais das Nações Unidas, no domínio dos direitos fundamentais: educação, saúde e habitação. Nos últimos anos, os relatórios produzidos pelos funcionários provenientes de cargos de cada uma destas áreas indicadas têm indicado uma irredutível tensão entre o modelo dominante da globalização e a proteção dos direitos humanos. A partir da análise destes relatórios, pode-se chegar à conclusão de que a tensão entre teóricos da globalização neoliberal e dos direitos humanos também é manifestada no 'mundo real'. Após ter demonstrado as incompatibilidades entre os dois elementos aqui tratados, devo continuar a defender que todos os defensores dos direitos humanos são confrontados com uma escolha (e não é uma escolha fácil, mas necessária): aceitar o atual processo global que é intrinsecamente incompatível com o que defendem, ou utilizar os direitos humanos enquanto paradigma para superar o desafio presente, e reformar o modelo de globalização contemporâneo.

2. O Padrão Narrativo

Embora acadêmicos de Direito, incluindo os professores universitários especialmente envolvidos com direitos humanos, 'chegaram um pouco tarde para o debate acerca da globalização’,2 podem, discernir a emergente ortodoxia neoliberal da forma como advogados das Nações Unidas abordaram a relação entre direitos humanos e globalização. Neste ponto, gostaria de pormenorizar a referida e incipiente ortodoxia e destacar duas principais lacunas dentro do presente padrão de narrativa. Primeiro, e talvez o mais importante, é o 'prejudicado' modo com o qual comentaristas abordaram o conceito de globalização em si, tendo em vista que não assumiram o labor de encarar o conceito de forma geral, mas somente enquanto algo apolítico e natural.3 Segundo, que é provavelmente conseqüência do primeiro, éPage 178 a tendência para aceitar a ortodoxia do modelo neoliberal sobre a relação entre direitos humanos e globalização. Ambas as temáticas serão destacadas e exploradas neste artigo.

Um exemplo extremo da primeira lacuna pode ser encontrado em um documento produzido por uma antiga Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Mary Robinson, quem inexplicavelmente utiliza o termo "globalização" em 10 ocasiões, sem explicar ao menos uma vez o que entende pelo termo.4 De maneira cômoda, contudo, comentou algo em torno da concepção de McCorquodale, que, por sua vez, reflete um denominador comum a respeito do tema – no sentido de que ‘Globalização […] é essencialmente um processo político, econômico, social e de relações culturais, não restrito aos limites territoriais de Estado algum e no qual nenhum Estado ou entidade deixa de ser afetado por influências externas ao seu controle interno’5 – antes de passar a discutir a relação entre globalização e direitos humanos, sob o pressuposto implícito de que a definição supra é suficiente para esclarecer os termos do debate.6

Recentemente, um exemplo flagrante desta abordagem da globalização tem sido apresentada por estudiosos dos direitos humanos tais como Rhoda Howard-Hassmann.7 Para Howard-Hassmann as forças da globalização não são passíveis de qualquer freio e as mudanças que elas vão gerar, dentro dos - e entre - Estados é inevitável. Por conseguinte, o debate em torno do fato de que as alterações forjadas pela globalização serão boas ou ruins é irrelevante.8 O ponto de vista de Howard-Hassmann acerca da globalização é um exemplo dos arquétipos prejudicados de abordagem do tema, porque afirma, pelo menos de forma implícita, que é inviável trabalhar fora das forças da natureza; este é o discurso dominante que está surgindo.9 O problema desta abordagem é que ela omite o fato de que a globalização não é um fenômeno natural, neutro, mas sim um 'contingente processo histórico'.10 Além disso, as limitações da abordagem acerca da exata natureza e dasPage 179 causas da globalização conduzem os agentes sociais, em geral, a conclusões e prescrições políticas pouco satisfatórias.

A segunda lacuna está na emergente narrativa padrão que é derivada quase diretamente da primeira. Isto acontece em razão da incapacidade de manter um debate sério acerca do conceito - e do processo - de globalização, de modo que os comentaristas desta temática tendem a adotar, explícita ou implicitamente, a ortodoxia neoliberal no que se refere aos direitos humanos. Ademais, a ortodoxia neoliberal no que tange aos direitos humanos assume a lógica da expansão do capitalismo baseado na regra do 'laissez-faire', com o pretexto de que haverá conseqüente melhora global no que se refere à seguridade social e ao bem-estar, além de, supostamente, apresentar uma proteção aos direitos humanos, não obstante o fato de que, conforme observa Thomas11, não há provas concretas para justificar isso.12 Assim sendo, diante da falta de coragem no sentido de abordar a natureza real da globalização, o discurso convencional acabou por adotar a ortodoxia neoliberal, dirigindo-se aos líderes da economia global, com o escopo de legitimar as políticas por eles implementadas.13

Por exemplo, McCorquodale, que é, geralmente, contrário à existência de qualquer impacto da globalização sobre os direitos humanos, já afirmou que a reforma das agências especializadas, como o Banco Mundial, poderá fazer com que tais órgãos virem 'grandes forças para a proteção dos direitos humanos’;14 de modo a ignorar o fato de que essas instituições estão, na verdade, empenhadas em servir aos interesses das elites econômicas e tendem, em geral, a ‘compreender o mundo por meio de óculos de cor neoliberal’.15 Do mesmo modo, Robinson foi convidado pelo Banco Mundial, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e por instituições financeiras, bem como pelo presidente dos Estados Unidos da América, para ajudar na construção de um processo de globalização mais ético e humano,16 ignorando-se que o papel fundamental destas instituições e do governo dos EUA, ao serviço das elites econômicas globais, tem sido manter a ordem neoliberal mundial.17

Ademais, a abordagem de Howard-Hassmann é a mais enfeitada. Depois de aceitar a inevitabilidade do processo de globalização, conforme atualmente constituída, ela passa a argumentar que, enquanto o declínio do capitalismo global poderia resultar...

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