Racionalização do ordenamento jurídico e democracia

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas95-104

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A proposta temática do presente artigo coloca em questão dois problemas aparentemente não relacionados: o saber técnico relativo à melhor organização e redação das leis e um regime político da vida cotidiana concreta, em que impere a opinião e a vontade públicas formadas sobre a base pluralística do respeito à opinião e à vontade de cada um dos afetados pelas decisões concernentes à sua vida em comum. Começo a reflexão por este ponto: qual a relação do exercício da demo-cracia com um possível exercício técnico legislativo de racionalização do ordenamento jurídico? Ou melhor: qual relação existiria entre o exercício de nossos direitos fundamentais e a racionalização técnica do ordenamento?

Maurizio Fioravanti, ao reconstruir a história do conceito de Constituição, localiza, no interior do constitucionalismo moderno, uma tensão permanente e inafastável entre a demo-cracia e o próprio constitucionalismo, ou seja, e a própria idéia de Constituição, de governo limitado. Como veremos, há uma tensão permanente entre a exigência de democracia, de afirmação da soberania popular, por um lado, e, por outro, a cobrança de um governo que se deixe limitar pelo respeito aos direitos fundamentais, pela Constituição, que, enquanto tensão de opostos, que, a um só tempo, se complementam e reciprocamente se requerem, pode ser bastante produtiva. No entanto, como condição para que possamos até mesmo visualizar a potencialidade dessa tensão, é imprescindível que sejamos capazes de aprender com os enganos de nossa própria história tanto no campo da vivência institucional quanto no da produção teórica que justificou e alicerçou a práticas anteriores. É requerida aqui a superação da postura tradicional que apenas enfocava essas duas dimensões, que hoje sabemos, além de opostas também se complementam e se requerem reciprocamente, como dimensões simplesmente opostas, no sentido de antagônicas e antitéticas, a exigir a opção por uma delas.2 O que conduzia no terreno político a que as pessoas ou assumissem as crenças democráticas, histórica e substantivamente enraizadas, marcadas por uma postura mais do que republicana, comunitarista, ou as crenças procedimentais liberais do governo representativo e nada democrático do governo limitado à “melhor sociedade,” ou seja, àqueles sujeitos de direito individual com renda suficiente para atender aos requisitos censitários para ser juridicamente considerado merecedor da cidadania, quer passiva (referente àqueles que no censo pré-eleitoral alcançassem apenas o patamar de renda anual requerido para o exercício do direito de voto), quer ativa (que, por sua vez, qualificava os que atingissem o escalão de renda anual requerido para que pudessem se candidatar pelo menos a um cargo eletivo local). É claro que, por um lado, a experiência do voto censitário restringiu-se ao período do primeiro constitucionalismo, o do paradigma do Estado de Direito, em que preponderaram as idéias liberais, e, por outro, na segunda fase do constitucionalismo, a que corresponde ao paradigma do Estado Social, por sua vez, preponderaram ideais republicanos e mesmo comunitaristas. Contudo, o embate entre essas posições sempre se fez ativamente presente em todas as fases e, na segunda, marcará a reocupação da idéia de Constituição como o projeto de vida daquele corpo coletivo, .

É fácil verificar que, de fato, quanto mais democrático é um regime político, tanto mais a vontade popular tende a imperar e, portanto, tanto menos limites constitucionais são impostos a essa vontade e à suas decisões. Por outro lado, quanto mais limites constitucionais houver, tanto mais estreita é a possibili-dade de se dar livre curso a tal vontade; tanto menos campo é deixado à deliberação dos representantes da vontade popular eleitos para o exercício cotidiano da tomada de decisões.

No entanto, analisada mais profundamente essa oposição, verifica-se que essa relação não é assim tão simples, não se reduz a um mero antagonismo, como até então enfocado pela tradição. Se, por um lado, democracia e constitucionalismo efetivamente se opõem, se esses dois conceitos operam, eles próprios, efetivamente como princípios opostos, como princípios contrários, e há, de fato, uma grande tensão entre eles, por outro lado, é fundamental ter-se em conta que, ainda que contrários, não se contradizem, mas, ao invés, supõem-se mutuamente. Esse o problema do constitucionalismo anterior que, quer pela via da tradição liberal, quer pela via da tradição republicana, quer no paradigma do Estado de Direito, quer no do Estado Social, enfocava essa tensão constitutiva do próprio constitucionalismo como uma oposição antitética. Esses princípios. se são efetivamente contrários, atrevemo-nos a afirmar, não são contraditórios entre si, mas, precisamente ao reverso, são equiprimordiais e co-originários. Ao contrário da abordagem tradicional tanto na seara da teoria constitucional quanto da ciência política, se reexaminarmos a história institucional, a partir dessa perspectiva, poderemos ver claramente os custos em termos de anomia e de crise de legitimidade que nos foram cobrados pela incapacidade teórica e prática de vê-los como princípios opostos que, no entanto, são simultânea e reciprocamente constitutivos um do outro, aptos a instaurar uma tensão rica, complexa e produtiva sem a qual não pode haver nem democracia, nem constitucionalismo.

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Sempre que se buscou na história constitucional instaurar um deles em detrimento do outro, produziu-se apenas simulacros, ou uma ditadura travestida de democracia ou um arremedo de Constituição que, ao invés de garantir a formação e a manifestação institucional da opinião e vontade públicas constitucionais, a impede e a ela se opõe, transformando o texto constitucional em mera letra morta e dando azo a graves processos de anomia.

E isso porque, como nos revelam tanto a história do constitucionalismo como a história da democracia representativa, essa relação há que ser mesmo necessariamente complexa, a requerer um uso criativo desse aparente paradoxo, ou para dizer com maior rigor, dessa tensão produtiva entre os dois termos, pois só assim essa imprescindível tensão entre os dois princípios pode se produzir e se tornar permanente, contribuindo para evitar tanto o desgaste do texto constitucional e a desestima à Constituição, quanto a ditadura, a substituição da res publica pela res total.3

Aprendemos dolorosamente que a democracia só é demo-crática se for constitucional. A vontade ilimitada da eventual maioria é ditadura, é a negação mesma da própria idéia de democracia, cujo conceito, depois dos abusos sofridos pela palavra “povo” por parte de regimes autoritários tanto de direita quanto de esquerda no denominado curto século XX, passou a requerer como característica constitutiva o respeito às minorias, às regras do jogo.

Do mesmo modo, não menos dolorosamente e no mesmo processo, aprendemos também que o constitucionalismo só é constitucional se for democrático. A elaboração ou a apropriação técnico-burocrática do texto constitucional para moldar passivamente o povo como o seu objeto, como objeto do Estado, como massa, é autoritarismo e, assim, a negação do próprio constitucionalismo.

As instituições modernas são construções sociais de uma sociedade complexa, plural, móvel e mutável, que reprodutivamente se alimenta de sua própria mudança. Essas instituições destinam-se a buscar controlar de forma especializada e limitada determinados riscos, a possibilitar que os problemas humanos sejam vistos como devendo ser humana e secularmente enfrentados. São elas que devem possibilitar governos melhores. Ética, Direito e política se dissociam, se diferenciam, se especializam e se articulam na complexa sociedade moderna.

A moral dos governantes passa a integrar a esfera da vida privada, passa a ser tendencialmente um problema privado e não mais público. A começar pela própria liberdade de crença religiosa. Aos governados interessa que os governantes governem bem, ou seja, no interesse de todos eles, e, para tanto, é imprescindível que seja possível controlar de forma institucional o exercício que esses governantes façam do poder constitucionalmente delimitado. Em uma sociedade pluralista e complexa, não é mais possível, como na antiga teoria pré-moderna do bom governo, a naturalização de uma única perspectiva moral como a perspectiva moral da sociedade monocrática.

A sociedade moderna adquiriu um tal grau de complexidade que pode ver esse risco e buscar controlá-lo, ou seja, pode ver que corre o risco de ter pessoas menos recomendáveis no governo, e esse risco deve ser o tema constante do controle e discussão públicos que têm curso não somente nas Assembléias, Ministérios Públicos e Tribunais, mas em todas as arenas de formação de opinião pública. Enfim, instituições modernas são instituições constitucionais, porque devem prever (ver e tematizar os riscos) a possibilidade de garantir (estabelecer mecanismos de controle desses riscos) a igualdade e a liberdade de todos, precisamente por saber que o exercício do poder tende a fomentar a corrupção, o clientelismo e o nepotismo.

Essa tensão instaurada pelo constitucionalismo leva-nos hoje, depois de mais de 200 anos, a ver a democracia não propriamente como a vontade do povo. Pois o termo “povo”, como a nossa vivência histórica já pode comprovar, é uma palavra semanticamente excessiva, “gorda” o suficiente para sofrer manipulações de toda ordem. A possibilidade de identificação icônica, para usar a expressão de Friedrich Müller, da enteléquia “povo” com a figura e a vontade de um líder carismático, de um Füher, é um risco dado, que hoje nos é visível.4

É claro que, para nós, a democracia, para ser democrática, requer o respeito às regras do jogo, entendidas como o respeito ao direito das minorias. Há que ser garantida institucionalmente, portanto, a possibilidade de que a minoria de hoje venha a se tornar a maioria de amanhã. A teoria democrática avançou até esse...

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