Questóes jurídicas sobre ainadimpléncia no pagamento do cheque
Autor | Celso Barbi Filho |
Páginas | 104-119 |
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O exercício em escala da atividade mercantil, que se corporificou ñas cidades medievais italianas, logo revelou urna ne-cessidade imperiosa á prática comercial, qual seja, a aquisicjío imediata de bens para pagamento posterior.
Disponibilizar-se no presente um valor futuro, a fim de se adquirir determinado bem. É o que se chama crédito, palavra que vem do latim creditu e do italiano cre-dere, ligada á idéia crencha, confianza em que o pagamento prometido no presente será futuramente realizado.
Dar crédito a alguém é, em última análise, confiar nessa pessoa. E o comercio liga-se essencialmente ao crédito, pelo que nele desenvolveram-se os meios de documentar e assegurar esse crédito, fazendo-o também circular.
O principal desses meios foi a criaclo de documentos, notadamente papéis, que incorporassem o crédito, comprovando a promessa presente do pagamento futuro.
Daí surgiram os títulos de crédito.
Esses títulos possibilitaram nao apenas a documentacjío do crédito, mas também a sua circulacjío. Com efeito, alguém que concede crédito a outrem, recebendo em troca um título que o incorpora, pode, com base no mesmo documento, obter novo crédito de terceiro, transferindo-lhe o referido título.
Os primeiros títulos de crédito foram a letra de cambio e a nota promissória, desenvolvidos ñas cidades italianas, durante a baixa Idade Media.
Partindo da letra de cambio, os títulos de crédito evoluíram para assimilar os atributos fundamentáis da cartularidade, que significa a incorporagao do crédito ao documento; da literalidade, que se refere á li-mitagáo rigorosa do crédito ao valor escrito no título, sempre revestido de requisitos formáis previstos em lei; e da autonomia, concernente á independencia dos direitos e obrigagóes assumidos no documento.
E apareceram também outros títulos de crédito, como é o caso do cheque.
Podem ser até identificadas origens remotas do cheque, mas seu desenvolvi-
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mentó efetivo foi na Inglaterra, a partir da Idade Media, com as chamadas Ordens de Pagamento dos Reis contra o Tesouro, posteriormente denominadas bilis of exche-quer. A raíz británica do instituto eviden-cia-se por sua própria denominado, relacionada ao verbo inglés to check, que significa verificar, controlar.
O cheque possui génese comum a letra de cambio, na medida em que ambos encerram ordem de pagamento. Contudo, a ordem contida no cheque singularizou-se pelo fato de ser sempre destinada a um depositario dos recursos do sacador. Originariamente, era o Tesouro, que recebia as ordens de pagamento do Rei e, com o tempo, passaram a ser os bancos a acatarem as ordens de seus clientes depositantes.
Disso revela-se urna particularidade da natureza do cheque. O destinatario da ordem que ele encerra é o banco depositario, que nao assume, nem pode assumir, qualquer obrigagáo cambial pelo pagamento dessa ordem perante o credor, mas apenas o ónus de cumpri-la, se existirem os fundos. Por isso, há quem diga nao ser o cheque título de crédito próprio, vez que nao contém verdadeira operagáo crediticia.
Efetivamente, o cheque nao caracteriza título cambial, hipótese exclusiva da letra de cambio e da nota promissória. Mas nem por isso deixa de ser título de crédito cambiariforme, pois possui os atributos básicos das cambiáis, quais sejam, incorpo-ragáo, literalidade e autonomía, utilizándose de institutos comuns áquelas, como aval e endosso, embora nao se lhes apliquem outros como aceite e vencimento.
Nessa linha, vale também destacar que, tal como a letra de cambio, o cheque contém urna promessa indireta de pagamento do emitente, pois o descumprimentó da ordem pelo banco, por falta de fundos ou crédito, obriga o sacador ao pagamento do título.
No Brasil, após algumas normatizaçes esparsas no século XIX, o cheque veio a ser regulado pela Lei 2.591, de 1912, que vigorou até 1966, quando o Decreto 57.595/ 66 incorporou a Lei Uniforme de Genebra sobre Cheques, de 1931, cuja efetiva vigencia entre nos so foi aceita após decisao do Supremo Tribunal Federal, de 1971.
Em 1985, foi promulgada a atual Lei do Cheque (n. 7.357), que substituiu a Lei Uniforme e passou a disciplinar o instituto no Brasil. Essa Lei, de 1985, "é na realida-de urna consolidagao dos principios da Lei Uniforme sobre o cheque e das leis que anteriormente regularam este títulos, notada-mente a Lei 2.591, de 1912".1
Na concepgao da vigente lei, o cheque pode ser definido como urna "ordem de pagamento a vista, dada contra banco, com base em suficiente provisáo de fundos, depositados pelo emitente ou provenientes de contrato de abertura de crédito".
Fiel aos principios do instituto que regula, a Lei 7.357/85 excluí o banco das re-lagóes crediticias entre emitente e tomador do cheque. O banco está proibido de assumir obrigagóes cambiáis no título, tais como aval, aceite, ou endosso, este salvo como quitagáo ou para transferir o título de urna agencia a outra. As hipóteses do cheque administrativo ou do visado sao diferentes, pois, na primeira, o cheque é do próprio banco e, na segunda, a instituigáo apenas confirma a existencia dos fundos e reserva o respectivo valor durante o prazo de apre-sentaqáo.
Por outro lado, o cheque so pode ser emitido contra banco, a teor do art. 3-, da Lei 7.357/85, que também lhe impoe a característica de título com modelo vinculado. Isso significa que, embora os requisitos formáis do cheque estejam no art. 1-,
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da lei, ele so pode ser validamente criado por documento padronizado, na forma es-tabelecida pelo Conselho Monetario Nacional, conforme art. 69, da citada lei, e Reso-lugoes do Banco Central do Brasil.
Ñas relagóes de consumo, o cheque, quando administrativo ou visado pelo banco, é título de aceitagáo obrigatória pelos comerciantes, conforme art. 1- da Lei 8.002/ 90, do "Plano Collor". Pela mesma lei, o cheque comum tem de ser obrigatoriamen-te aceito quando dado no pedido da mer-cadoria que so será entregue após regular compensagao.
E, como promessa indireta de pagamento, o cheque nao se descarateriza pela falta de fundos, que nao lhe retira a condi-gáo de título de crédito, cobrável contra o emitente, tendo em vista o art. 4° da Lei 7.358/85.
Os recentes planos económicos go-vernámentais alteraram alguns dos atributos de circulabilidade dos cheques, notada-mente quanto as cláusulas ao portador e á ordem.
No que tange a primeira, o art. 69, da Lei 9.069/95, que regulamentou o "Plano Real", vedou, desde 1.7.94, a emissáo, pagamento e compensagáo de cheques com valor superior a R$ 100,00 (cem Reais), sem identificagáo do beneficiario. Antes disso, o art. 22, parágrafo único, da Lei 8.021/90, do "Plano Collor", já proibia a compensagáo de quaisquer cheques ao portador.
Em relagáo ao endosso inerente á cláusula a ordem, desde a Lei Complementar 77/93, que regulou Imposto sobre Movi-mentagoes Financeiras-IPMF (art. 19,1), o cheque passou a so poder ser endossado urna única vez e com identificagáo do en-dossatário.
Essa norma, reproduzida posteriormente ñas sucessivas legislares da Con-tribuigao Provisoria sobre Movimentagoes Financeiras-CPMF, faz com que o segundo endosso tenha efeitos de cessáo civil, nao respondendo o endossante regressiva-mente pelo pagamento do título. E os bancos devem zelar pelo respeito á regra legal, so podendo pagar cheques transferidos mais de urna vez se a última transferencia for por cessáo civil.
O cheque é, sem dúvida, o título de crédito mais utilizado na vida comercial brasileira.
Além de ser prático e simples para o emitente, oferece garantias adicionáis ao vendedor, se comparado a outros títulos como a nota promissória e a duplicata.
Entre essas garantias, destaca-se pri-meiramente o limite de crédito ou a garantía de pagamento dados pelos bancos aos chamados cheques-especiáis, assegurando sua liquidado até determinado valor.
Mas note-se que, no sistema legal do cheque, vigora o principio cronológico dos saques. Isso significa que os fundos depositados pertencem ao correntista até a apre-sentagao dos cheques emitidos ao banco, que sao pagos na ordem cronológica dessa apresentagáo. O mesmo ocorre com a abertura de crédito: atingido o limite concedido, pela soma dos cheques sacados, ou do valor garantido a cada cheque, o banco nao pagará os demais.
A única variagao disso é para o cheque visado, no qual, por um visto ou outra declaragao equivalente, o banco obriga-se a debitar na conta do emitente a quantia indicada no cheque e reservá-la em beneficio do portador durante o prazo de apre-sentagao, sem que fiquem exonerados o emitente, endossantes e demais coobriga-dos (art. 1% § P, da LC).
Outra garantía do cheque que atrai os comerciantes ñas vendas é a alternativa do cheque administrativo, emitido pelo pró-prio banco contra um de seus estabeleci-mentos (art. 9°, inc. III, da LC), de paga-
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mentó assegurado e aceitagáo legalmente obrigatória.
Elemento que também estimula os vendedores a preferirem os cheques a outros títulos de crédito sao as sangoes administrativas, policiais e judiciais, que a ausencia de fundos pode ocasionar.
Com efeito, no plano administrativo, urna vez devolvido o cheque por falta de fundos, sua reapresentagáo, com nova de-volugáo, obriga o banco a incluir o correntista no Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundos, conforme previsto no art. 10 da Resoluqáo 1.682/90, do Banco Central do Brasil.
Além disso, essa segunda devolugáo acarreta o fechamento da conta corrente, por forga do art. 4-, do Regulamento Anexo a Resoluto 1.631/89, do BACEN.
Também na via administrativa, pode o portador promover o protesto cambial do...
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