A psicanálise na universidade belga: a experiência de Louvain

AutorFernando Aguiar Brito de Sousa
Páginas150-174

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Si la formation* du psychanalyste ne peut se passer de l’analyse personnelle, ni de l’expérience clinique, ni du contrôle de sa pratique – ce que l’Université ne peut ni ne doit lui donner – en revanche, ce que la discipline universitaire lui offre comme chance incomparable, à condition qu’il la saisisse largement, c’est de s’y rompre aux échanges et à la rigueur du débat scientifique. (FLORENCE, 2003, p.16)

A utilização da análise para a terapia das neuroses não é senão uma de suas aplicações; talvez o futuro mostre não ser ela a mais importante. (FREUD, 1994, p.76)

Em dezembro de 2000, em comemoração ao centenário da Traumdeutung , realizou-se, na parte francófona da Universidade Católica de Louvain (UCL), na Bélgica, o colóquio interdisciplinar A psicanálise na universidade , organizado por professores do Departamento de Psicologia Clínica (a partir de 2001, Unidade de psicologia clínica: antropologia, psicopatologia e psicoterapia), da Faculdade de Psicologia e das Ciências da Educação. Ele endereçava-se aos membros da comunidade universitária, mas também aos que, “no campo social e institucional ou na prática privada, referem-se à psicanálise como método de investigação e de interpretação, como modo de tratamento ou como teoria de conjunto da vida psíquica do ser humano como sujeito individual e social” (FLORENCE, 2003, p.5). Por uma dessas felizes coincidências na pesquisa, as atas desse colóquio foram publicadas alguns meses antes de eu iniciar na mesma cidade um pós-doutorado, cuja pesquisa tinha neste tema seu eixo central.

Este artigo leva em conta, ainda, o relativo desconhecimento que há entre nós da especificidade belga – sempre confundida, em particular no que diz respeito às artes e à psicanálise, na rubrica made in France – e,Page 151sobretudo, a oportunidade e a pertinência das reflexões desenvolvidas nesse “encontro de envergadura”. A apresentação de extratos de algumas das intervenções, se às vezes mediadas por comentários, desenvolvimentos e raciocínios próprios, tem como fio condutor o mesmo leitmotiv e rigor que motivaram seus autores: em particular, avaliar o papel da psicanálise em seus respectivos campos do saber. O contexto hodierno, como se sabe e como afirmado na apresentação dessas atas, é marcado pela injunção – na psicologia, na medicina e nas outras ciências humanas – de modos de pensar o homem, seu sofrimento e suas questões, cujos modelos pragmáticos, utilitaristas e cientificistas pretendem pôr de lado a longa tradição psicanalítica, bem como a filosofia e a antropologia que a sustentam.

No Brasil, a questão é também atual, embora vivenciada sob condições históricas particulares e diversas. Tem curta história de pouco mais de uma década, e vem na esteira da estrutura de pós-graduação recentemente montada no País (AGUIAR, 2002). A ampliação do espaço de atuação da psicanálise mediante o trabalho de pesquisa, com a possibilidade de que essa pesquisa constitua o grande nutriente do ensino, resultou no surgimento de questões inexistentes quando a universidade era, para a psicanálise, no melhor dos casos, apenas um canal de divulgação.

A razão de a literatura brasileira sobre o tema concentrar-se, sobretudo, na década passada deve-se assim à urgência de refletir sobre o exercício da psicanálise num espaço que lhe era então quase estrangeiro. Nessas circunstâncias, convém informar sobre outras experiências e conhecê-las.

Sobre a psicanálise na UCL

A Universidade Católica de Louvain é uma das mais antigas universidades do mundo – sua fundação remonta ao século XV –, a maior da Bélgica e uma das maiores da Europa. Dadas suas dimensões, à primeira vista, lembra Renders (2003), não pareceria significativo que apenas uma dezena de professores da faculdade de psicologia (do lado francófono) tenha a psicanálise como primeira referência teórica, e que mais outros três ou quatro integrem o domínio da psiquiatria na faculdade de medicina. Ainda assim, em termos de formação (psicológica e médica), o ensino da psicanálise adquiriu visibilidade sem precedentes nos três ciclos do curso de psicologia, desde a primeira candidatura, em parte do curso de psicologia infantil, até o diploma de especialização do 3° ciclo em psicoterapia, passando pelas orientações clínicas que compõem o 2° ciclo.

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Esse ensino encontra-se ainda alocado na psicologia médica e na psiquiatria e no Departamento de Estudos Romanos da Faculdade de Filosofia e Letras.

No âmbito da pesquisa, cerca de três teses de doutorado ou de agrégation (em psicologia ou em medicina) são defendidas, anualmente, no campo da psicanálise, bem como grande número de mémoires de licence (monografias ou dissertações de fim de curso) em diferentes programas 2 . Mesmo assim, os recursos que a psicanálise – como de resto ocorre com as ciências humanas em geral – recebe do Fond spécial de recherche da UCL e do FNRS ( Fond national de recherche scientifique ) seriam mais do que “parcimoniosos” e “dissuasivos”. “Mas os promotores não são freqüentemente bastante derrotistas?”, pergunta Renders, depois de apresentar os dados acima referidos. Afinal, entre livros individuais e coletivos, as publicações são numerosas (notadamente em De Boeck, coleção Oxalis ) e isso se pode dizer de artigos e comunicações. No entanto, ele não deixa também de reprovar com razão, como de fato é possível comprovar nessas publicações, certo ecletismo: “Coerência e continuidade em nossas linhas de pesquisa devem ser reforçadas” (p.22-23).

Enfim, em termos de serviço à comunidade, a UCL conta com quatro centros de saúde mental (Chapelle-aux-Champs, Louvain-la-Neuve, Chien Vert , em Woluwe Saint-Pierre, e Méridien , em Saint-Josse) e com um grupo de serviços hospitalares. Esses centros “colocam a psicanálise como um quadro importante de intervenção clínica e de reflexão teórica, ao lado do paradigma sistêmico, em grande desenvolvimento, e do paradigma cognitivo-comportamental, de penetração mais difícil” (RENDERS, 2003 , p.23) 3 .

Posto isso, e dada a grande resistência, ao contrário dos meios judaicos, leigos e ateus, da igreja católica à psicanálise, cabe realmente perguntar, como faz ainda Renders, por que a UCL “[se deixou] ganhar pelo pensamento freudiano” (p.23). Dentre as possíveis respostas, contam-se suas ligações com a fenomenologia – “em pé de igualdade com alguns aspectos do cristianismo”; em seguida, o peso de personalidades
(A. Vergote, A. De Waelhens e J. Schotte, importantes professores e marcos da psicanálise belga) e, deve-se acrescentar, Lacan e Dolto.

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Enfim, a psicanálise lacaniana teria exercido uma espécie de fascínio sobre os meios sociológicos cristãos: “Pensar o humano em profundidade, em suas dimensões de vazio, de falta e de morte: instaurar o verbo, a linguagem no fundamento do ser; colocar o sujeito do desejo em perspectiva quase escatológica: tudo isso não é do desagrado dos cristãos” (p.23).

Daí também vem o risco de se perder nesse grande espaço conquistado: a reinterpretação fenomenológica da obra de Freud e a psicanálise lacaniana, quando erigida em dogma, poderiam levar a uma “desnaturalização” do inconsciente freudiano. Inventor de uma ciência cujo objeto não se apreende pela vista e pelo toque, Freud “era obrigado a passar por figurações provisórias, por uma metapsicologia” 4 . De resto, acrescenta, não seria diferente com os cognitivistas em suas descrições da memória, dos processos de aprendizagem ou das emoções – mas, para sorte deles, “esses objetos escapam menos facilmente aos sentidos que o inconsciente” (p.24). Enfim, o afastamento do empirismo freudiano poderia trazer como conseqüência a privação do diálogo com outras correntes da psicologia contemporânea e seu próprio isolamento: “[...] não é seguro que fazer da psicanálise uma ontologia, uma antropologia, uma ética ou uma sabedoria humana, isto é, [...] fazê-la ultrapassar seu campo, facilite sua ligação de trabalho com os outros campos. Dando-lhe muita amplidão, priva-se a psicanálise do que ela tem de mais particular” (p.23-24).

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Sobre o colóquio

O colóquio constituiu-se – depois de uma seção de abertura e de comunicações pontuais (o interesse da psicanálise para as outras disciplinas científicas; o desenvolvimento da psicanálise na UCL; a psicanálise e a psiquiatria; psicoterapias e psicanálises) – dos seguintes ateliers : Filosofia, ciências da linguagem, literatura; Direito, criminologia, ciências da família e sexológicas; Medicina, neurociências, desenvolvimento; Ciências sociais e antropologia, ciências das religiões, educação e formação. Ainda, houve a plenária de conclusão, que compreendeu uma conferência sobre a abordagem da psicanálise para o ensino da psicologia clínica na universidade; compte-rendus dos dois últimos ateliers da série; uma mise-enperspective do colóquio; e, naturalmente, a conclusão final totalizando 32 intervenções de pesquisadores de várias disciplinas científicas.

Esse colóquio anuncia, elipticamente, “psicanálise na universidade”, enquanto suas atas, publicadas quase três anos depois, optam por um “A psicanálise e a universidade”, seguido de “A experiência de Louvain” – que dá precisão a um título por si mesmo aberto aos mais diversos entendimentos. Na seção de abertura, M. Hupert, o então doyen da faculdade, comenta que o prazer suscitado por esse “petit bout de signifiant” não se devia apenas a sua indisfarçada simplicidade, prazer que ele não encontraria em “A química na universidade”, “As estatísticas na universidade”, e menos ainda, acrescenta, em “A psicologia cognitiva na universidade”. “Apesar da semelhança sintagmática, nenhuma dessas expressões veicula o que existe como questão, desafio, mesmo provocação em ‘A psicanálise na universidade’”...

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