Entre Protecao e Mascaras: Critica(s) do direito/Between Protection and masks: Critique(s) of law.

AutorBuckel, Sonja
CargoReport

Introducao (1)

A relacao entre critica radical da sociedade e o direito pode ser caracterizada, no melhor dos casos, como ambivalente. A sua estreita ligacao com o Estado, a sua normatividade, a salvaguarda das relacoes de propriedade, o aparente valor ideologico dos Direitos Humanos--tudo isso produz, ao menos, uma suspeita inicial em relacao ao direito. Ao mesmo tempo, e dificil mencionar um movimento social que nao tenha surgido a partir de reivindicacoes por direito. Nesse sentido, Ingeborg Maus vai direto ao cerne da discussao quando, levemente ironica, observa em relacao a Escola de Frankfurt, que o Direito seria talvez "uma coisa ainda mais intrincada que a mercadoria" (Maus 1995: 511). No mesmo sentido, caracterizou Adorno direito como o "cercado de sistematizacao" (das Gehege der Sistematizierung), o qual organiza a subsuncao do que e especial entre as categorias juridicas, como "fenomeno originario da racionalidade irracional" (Adorno 1994: 304).

A teoria feminista possui uma relacao nao menos complicada com o direito (Kiss 1995). Exatamente por isso, Susanne Baer classificou a forma ambivalente de lidar com o direito como "dilema feminista" (Baer 1998: 236). A luta por direitos envolve-se em "paradoxos juridicos", ao ponto que, no melhor dos casos, seria possivel dizer que direitos seriam algo que "nos nao podemos nao querer" (Brown 2000). Enquanto abordagens normativas celebram o direito enquanto conquista civilizatoria - devido a um certo potencial de solidariedade e de contencao da violencia--, para os que criticam as relacoes sociais marcadas pela logica do poder e da administracao e se empenham para sua transformacao substancial, para estes, tal visao nao e nada mais do que uma analise ingenua e superficial. Ainda que seja dado por certo o envolvimento do direito na manutencao das relacoes de dominacao existentes, movimentos sociais optam continuamente por estrategias juridicas, seja acoes judiciais contra taxas universitarias, contra a restricao do direito de manifestacao ou da liberdade de circulacao, ou ainda como protecao das liberdades individuais contra a arbitrariedade estatal.

O acesso ambivalente dos movimentos sociais emancipatorios ao direito nao se trata de coincidencia, nem mesmo de uma mera oscilacao indecisa, conforme a tese aqui apresentada. Ao contrario pode ser justificado pelo proprio fenomeno juridico: em sua estrutura fundamental contraditoria. Para desvelar essa estrutura, apresentarei primeiro cinco criticas classicas do direito, conforme seu desenvolvimento por teorias do direito feministas ou marxistas, ou ainda teorias pos-estruturalistas ou teorias queer do direito. Em seguida apresentarei, a partir do pano de fundo dessas criticas, uma analise materialista de sua estrutura substancial, para, ao final, questionar, qual a estrategia possivel que tais movimentos sociais podem cultivar para lidar com o direito de forma a encontrar um caminho para alem da postura ambivalente.

  1. Criticas do Direito

    1.1 A salvaguarda do status quo

    Otto Kirchheimer (1976/1930: 78) indicou o ponto mais fundamental da critica ao direito moderno: este seria "garantia de uma ordem social existente". Assim como Kirchheimer, o jurista marxista Franz Neumann parte do mesmo pressuposto (1980/1936: 246), o de que as leis condizem com os interesses das classes dominantes. O direito moderno corresponde ao modo de viver da classe burguesa, a seguranca da sua propriedade, assim como de sua autonomia privada, e principalmente a previsibilidade dos processos de troca em uma economia de concorrencia entre produtores de mercadorias.

    Ainda que seu foco seja sobre outra forma de dominacao, autoras feministas argumentam de forma semelhante, de que o direito corresponde a um modo de viver patriarcal. Catherine MacKinnon, a mais influente representante da teoria feminista radical, defende a visao, de que, dado que a classe dos homens forjou o discurso juridico por tanto tempo, isto fez com que esse discurso ignorasse completamente a realidade das mulheres. Tanto normas neutras quanto ao genero, bem como normas de protecao especial para as mulheres reproduzem sempre novamente uma distribuicao desigual de poder, pois "masculinidade (masculinity or maleness) e o referencial para ambas" (MacKinnon 1993/1987: 278). Sendo assim, o direito nao estaria apto a escutar as preocupacoes centrais feministas, conforme o argumento da teorica do direito pos-moderna Carol Smart (1989: 2). Feministas deveriam assim manter-se ceticas em relacao do direito, pois este seria um discurso falogocentrico, no qual um imperativo masculinista e heterossexual se sobreporia a desqualificacao dos conhecimentos e experiencias das mulheres. Direito constitui-se como um oficio masculino, nao apenas porque mulheres sao desproporcionalmente e raramente representadas em altos cargos nas instituicoes juridicas superiores, mas sim principalmente porque o corpus juridico como um todo e estruturado no entorno de uma serie de dualismos sexualizados e hierarquizados. Masculinidade e o lado com o qual o direito se identifica: racionalidade, razao, poder e objetividade (ebd. 86), "Put simply, in order to have any impact on law one has to talk law's language, use legal methods, and accept legal procedures. All these are fundamentally anti-feminist or [...] bear no relationship to the concerns of women's lives" (ebd. 160f.). No entanto, isso nao e suficiente: e necessario tambem acrescentar o poder regulatorio do direito, o qual e destacado por autoras feministas na tradicao de Foucault. A violencia legal produz o que ela apenas finge representar (Butler 1991: 17). Mesmo quando mulheres conquistam direitos especificos como mecanismos de protecao contra a violencia patriarcal, esses direitos especiais das mulheres acabam por construir ao mesmo tempo a categoria "mulher" em sua vulnerabilidade especifica, e possibilitam com isso sua regulacao futura como tal (Brown 2000: 232).

    Nao apenas o modo de viver burgues e patriarcal, mas tambem a matriz heterossexual sao assegurados pelo direito, da mesma forma argumentam autoras e autores da uma teoria feminista queer. Enquanto essa teoria destaca o status ficcional de "sexo", "genero" e "orientacao sexual" e recusa a diferenciacao entre sexualidade homossexual e heterossexual dado seu carater historico-contingente e ao mesmo tempo repressor (Halley 2002:82), e, portanto, assume como ponto de partida multiplas formas de sexualidade e identidade; o direito trabalha como uma concepcao restrita, a qual exige tanto a binaridade de genero como fato e a heterossexualidade como norma (Elsuni 2007: 136). O discurso juridico e um local central para a constituicao, manutencao e regulacao da sexualidade, especialmente da dicotomia Hetero-Homo: ele naturaliza as subjetividades sexuais, as constitui como desviantes ou normais e, subsequentemente, regula todas as relacoes para alem da normalidade (Stychin 1995: 7). Conforme essas criticas, o direito e tanto expressao como tambem garantia das relacoes de dominacao existentes, na medida em que ele estabelece modos de viver de cada uma das posicoes dominantes como universais no interior da hierarquia de poder.

    1.2 Encobrimento/mascara

    Segundo Neumann (1980/1936: 300), o ocultamento e a segunda funcao do direito alem da garantia da troca de mercadorias: "A lei oculta a real dominacao da burguesia, pois a invocacao da dominacao legal torna desnecessario confessar quem sao dominantes de fato". Nao e apenas a lei que torna invisiveis as relacoes de dominacao, mas sim a tecnica juridica como um todo. Esta e especialmente a abordagem do movimento dos Critical Legal Studies (CLS) dos Estados Unidos. Com a sua critica a indeterminacao, ou critica a adjudicacao, eles tem por objetivo deslegitimar a pretensao fundamental de neutralidade juridica. A resolucao de um caso juridico seria desde o principio indeterminada, a argumentacao juridica nada mais do que mera retorica: "The experience of manipulability is pervasive, and it seems obvious that whatever it is that decides the outcome, it is not the correct application of legal reasoning under a duty of interpretive fidelity to the materials" (Kennedy 1997: 31). Doutrinas juridicas encobrem essa indeterminacao fundamental, qual seja, a sua impregnacao por meio da realidade socioeconomica (Frankenberg 2006: 104). Doutrinas seriam, nesse sentido, nada mais do que um vocabulario sofisticado e repertorio de tecnicas manipuladoras: "Law is simply politics dressed in different garb" (Hutchinson/Monahan 1984: 206). Nem tanto a partir de uma critica da ideologia, mas principalmente a partir de uma critica do poder, Foucault (1998/1976: 107) interpreta o efeito do direito aqui esbocado enquanto modo de representacao do poder no direito: o poder da lei teria surgido com o advento do estado absolutista. O direito desempenha, assim, o papel do codigo de apresentacao do poder das sociedades ocidentais desde a idade media, na qual ele e refletido (enquanto teoria do direito) e, desde o Estado de Direito moderno, e visto como exclusivamente legitimo. Sendo assim, o direito e ate hoje o codigo oficial do poder, ao passo que as tecnologias sutis do poder ja se inscreveram ha muito tempo em seus nichos, e por isso, nao figuram de forma alguma enquanto tais segundo a argumentacao classica de Foucault. Em resumo, o direito estabiliza as relacoes de dominacao existentes e as invisibiliza em sua forma de funcionamento.

    1.3 Sujeito de Direito abstrato

    O sujeito de direito abstrato e o terceiro ponto de ataque de objecoes radicais. O conjunto de criticas e criticos se estende desde autores e autoras tao diferentes como o teorico do direito da revolucao russa Eugen Pachukanis ate representantes do pos-estruturalismo como Judith Butler. Esta ultima salienta que a limitacao da linguagem juridica "nos forca a localizar o poder novamente na linguagem da violacao do direito, conferir a essa violacao o status de uma acao e reconduzi-la ao comportamento de um...

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