Prológo

AutorSilvane Maria Marchesini
Ocupação do AutorJurista. Psicóloga. Psicanalista. Pós-Graduada, Mestra em Psicologia Clínica
Páginas27-34

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O homem vem ao mundo para assemelhar-se ao homem.

Pierre LEGENDRE

As profundas mutações sociais em relação às tradições que tocam a intimidade das pessoas e o desenvolvimento da tecnologia médica para a procriação humana conduzem a uma transformação da noção de família e, portanto, a reletir sobre:

"O que é uma família atualmente?"

A pesquisa sobre os direitos concernentes ao início da vida, numa visão transdisciplinar1 entre a Psicanálise e o Direito, busca compreender "as estruturas elementares do parentesco" e sua relação ao fato que "a escolha do desejo inconsciente" é ligada pelo campo da linguagem à sua subdeter-minação discursiva e seus laços sociais. Portanto, nós tomaremos um tempo de relexão sobre a subjeti-vidade para termos um parecer sobre um suposto direito a ter uma criança fora da sexualidade.

1. O direito ao início da vida

Os discursos do Direito se prendem à proteção da vida e de seus valores inerentes. Porém nas legislações bioéticas são numerosas as exceções que permitem a violação da integridade do corpo humano. Assim, a questão de um novo direito a ter uma criança se inscreve nesta missão coniada ao Direito de reparar o nomadismo das fronteiras entre os atos lícitos e ilícitos em relação ao valor supremo da vida.

A aproximação entre a teoria lacaniana dos discursos e a retórica do Direito ampliica a noção de sujeito em o concebendo, tanto ao nível consciente quanto ao nível inconsciente, como efeito da metáfora do Nome-do-Pai. Ela apresenta como pedra angular dessas pesquisas o diálogo estabelecido entre o jurista Chaïm Perelman e o psicanalista Jacques Lacan no texto "A metáfora do sujeito" 2, em que este último demonstra a inluência da lógica do inconsciente sobre a razão prática. Essa visão destaca o sistema do Direito como uma instância simbólica que reparte o que diz respeito ao gozo tolerável na Sociedade, sustentada por um trabalho cultural de interdição pulsional, por meio de certa coerência de linguagem aos interditos fundamentais de humanização.3

É preciso ter leis, ou seja, é preciso interiorização das constrições pulsionais ao nível da constituição subjetiva, durante os processos de identiicações com os pais para vir a ser humano e sociável. Estas leis se constroem, principalmente, nos níveis inconscientes da Lei da linguagem - designada Lei do Nome-do-Pai, ou Complexo de Castração pela Psicanálise - e se caracterizam como constrições de estrutura

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para todos. Este imperativo estrutural que emerge de uma negação primordial ao gozo ilimitado (de uma falta-a-ser originária), estabelece o limite sempre representado pela Interdição do incesto e dos crimes fundamentais: o parricídio, o matricídio, o infanticídio... Existem, também, níveis conscientes de construção da instância simbólica das leis, tais como as leis jurídicas, e ainda que elas sejam herdeiras da lógica arcaica, elas seguem contingências históricas de cada sociedade concreta. Portanto, sem um desenvolvimento infantil em condições de transferências positivas para a subjetividade, o indivíduo não vai reconhecer as leis jurídicas.

Desde a teoria freudiana das pulsões de vida e de morte, as condições de humanização na Sociedade se apresentam sobre a base do princípio de prazer que deve ser substituído pelo princípio de realidade. O "Eu" tenta irmar soluções de compromisso entre as exigências pulsionais do "Isto", as quais reclamam satisfação, e as interdições do "Supereu". Este último é a instância psíquica herdeira do Complexo de Édipo e da interiorização dos interditos, dos ideais, das leis e das normas sociais. O "Supereu" é a instância de nossa personalidade cuja função é de julgar o "Eu". Ele inibe nossos atos ou produz remorso, portanto, ele é a instância judiciária de nosso psiquismo que tem por função a Interdição. Ele se forma não sobre o modelo de uma toda-potência ilusória egóica, mas sobre os superegos e os ideais do pai e da mãe. A função interditora desta consciência moral é inicialmente exercida por uma potência exterior, mais especiicamente, é a introjeção da autoridade paternal que forma o núcleo do "Supereu".

Por seu lado, o sistema do Direito exerce uma inluência externa sobre o "Supereu" no curso das gerações. O Direito, enquanto sistema de construções institucionais da humanidade é, portanto, uma escala simbólica indispensável na construção da subjetividade, pois ele salvaguarda as interdições fun-damentais, as quais constituem os limites necessários ? linguagem enquanto fenômeno psicossomático humano. Dito de outro modo, a escala institucional do Direito exerce inluência sobre o "Supereu", in-dividual e social, e, portanto, ela salvaguarda o "Interdito", a separação e a diferença entre o sujeito e si mesmo, e entre ele e o objeto exterior. O Direito exerce função de mediação na economia psíquica da Referência simbólica ao Pai que amalgama o vazio entre o sujeito e o objeto, e funciona inconscientemente como um terceiro oculto na lógica triádica da linguagem. De fato, o Direito Civil estabelece as cate-gorias de filiação e os níveis de hierarquia das gerações que não são puras construções convencionadas e estranhas aos sexos.

Neste sistema universal o laço de filiação que une uma criança a seus pais é tido como bilateral, compreensível numa lógica de procriação sexuada. Ele destaca, assim, a importância da genealogia patriarcal na espécie humana. Segundo o jurista e psicanalista Pierre Legendre, o Direito institui vida em instituindo a subjetividade por meio da arte de interpretação dos interditos construídos nas sociedades. É o representante lógico transcendental, divino (Imago Dei), paternal ou estatal, que sustenta no sujeito a aceitação da interdição edipiana e de suas nuances, gerando assim a capacidade de julgamento singular.

A partir de uma interrogação imemorial: em nome de que podemos viver? Legendre, no texto "A fábrica do homem ocidental4", afirma que as vitórias tecnocientíicas izeram o animal falante deixar o mundo das genealogias e o mistério foi destruído. Que iremos nós fazer desta desilusão, diz ele, e teremos nós o dever de nos interrogarmos sobre o ponto de poder e de fraqueza que é "a dor de ser nascido e de dever morrer"? É no estatuto de indivíduo perecível que nós podemos admitir que a morte tem um senso. Ela faz viver a construção humana da qual somos a expressão passageira. Os habitantes institucionais são construídos sobre um vazio a partir do qual se desenvolve a palavra, e o qual porta o pensamento. E preciso então restaurar a dúvida para analisar as ignorâncias que fazem cortejo à Ciência contemporânea. "A Fabricação do homem não é uma usina a reproduzir linhagens genéticas". Nós nunca veremos uma sociedade sem as narrativas simbólicas da Solitude humana.

O recém-nascido chega ao mundo dos "porquês" e da busca de uma razão de viver. por meio da fala a humanidade busca preencher pela Referência simbólica o Abismo indizível que a separa da natureza. A linguagem, através da metáfora, separa o homem de si mesmo e de seu semelhante. Lá onde a palavra

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não tem mais vazio, isto é, algo de indizível, existe uma tendência de retorno ao real do corpo na sua concretude imediata. Contudo, o mistério do nascimento e da morte não é mais encenado, e as crianças chegam ao mundo num teatro cirurgical. A linguagem se desmorona para tornar-se consumação metonímica de signos e de corpos. Ele afirma, então, que não é o suiciente produzir carne humana. Antes de tudo, é a Referência que fabrica o homem. A razão de viver nos vem da linguagem em relação a nossa origem, nossos valores, nossas identiicações. Assim sendo, o nascimento de um ser humano não é somente biológico, ele é também subjetivo em três tempos de identiicação.

Segundo Legendre5"fabricar o homem, é lhe dizer o limite. Fabricar o limite, é colocar em cena a ideia do Pai, endereçar ao ilho, de um e de outro sexo, o Interdito". Fabricar o homem para que ele se assemelhe ao homem, isto será, então, exercer o poder de saber o que é a Lei do desejo, de dizer o que é justo. O ideal da justiça faz a balança entre o homem e a natureza, em lhe protegendo do Abismo originário do vivente. Contudo, o homem quer experimentar o mistério, a morte, e, portanto, ele transgride. O ideal da justiça busca o justo equilíbrio nas relações humanas em submetendo a transgressão à palavra. "Assim se organizam o direito e a moral".

Contudo, a eicacidade cientíica reinventa o sacrifício humano e bane o mistério das narrativas mitoló-gicas. O justo e o injusto são ditos agora pela ciência criando a ilusão que não existe mais mistério, nem morte, no coração da sexualidade e da subjetividade. O que aparece é o poder do homem sobre o homem, guerra de sexos e romance das novas modalidades de família. O pensamento ocidental separa o corpo e o espírito, o somático e o psíquico, e se torna governado pela indústria. Num mundo gerido por políticas que se tornaram técnicas "tiveram lugar os prodígios: a biologia e a medicina industriais, e o indivíduo colocado a nu6".

A tecnocracia médica destruindo a metáfora em relação ao corpo humano nos faz experimentar um mundo...

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