Processo democrático e visões da democracia no Brasil

AutorLuzia Helena Herrmann de Oliveira
Páginas400-437

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Introdução

A* o analisar1 as democracias modernas, Schmitter e Karl (1996) destacam que não é possível defini-las a partir de uma única ordem de instituições, pois, dependendo do grau de diversidade social, da cultur a política predominante e do desenvolvimento histórico do país, umas instituições serão mais adequadas que outras, não havendo uma única fórmula que seja capaz de contemplar todas as possibilidades.

Entretanto, esses autores afirmam que determinadas características devem estar presentes nos regimes que se pretendem democráticos e determinadas regras, formais e informais, devem ser obedecidas para que a democracia se torne possível. Como já mostrou Dahl (1997),Page 401algumas normas procedimentais mínimas devem ser respeitadas2. Mas, indo além deste aspecto, Schmitter e Karl (1996) afirmam que alguns princípios básicos que independem de regulamentação formal devem ser incorporados pela sociedade para que a democracia se efetive.

Em primeiro lugar, como indica o próprio sentido etimológico da palavra, democracia significa “poder do povo”, “poder da maioria”, o que implica em colocar a questão da inclusão social como determinante para o próprio desenvolvimento do sistema. Nas democracias ocidentais da atualidade, critérios formais encontramse razoavelmente padronizados para garantir um nível aceitável de participação e, no Brasil, a partir da Constituição de 1988, esses direitos foram bastante ampliados. Entretanto, em muitas democracias, o Brasil entre elas, subsistem restrições informais ao exercício pleno dos direitos, que excluem da participação política um contingente extremamente expressivo da população. A dificuldade de acesso à Justiça, bem como o crescimento da violência entre a sociedade civil e a persistência do arbítrio do Estado entre amplos segmentos da população mais pobre, são problemas que denunciam as fragilidades de nossa democracia3. Como lembra Paulo Sérgio Pinheiro (2000), essa outra realidade tem permanecido, em negativo, durante todo o processo de democratização. É o Estado de Direito coexistindo com o não-Estado de Direito, a accountability com a no-accountability, em uma situação ambígua e difícil de ser superada.

Em segundo lugar, as democracias modernas são pluralistas e representativas. Há muitos canais de representação, desde o mais visível, que é o sistema de voto, às inúmeras formas de organização e expressão da sociedade civil, que procuram institucionalizar a participação no sentido de oferecer alternativas políticas aos cidadãos. Um certo grau de incerteza sobre os rumos políticos é inerente ao processo democrático. Entretanto, a amplitude da incerteza também deve ser limitada, pois nem todas as políticas são assimiladas e aceitas na disputa entre grupos e segmentos sociais.

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Há condições colocadas nessas propostas, há limites além dos quais a sociedade pode não ter maturidade suficiente para aceitar4. Esses limites variam de acordo com o país e a situação histórica, mas um aspecto crucial dentro dessa questão é a aceitação recíproca entre os segmentos sociais envolvidos na disputa.

Relacionado a isso, estão os desenhos institucionais e a discussão sobre o sistema político mais adequado – se presidencialista ou parlamentarista – e as melhores regras para organizar a competição eleitoral e partidária. No Brasil, estes temas ganharam destaque durante a Constituinte, sendo aprofundados durante o plebiscito de 1993. Como a proposta parlamentarista foi derrotada, a tendência foi aumentar o desinteresse sobre esse debate no espaço público. Contudo, a reforma política permanece na agenda parlamentar, com propostas de reforma do sistema eleitoral, de regulamentação da fidelidade partidária, do financiamento público de campanha, da normatização da propaganda eleitoral e outras. Mesmo admitindo-se que a gama de possíveis desenhos institucionais para cada situação histórica seja variada, é importante notar que o sistema construído deve ser consensualmente aceito por todas as forças políticas relevantes. A aceitação das regras do jogo político é um dado crucial para a legitimidade do regime.

Em terceiro lugar, é preciso garantir a presença de uma esfera pública que seja capaz de responder às necessidades coletivas. Este aspecto levanta o problema do papel do Estado e sobre qual seria o grau mais adequado de sua inserção na sociedade contemporânea. Como se sabe, o pensamento liberal advoga a tese de que a intervenção estatal deve ser a mais circunscrita possível, limitando-se à prática de suas atribuições clássicas: segurança e educação. Contrariamente a essa concepção, as ideologias de esquerda estendem a atuação do Estado ao nível da regulação social, da manutenção de subsídios à produção e até à propriedade de empresas. Destas posturas, pode-se afirmar que nenhuma é intrinsecamente mais democrática que a outra, apresentando-se apenas como concepções diferenciadas acerca da democracia. Contudo, é preciso observar que, se levadas ao extremo, essas duas posturas poderiam inviabilizar a permanência da democracia, seja porque destruiriam as bases para a satisfação das necessidades coletivas5, seja porque contrariariam poderosos interesses privados que não estariam dispostos a bancar o pacto democrático nestas circunstâncias.

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Claramente, os três princípios tocam na questão da legitimidade democrática, no grau de consentimento da sociedade em relação ao poder constitucional estabelecido e no grau de tolerância que deve prevalecer entre os grupos políticos adversários. A construção da democracia no mundo moderno foi um processo de séculos em direção à sociedade pluralista. A convivência democrática requer uma sociabilidade fundada na crença de que o respeito à diferença e à dissensão são valores que levam a uma qualidade de vida melhor (SARTORI, 1982). Com certeza, esse é um assunto relevante para a compreensão do processo de democratização no Brasil. Tema clássico da literatura política brasileira, uma questão que persiste é em que medida o país está conseguindo se libertar do jugo do poder privado na esfera pública e da dificuldade do Estado em estabelecer formas impessoais e pluralistas de relacionamento.

Juan Lins e Stepan (1999) apontam essa dificuldade, quando discutem a ausência dos campos democráticos no Brasil6: os problemas econômico-sociais e a ineficiência do aparelho do Estado em atender às necessidades mais amplas da população são elementos que atuam negativamente, impedindo a consolidação da democracia. Entretanto, segundo eles, esse processo depende muito da capacidade dos atores políticos em estabelecer um pacto para solução dos conflitos. Diferentemente das interpretações teóricas que colocam na História um peso excessivo a nortear a vida presente, para Linz e Stepan, “nem o colapso nem a consolidação são predeterminados” (1999, p. 225), pois são as escolhas políticas tomadas no transcorrer do percurso histórico que irão determinar os rumos da democracia.

Fabio Wanderley Reis (2001) levanta uma questão semelhante, ao afirmar que, no Brasil, as incertezas relativas às diversas crises de “ingovernabilidade” não podem ser descartadas. E, do mesmo modo, ele acredita que cabe às elites formadoras da opinião pública uma responsabilidade decisiva na elaboração (ou desarticulação) dessa estabilidade democrática legítima.

São esses os pressupostos através dos quais este artigo pretende observar o desenvolvimento da democracia brasileira nos últimos doze anos.

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A análise toma por base as opiniões emitidas por atores sociais privilegiados, lideranças políticas brasileiras que foram entrevistadas em duas fases distintas: em 1988, durante o desenvolvimento dos trabalhos na Assembléia Nacional Constituinte; e onze anos depois, em 1999, logo após a segunda vitória eleitoral de Fernando Henrique Cardoso para a presidência da República 7. O objetivo do trabalho é verificar como esse processo vem sendo percebido por uma parcela significativa da elite política brasileira e o quanto essa percepção se ajusta aos princípios do que hoje poderia ser definido como um sistema político democrático.

Visões do Brasil durante a Assembléia Nacional Constituinte

Nas entrevistas de 1988 8, nota-se o cuidado dos pesquisadores em apresentar um perfil do espectro ideológico da época, selecionando sete políticos influentes, seis deles parlamentares constituintes. As entrevista s apontam uma grande diversidade de opiniões, demonstrando que, naquela fase, prevalecia uma nítida polarização ideológica em relação a alguns temas, bem como uma indefinição em relação a outros.

Entre uma parcela dos políticos, percebia-se um exagerado sentimento de confiança no processo democrático e nas possibilidades de mudança política a partir da mobilização popular. Predominantemente entre os entrevistados de esquerda (Lula, Waldir Pires, Roberto Freire) era visível a confiança de que a democracia avançaria graças ao apoio e à pressão da sociedade. É certo que em virtude da democratização recente esta expectativa era razoavelmente generalizada, mas percebe-se que, para alguns, o processo de democratização reduzia-se a este enfoque. Neste caso, se a democracia no Brasil tinha algum futuro, ela aconteceria graças às liberdades civis e políticas garantidas pela Constituição, liberdades essas que se encarregariam de desencadear todo o resto:

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O avanço das liberdades populares é o motor da democratização da vida brasileira. [...] Entre esses avanços, salientamos o reconhecimento das Centrais Sindicais [...] partidos políticos abertos e ideologicamente respeitados, o voto dos analfabetos. Essas são algumas das conquistas institucionais que alargaram o campo da luta do povo brasileiro, culminando na elaboração de uma nova Constituição da Nação brasileira(Waldir Pires, p. 195).

Como Waldir Pires repete...

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