O Processo Democrático: uma análise do processo sob a ótica da paradigmática obra do Professor Dierle Nunes

AutorEduardo Rodrigues Dos Santos
Ocupação do AutorMestrando em Direito Público Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Páginas95-113

Page 95

O Professor Dierle José Coelho Nunes publicou no ano de 2008 a obra Processo Jurisdicional Democrático. Tal obra pode ser tida como um marco importantíssimo para a ciência processual, principalmente para aqueles que acreditam na democracia e no direito como instrumentos emancipatórios, como instrumentos de libertação do homem e de transformação da realidade social.

Nela, Dierle Nunes reconstrói historicamente o desenvolvimento da ciência processual, tendo como marco fundamental a Revolução Francesa. Desse modo, ele explica como era a concepção de processo antes da Revolução (processo pré-liberal), e seus delineamentos após a Revolução, partindo do liberalismo processual, passando pelo socialismo processual e findando no neoliberalismo processual. Feita essa reconstrução, ele aborda criticamente o protagonismo judicial e posteriormente propõe um modelo democrático de processo, tendo como base fundamental a Constituição e suas garantias processuais.

De maneira sucinta, vejamos tal reconstrução.

3. 1 Os Modelos Processuais da Modernidade

Como dito, Dierle Nunes divide o processo em quatro fases: i) pré-liberalismo processual; ii) liberalismo processual; iii) socialismo processual; e iv) neoliberalismo processual. A partir de agora, analisaremos sucintamente cada um deles.

Page 96

O pré-liberalismo processual, como explica Dierle, era composto pelos sistemas processuais do Antigo Regime, marcados pela pluralidade de jurisdições (jurisdições feudais, eclesiásticas, corporativas etc.), pela arbitrariedade dos juízos (autoritarismo) e pela complexidade e confusão das formas processuais (NUNES, 2008).

Apesar de suas variações, o pré-liberalismo processual caracterizava-se pelo excesso de formalismo e tecnicismo; pela gama exorbitante de fontes processuais; pela ausência dos juízes nos atos processuais, que se apresentavam somente no momento da decisão; pela arbitrariedade e corrupção dos juízes, que favoreciam os mais ricos e poderosos, pois nessa época os magistrados eram remunerados pelas partes em razão do serviço prestado, o que eles chamavam de sportule; e o que, consequentemente, levava os magistrados a prolongar o iter processual, constituindo um processo longo e demorado (NUNES, 2008).

A partir da segunda metade do séc. XVIII emergem fortemente os ideais iluministas, que provocam mudanças gradativas em toda a sociedade, inclusive no sistema processual. Desse modo, nota-se a tendência à unificação das codificações a fim de se simplificar a compreensão do Direito (NUNES, 2008).

Nessa perspectiva, em 1770 e nos anos seguintes ocorrem mudanças fundamentais para o sistema processual, com a introdução de um novo método de recrutamento dos juízes, abolindo o sistema de sportule e implementando “a figura do juiz pago pelo Estado com valores das taxas judiciárias, além da introdução de um sistema de pré-constituição dos julgadores – juiz natural” (NUNES, 2008, p. 64).

Contudo, como explica Dierle, “apesar dessa tendência de reestruturação do sistema processual, não ocorreu, em regra, um reformulação global; apenas a elaboração de algumas consolidações que não conseguiram se desmembrar das bases do processo comum” (NUNES, 2008); isto é, pouco mudou e o processo continuava a ser extremamente formal e complicado.

Page 97

Entretanto, a partir da última década do séc. XVIII, com o advento da Revolução Francesa, o sistema processual passa por uma reforma determinante, que viria a resultar no liberalismo processual.

Nesse sentido, vale reproduzir aqui a síntese feita por Dierle Nunes – com base na obra de Vittorio Denti e Michele Taruffo – sobre as reformas processuais francesas e a consequente ascensão do liberalismo processual.

Em 04.08.1790, na França, a Assembleia Constituinte vota, juntamente com o abandono dos privilégios, a abolição das jurisdições particulares e a gratuidade da justiça, estabelecendo uma ruptura formal com o Antigo Regime. A partir daí, estrutura-se uma série de reformas, decorrentes da já existente desconfiança iluminística em relação às profissões legais e ao mundo dos juristas, aliadas a uma hostilidade em face das complicadas formalidades dos procedimentos.

Tais reformas empreendidas no campo processual podem ser sintetizadas da seguinte forma:

  1. a lei de organização judiciária, de 16-24 de agosto, introduz a eleição de juízes com mandato temporário, remunerados pelo Estado;

  2. na base do ordenamento judiciário, são colocados juízes de paz, que, conjuntamente com dois assessores, formam o bureaux de paix et de conciliation, aos quais todos os litigantes devem obrigatoriamente dirigir-se, na tentativa de conciliar as controvérsias antes de buscar as vias judiciais;

  3. no contencioso, o juiz de paz é competente para ações de menor valor econômico, enquanto as demais causas são atribuídas aos tribunais de distrito;

  4. a Lei 2-11, de setembro de 1790, suprime a Ordem dos Advogados, permitindo a autodefesa em juízo pelas próprias partes;

  5. ao invés de se estruturar um corpo de advogados para os pobres (cuja proposta surgiu nos debates legislativos), atribuiu-se ao bureaux a tarefa de desenvolver a função consultiva e preventiva para os pobres em suas defesas judiciais;

  6. as normas de processo civil são mantidas inicialmente, mas são abolidas pelo decreto de 24.10.1973, que desformaliza o sistema, de modo a se circunscrever a ditar algumas formas essenciais do juízo (NUNES, 2008,
    p. 71-72).

Page 98

Nos anos iniciais do século XIX, advêm as legislações napoleônicas, v.g., Código Civil (1804), Código de Processo Civil (1806), Lei de Organização Judiciária (1810), entre outras, que dão os moldes que faltavam ao liberalismo processual (NUNES, 2008).

Tais legislações deram origem a um sistema processual caracterizado por princípios técnicos e liberais, que objetivavam a manutenção da imparcialidade e do comportamento passivo do juiz. Dentre tais princípios, destacam-se: igualdade formal dos cidadãos, a escritura e, mormente, o princípio dispositivo (NUNES, 2008).

Essa concepção deu origem a um processo gélido, frio, de caráter eminentemente técnico, formalista, de cunho privatista, isto é, o processo passou a ser, ou melhor, não deixou de ser, um mero instrumento de resolução de conflitos, gerenciado em favor daqueles que eram economicamente mais poderosos (NUNES, 2008).

A grande diferença reside no fato de que antes os poderosos compravam os juízes para vencerem as ações, enquanto no liberalismo processual eles nem precisam disso, já que os pobres, que não têm condições lógicas de se defender (em face de seu despreparo e falta de lido com as leis), estão agora desprovidos de qualquer proteção do Estado, sendo considerados iguais, devendo eles mesmos se defender (ou pagar um advogado, o que eles não tinham condições de fazer).

Nas palavras de Dierle: “tal concepção gerava, no processo, uma impossibilidade de compensações de desigualdades (sociais e econômicas) – estratégias corretivas – pela atividade judicial ou pela assistência de advogados subsidiados pelo Estado” (NUNES, 2008, p. 75).

Por sua vez, o juiz era tido como o mero decisor, não podendo intervir no processo, nem mesmo dele participar, a não ser formulando sua decisão (que deveria ater-se ao que havia sido alegado e trazido pelas partes), como se nota nos seguintes dizeres de Dierle:

O juiz, nessa perspectiva liberal, apresentava-se como um estranho em relação ao objeto litigioso, cumprindo a função de expectador passivo e imparcial do debate, sem quaisquer ingerências interpretativas que pudessem causar embaraços às partes e às relações (especialmente contratuais e econômicas) que as envolviam (NUNES, 2008, p. 77).

Page 99

Desse modo, pode-se concluir que o liberalismo processual quedou-se marcado pela autonomia privada e por um protagonismo processual das partes, pelo predomínio da igualdade formal, pela imparcialidade e inércia do juiz e pela preponderância do princípio dispositivo. Razões pelas quais o processo fora reduzido a um instrumento técnico formal de manutenção do poder e das desigualdades, sem a menor perspectiva de transformações sociais.

Tudo isso ensejou um movimento reformista do processo que, tendo como inspiradores no âmbito legislativo Anton Menger e Franz Klein, deu origem ao socialismo processual.

Como demonstra Dierle, Anton Menger propôs alterações profundas para o sistema processual da época, sobretudo dando ênfase a um reforço do papel do juiz, conferindo-lhe o papel de protagonista no processo. De modo que, para Menger:

Caberia ao juiz a assunção de um duplo papel: a) de educador: extraprocessualmente, este deveria instruir todo cidadão acerca do direito vigente, de modo a auxiliá-lo na defesa de seus direitos; b) de representante dos pobres: endoprocessualmente, o juiz deveria, em contraste com a imparcialidade e com o princípio dispositivo, assumir a representação da classe mais pobre (NUNES, 2008, p. 80).

Por sua vez, Franz Klein vislumbrava grandes objetivos políticos, econômicos e sociais no processo, entretanto, também “projetava-o como um caso de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT