Fundamentação alternativa dos princípios de direitos humanos, da constituição e dos tratados internacionais

AutorAna Paula Barbosa-Fohrmann - Bernard Potsch Moura
CargoProfessora Adjunta Visitante da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Mestrando em Direito Internacional e Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Páginas237-250

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A Teoria moral de direitos humanos de Carlos Santiago Nino

O filósofo do Direito argentino Carlos Santiago Nino morreu em 1993 num acidente aéreo, com apenas 52 anos. Sua teoria, no entanto, permaneceu viva e se difundiu entre nós (BARBOSA, 2002a; 2002b, p. 51-96; 2007, p. 137-168; BARBOSA-FOHRMANN, 2010; p. 355-366; PEREIRA, 2002, p. 315-349; REIS, 2003; SILVA, 2007, p. 11 -96; TORRES, 2003, p. 1 -46). Nino foi Professor Visitante de Filosofia do Direito na Yale Law School e Professor de Filosofia do Direito e Direito Constitucional na Universidade de Buenos Aires. Imensamente influenciado pelo discurso moral de Immanuel Kant, sua teoria também remonta à John Rawls, Bruce Ackerman, Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas. Seguidor do procedimento moral para legitimar os princípios de direitos humanos, seu modelo teórico se desenvolve em quatro etapas: discurso, princípios, direitos e instituições. Neste artigo, nós vamos nos deter, sobretudo, na relação de fundamentação das três primeiras etapas. Nessa relação, será, ainda, analisado o papel desempenhado pelos princípios de direitos humanos, pela constituição e pelos tratados internacionais.

1. A fundamentação moral dos princípios de direitos humanos
1. 1 A estrutura do discurso moral

Os princípios morais não só fundamentam a ordem jurídico-constitucional, mas também são incorporados por ela. É esse o caso dos princípios de direitos humanos e, particularmente, da dignidade humana.

Os princípios de direitos humanos são moralmente caracterizados, pois se originam no discurso moral. O discurso moral pode ser, da seguinte forma, definido:

[...] constitui uma técnica para convergir certas condutas e determinadas atitudes [...] com base na coincidência de crenças em razões morais; essa convergência de ações e atitudes, que se pretende obter mediante a coincidência de crenças que a discussão moral tende a lograr, satisfaz, evidentemente, as funções de reduzir os conflitos e facilitar a cooperação (NINO, 1989b, p. 103).

De acordo com a definição de Nino, o discurso moral se estrutura com base em determinados elementos: consenso, autonomia, imparcialidade, verdade e democracia. Opera por meio de princípios de conduta, que são públicos, gerais, supervenientes e universais.

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1.1. 1 Liberdade de argumentação

A autonomia pressupõe que os indivíduos possam, no discurso, argumentar livremente, sem submissão a qualquer forma de autoridade que ameace, manipule ou proíba a livre expressão da sua vontade.1

1.1. 2 Consenso

O consenso ocorre através da convergência de ações e atitudes individuais e da livre aceitação por parte dos indivíduos de princípios que orientem suas ações e atitudes ante as ações de outros.

1.1. 3 Imparcialidade

O discurso moral também deve ser imparcial. A imparcialidade é um pressuposto fundamental da "nossa concepção de mundo e de nós mesmos" e considera "cada interesse por seus próprios méritos e não levando em conta a pessoa que em quem se origina" (NINO, 1989b, p.117).2

1.1. 4 Verdade moral

Por fim, o discurso moral deve ser verdadeiro. Um juízo é verdadeiro, quando os demais elementos do discurso moral estão presentes e são plenamente aceitos no momento do proferimento desse juízo. Isso quer dizer, a verdade moral se apresenta, quando um princípio moral é aceito como uma razão final e universal e se compatibiliza com o consentimento de pessoas racionais, imparciais e informadas (NINO, 1989b, p. 117).3

1. 2 Princípios de conduta resultantes do discurso moral

O consenso produzido a partir da livre convergência de ações e atitudes leva os

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indivíduos a orientar seus comportamentos de acordo com ele. Para tanto, faz-se necessário que os pautem sobre determinados princípios de conduta. Esses princípios devem ser públicos, gerais, supervenientes e universais. São públicos, pois todos membros da sociedade devem conhecer esses princípios. São gerais, pois as propriedades e relações genéricas que determinam casos relevantes devem ter conteúdo fático, de tal forma que as circunstâncias do caso, que conduzem à sua própria solução, sejam acessíveis a todos. Os princípios são supervenientes, pois decorrem das circunstâncias de fato. Por fim, devem ser universais. Admite-se que alguém possa justificar suas ações e atitudes com base em um certo princípio aplicável ao caso, então qualquer potencial participante do discurso moral também pode justificar suas ações e atitudes com base no mesmo princípio. Isso porque a justificação de suas ações e atitudes, com base em um determinado princípio aplicável ao caso concreto, não se diferencia, em relação às suas propriedades essenciais, de outra justificação, em que o mesmo princípioéempregado (NINO, 1989b2, p. 110-111).

Esses princípios de conduta, que tornam o discurso moral operante, são, em verdade, princípios morais. Baseiam-se em razões que justificam determinadas ações e condutas. Isso significa que esses princípios são hierarquicamente superior a outros princípios, pois oferecem as razões finais para a solução de determinado caso. Nenhuma razão de outra índole prevalece sobre elas, quando são aplicadas (NINO, 1989b, p. 111).

1. 3 A aproximação entre discurso ideal e discurso real e o argumento da democracia

Nino justifica a democracia no discurso moral. O seu ponto de partida reside na diferença entre discurso ideal e discurso real. Sustenta essa possibilidade com base na sua teoria do construtivismoepistemológico (NINO, 1989b, p. 389).

Essa teoria contém três argumentações fundamentais: 1) a discussão é um bom método para se alcançar a verdade moral; 2) a necessidade de comunicação no discurso real; 3) a tese da falha (NINO, 1989b, p. 390).

A primeira argumentação consiste em que o discurso real objetiva, na medida do possível, que as regras do discurso ideal sejam instituídas, a fim de que o discurso real se aproxime o mais possível do discurso ideal. Pode-se, então, afirmar que o discurso real contém uma forte suposição de verdade.

A segunda argumentação afirma que dois participantes do discurso real comunicam seus interesses, que não podem se basear somente nos interesses de ambos e negligenciar os dos demais, discutem-nos e os negociam com outros participantes, a fim de convencê-los sobre a sua proposta. Dessa forma, o discurso real se aproxima do discurso ideal, na medida que o procedimento de discussão e negociação objetiva soluções que advêm de um procedimento discursivo imparcial, o qual exclui a utilização da força e de formas de persuasão, como o engano ou a confusão deliberada de um dos participantes.

A terceira argumentação se baseia no fato de que, no discurso real, o consenso pode não ocorrer, pois o que se almeja, no discurso real, é a solução de conflitos e, não, necessariamente um consenso, como no discurso ideal (ALEXY, 1997, p. 215). É por

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isso que, no discurso real, que ocorre em regimes democráticos, a regra do consenso foi substituída pela regra da maioria (NINO, 1989b, p. 391)4.

No comentário deAlexy, a regra da maioria de Nino pode, em si, ser considerada discursiva. Para se justificar isso, há uma razão de ordem estrutural e outra de conteúdo. Explica Alexy:

O argumento estrutural diz que a concorrência pela maioria justifica, na democracia, um forte estímulo para que se convencer tantos cidadãos quanto possível através de argumentos da correção das próprias concepções [...]. Neste ponto, a democracia é essencialmente discursiva. O argumento do conteúdo diz que a luta pelo consenso e a necessidade de compromissos permitem que "em geral as decisões democráticas sejam mais imparciais e conseqüentemente mais corretas do que a decisão de um indivíduo ou de uma minoria fora do processo democrático" (ALEXY, 1997, p.215).

1. 4 A relação entre constituição, democracia e direitos fundamentais

O discurso moral ideal e real se apresentam de novo como forma de justificação dos direitos fundamentais e da democracia. Em Nino, isso se traduz através da dialética existente entre a constituição Ideal (de direitos e democrática) e a constituição Real (que reflete a dimensão histórica do constitucionalismo).

A racionalidade, a autonomia dos indivíduos e o consenso entre eles, pressupostos do discurso moral ideal, condicionam a futura distribuição de direitos e obrigações prevista no contrato social e, conseqüentemente, a obrigação de respeitar suas normas e princípios morais, que são essenciais para a formação de uma futura sociedade constitucional democrática.

Os princípios morais (autonomia, inviolabilidade da pessoa física e dignidade humana) ingressam na constituição, a qual se fundamenta no discurso moral e nos princípios que dele derivam. Os princípios morais não só legitimam a constituição, mas também o próprio sistema de direitos.

Ao examinar as constituições existentes (real) e a constituição de direitos (ideal), Nino percebe que há um...

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