Princípios da Negociação Coletiva

AutorDavi Furtado Meirelles
Ocupação do AutorDesembargador Federal do Trabalho do TRT da 2ª Região (SP)
Páginas27-67
III
Princípios da Negociação Coletiva
P rincípios são postulados éticos, ou normas de conduta, que devem ser observados por quem lida com o Direito.
No processo de negociação coletiva, as partes imprimem-lhes, a cada exercício, um conteúdo pedagógico que
progressivamente os aperfeiçoam(44).
Nei Frederico Cano Martins e Marcelo José Ladeira Mauad(45) zeram um ilustrativo de comparação muito
interessante, para demonstrar a importância vital que os princípios representam para o Direito, como base de todo o
sistema jurídico:
São como as margens de um rio. As águas seguem seu curso normal com toda a liberdade, porém adstritas a
determinados limites, que asseguram possa a rio chegar ao seu verdadeiro destino. Quanto mais robustos os
terrenos que ladeiam as águas, maior a garantia de que o rio estará circunscrito a seus limites. Pois, também
os princípios, quanto mais ncados e cristalizados nas relações sociais e jurídicas, maior a segurança quanto
à criação e aplicação das normas.
Para José Cláudio Monteiro de Brito Filho(46), os princípios “devem ser entendidos como as bases fundantes de
qualquer ciência ou ramo destas”. E, mais ainda, constituem o alicerce que informará todo o desenvolvimento do conteúdo
delas (ciências) ou deles (ramos)”.
Dessa forma, é possível estabelecer e observar princípios próprios, necessários para a utilização regular de deter-
minados institutos, como no caso da negociação coletiva.
A análise dos princípios especícos da negociação coletiva será feita levando-se em conta outros princípios, tam-
bém especícos, do Direito do Trabalho, porém, numa escala um pouco inferior em relação aos princípios próprios da
negociação coletiva de trabalho. Da mesma forma, serão realçados, na interlocução com esses princípios especícos,
os princípios gerais de direito.
Não se pode esquecer, ainda, que a base principiológica do direito brasileiro, enquanto ciência, parte dos princípios
fundamentais consagrados na Carta Republicana de 1988, com especial destaque para dois deles já mencionados ante-
riormente: a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa (art. 1o, incisos III e IV)(47).
A negociação coletiva não teria sentido se não buscasse valorizar o trabalho humano, criando condições para que
sua prestação se dê dentro de patamares dignos, observando os valores sociais do trabalho, e, em contrapartida, que o
trabalho proporcione a garantia da produção, para que todos ganhem ao nal.
A propósito disso, Dinaura Godinho Pimentel Gomes(48), ao abordar o princípio da dignidade da pessoa humana
no Direito do Trabalho, defende o fortalecimento do verdadeiro movimento sindical brasileiro, para garantir, mediante
a negociação coletiva, a concretização da dignidade da pessoa humana, “por meio da estruturação de uma ordem social
voltada ao bem-estar e à justiça social”.
(44) TEIXEIRA FILHO, João de Lima. Instituições de direito do trabalho, p. 1.166.
(45) Lições de direito individual do trabalho, p. 47.
(46) Direito sindical, p. 181.
(47) Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
democrático de direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa;
(48) Direito do trabalho e dignidade da pessoa humana, no contexto da globalização econômica, p. 185.
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DAVI FURTADO MEIRELLES
É com essa premissa que os princípios da negociação coletiva serão abordados, pois a análise deles será determinante
para o objetivo nal deste estudo, conforme se verá.
1. Liberdade sindical como pressuposto de efetivação da negociação coletiva
Conforme já mencionado anteriormente, a Convenção n. 87 da OIT, que trata sobre a liberdade sindical e a
proteção ao direito de sindicalização, é considerada o mais importante tratado internacional de Direito do Trabalho.
Raticada pela maioria dos Estados-membros daquela organização internacional (108 de 164(49)), ainda não mereceu
o reconhecimento jurídico por parte do Estado brasileiro, tendo em vista algumas incompatibilidades com o modelo
sindical aqui adotado, algumas delas objeto de apreciação a seguir.
À primeira vista, ca-se com a impressão de que não há incompatibilidades intransponíveis entre as regras daquela
norma internacional e o modelo sindical adotado pelo Brasil. A começar pelo seu art. 2o(50), que trata da constituição
de sindicatos sem necessidade de autorização prévia, regra esta totalmente condizente com o inciso I do art. 8o(51) da
Constituição Federal, que apenas exige o registro sindical junto ao Ministério do Trabalho, já que a este compete a
scalização e vericação da unicidade sindical(52).
Porém, essa exigência de registro prévio para a existência jurídica de uma entidade sindical não chega a ser impeditiva
para a sua constituição. A antiga carta sindical, prevista no revogado art. 520(53) da CLT, esta sim uma exigência para
o reconhecimento da personalidade sindical, funcionava como uma certidão de nascimento dos sindicatos. Atualmente,
ao Ministério do Trabalho compete apenas a incumbência de receber e arquivar esse registro, para ns cadastrais e de
vericação da unicidade, fornecendo, em contrapartida, uma certidão desse registro.
Essa delegação constitucional ao Ministério do Trabalho, no entanto, não o autoriza a promover atos administrativos
discricionários(54) de recusa do registro, de deliberação sobre o fornecimento ou não da certidão referida, de d ecisão sobr e
possíveis impugnações por entidades sindicais já existentes que se sintam prejudicadas, quer por coincidência de base
territorial, quer por identidade de categoria. Se assim agir, estará interferindo na vida interna dos sindicatos, afrontando
diretamente o já mencionado inciso I do art. 8o(55) constitucional.
O dever do Ministério do Trabalho, ao receber o pedido de depósito do registro sindical, é dar conhecimento
público desse pedido, para que os interessados (ou prejudicados) possam tomar as medidas que entenderem devidas. Se
houver impugnação ou contestação ao registro sindical, a controvérsia deve ser levada ao Judiciário, cuja competência
atual, a partir da Emenda Constitucional n. 45/2004, é da Justiça do Trabalho (art. 114, inciso III, da CF(56)).
(49) Informação extraída de Arnaldo Süssekind, Convenções da OIT, p. 467, registrada na nota 35.
(50) Art. 2o Os trabalhadores e os empregadores, sem distinção de qualquer espécie, terão direito de constituir, sem autorização prévia, organizações
de sua escolha, bem como o direito de se liar a essas organizações, sob a única condição de se conformar com os estatutos das mesmas.
(51) Art. 8o É livre a associação prossional ou sindical, observado o seguinte:
I – a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder
Público a interferência e a intervenção na organização sindical;
(52) Segundo entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal (STF), através da Súmula n. 677, “até que lei venha a dispor a respeito,
incumbe ao Ministério do Trabalho proceder ao registro das entidades sindicais e zelar pela observância do princípio da unicidade”.
(53) Art. 520 – Reconhecida como sindicato a associação prossional, ser-lhe-á expedida carta de reconhecimento, assinada pelo Ministro do Tra-
balho, Indústria e Comércio, na qual será especicada a representação econômica ou prossional, conferida e mencionada a base territorial
outorgada.
(54) Antes da CF/1988, à época do modelo sindical intervencionista, o ato administrativo de concessão ou não da carta sindical era considerado
um ato privativo do Ministério do Trabalho, que não comportava contestação via judicial, salvo comprovação de fraude ou simulação. Desde
então, com sistema de liberdade sindical adotado, a concessão ou recusa de um registro sindical é passível de manifestação judicial, que dará
a última palavra sobre a validade ou não deste registro.
(55) Art. 8o É livre a associação prossional ou sindical, observado o seguinte:
I – a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder
Público a interferência e a intervenção na organização sindical;
(56) Art. 114 – Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
III – as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores;
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Observa-se, pois, que o Brasil estabeleceu uma forma de liberdade de organização interna dos sindicatos, o que
se coaduna, também, com o art. 3o(57) do tratado internacional em análise. Por esse dispositivo, as entidades sindicais,
tanto prossionais quanto econômicas, possuem o legítimo direito de elaborar estatutos, regulamentos administrativos,
de eleger seus representantes e de organizar a sua gestão, sua atividade e seu programa de ação, sendo que as autoridades
públicas não podem intervir para limitar esse direito.
Parece não haver dúvidas, portanto, que, desde a Constituição da República de 1988, toda a vida de um sindicato,
seja ele de empregadores (categoria econômica) ou de trabalhadores (categoria prossional), no que diz respeito à sua
constituição, extinção, organizações gerencial, administrativa e nanceira, número de dirigentes, processo eleitoral,
duração de mandato, base territorial, atividades abrangidas pela categoria, sindicalização, formas de custeio etc., deve
estar denida e regulamentada no seu estatuto sindical.(58)
Restaram superadas, pois, todas as regras inseridas na CLT(59) relativas à constituição dos sindicatos (arts. 515 a
521), associação em sindicatos, prerrogativas e deveres dos sindicatos (arts. 511 a 514), administração dos sindicatos
(arts. 522 a 528), eleições sindicais (arts. 529 a 532), scalização e gestão nanceira dos sindicatos (arts. 548 a 552),
que permitiam a intervenção estatal, através do Ministério do Trabalho. Os poderes de que era detentor o órgão gover-
namental, de scalizar, administrar, controlar o processo eleitoral, destituir diretorias, nomear interventores, dentre
outras formas de ingerência, não mais são condizentes com o princípio de liberdade de organização sindical, ainda que
restrito ao campo interno.
Da mesma forma, os arts. 4o(60) e 5o(61) da Convenção n. 87 da OIT estão em sintonia com o atual ordenamento
jurídico pátrio, na medida em que as entidades sindicais não mais podem ser suspensas ou dissolvidas administra-
tivamente, e os sindicatos brasileiros têm liberdade para se liarem a federações, confederações, centrais sindicais e
organizações internacionais.
1.1. 1o obstáculo no modelo sindical brasileiro: a unicidade sindical
Enquanto o sistema sindical brasileiro foi marcado pela natureza jurídica corporativista, não se podia admitir a
liberdade sindical. Esta apareceu pela primeira vez no ordenamento jurídico pátrio com caput(62) do art. 8o da Lei Maior
de 1988, que não deixa dúvidas quanto à liberdade sindical ali disposta, ao rezar que é livre a associação prossional
ou sindical, observado o seguinte”. O problema todo começa com essa derradeira expressão: “observado o seguinte”.
Realmente, alguns dos incisos daquele dispositivo constitucional viciaram a plena liberdade sindical que o seu
caput pareceu indicar. Mas o art. 8o(63) da Convenção n. 87 transforma em incompatibilidade este princípio com o mo-
delo atualmente adotado, ao armar que a legislação nacional não pode prejudicar e nem ser aplicada para prejudicar
a liberdade sindical prevista na mesma Convenção.
(57) Art. 3o 1. As organizações de trabalhadores e de empregadores terão o direito de elaborar seus estatutos e regulamentos administrativos, de
eleger livremente seus representantes, de organizar a gestão e a atividade dos mesmos e de formular seu programa de ação.
2. As autoridades públicas deverão abster-se de qualquer intervenção que possa limitar esse direito ou entravar o seu exercício legal.
(58) Ver artigo de nossa autoria, Liberdade Sindical: o modelo ideal, in: Revista LTr, maio/2010, vol. 74, n. 5, p. 542-552.
(59) Os arts. 511 a 610 da CLT, que compõem o seu Título V (Da Organização Sindical), ante o modelo sindical adotado pela Constituição Federal
de 1988, tornaram-se, muitos deles, revogados ou derrogados (revogação parcial), sempre quando há previsão de participação do Ministério
do Trabalho, ou quaisquer de seus órgãos, na vida interna dos entes sindicais.
(60) Art. 4o As organizações de trabalhadores e de empregadores não estarão sujeitas à dissolução ou à suspensão por via administrativa.
(61) Art. 5o As organizações de trabalhadores e de empregadores terão o direito de constituir federações e confederações, bem como o de liar-se
às mesmas, e toda organização, federação ou confederação terá o direito de liar-se às organizações internacionais de trabalhadores e de
empregadores.
(62) Não se deve esquecer que a lógica jurídica na interpretação de um dispositivo qualquer, seja ele constitucional ou infraconstitucional, indica
que a imperatividade da norma deve partir do seu caput, estando ali presente a sua nalidade, a sua importância maior, aquilo que o legislador
quis regular. Os parágrafos servem para excepcionar ou detalhar a regra geral disposta no caput. Da mesma forma, os incisos e alíneas, quase
sempre, são utilizados para taxar ou exemplicar situações oriundas do caput.
(63) Art. 8o 1. No exercício dos direitos que lhe são reconhecidos pela presente convenção, os trabalhadores, os empregadores e suas respectivas
organizações deverão da mesma forma que outras pessoas ou coletividades organizadas, respeitar a lei.
2. A legislação nacional não deverá prejudicar nem ser aplicada de modo a prejudicar as garantias previstas pela presente Convenção.
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