Principio da pessoa em desenvolvimento: fundamentos, aplicacoes e traducao intercultural/Principle of the person in development: fundamentals, applications and intercultural translation.

AutorOliveira, Assis da Costa

Introducao

A difusao internacional e nacional da Doutrina da Protecao Integral (DPI) ocorreu por intermedio da juncao de uma garantia objetiva, a designacao de sujeitos de direitos, e outra subjetiva, de reconhecimento da condicao especial de desenvolvimento, para os grupos geracionais da infancia e da adolescencia.

A sustentacao desta relacao se encontra nos postulados teoricos desenvolvidos histerico-cultural e cientificamente em tornos da nocao de pessoa, sobretudo no que diz respeito a formacao da subjetividade, identidade e vulnerabilidade infantil e adolescente, e ao processo de universalizacao pela linguagem dos direitos humanos.

A relacao entre objetividade e subjetividade juridica, tratando-se da DPI, traz consequencias para os "novos direitos" das criancas e dos adolescentes, pois o aprofundamento teorico-normativo em torno da categoria pessoa em desenvolvimento, e da forma como criancas e adolescentes tornaram-se sujeitos em condicao peculiar de desenvolvimento humano, provoca a suspensao e, ao mesmo tempo, potencializacao dos instrumentos juridicos, a partir da compreensao de criterios especificos para aplicacao enquanto principio constitucional, definicao das dimensoes juridicas abarcadas na nocao de desenvolvimento humano e traducao intercultural no dialogo com outras concepcoes socioculturais de pessoa no cenario dos povos indigenas.

Com base no metodo da pesquisa bibliografica empreendida numa perspectiva interdisciplinar, sobretudo entre os campos da Antropologia, do Direito e da Psicologia, buscam-se subsidios para formular proposicoes as interrogacoes relativas aos contextos de estruturacao e as possibilidades de compreensao/utilizacao da construcao social da pessoa em desenvolvimento para encontrar maneiras de potencializar e, ao mesmo tempo, reordenar os direitos da crianca e adolescente, tomando a categoria pessoa em desenvolvimento condicao hermeneutico-normativa de fundamentacao conceitual e instrumental dos "novos direitos".

  1. Criterios cientificos e historico-culturais da categoria pessoa em desenvolvimento

    A pessoa em desenvolvimento e uma concepcao cientifico-cultural ocidental de estruturacao das fases da vida humana que ganhou repercussao mundial, sobretudo ao longo do seculo XX, de modo a ser utilizada como parametro hegemonico de demarcacao das bioclasses geracionais e instrumentalizacao dos aparelhos sociais aptos a maneja-las, legitimado por ordenamentos juridicos que incorporaram a construcao socio-epistemologica da pessoa em desenvolvimento para tracar o perfil dos destinatarios e as caracteristicas teorico-conceituais dos direitos.

    Basta observar os primeiros artigos da CDC e do ECA, que estipulam o periodo temporal do ser crianca e adolescente, compreendido ate os 18 anos incompletos, para perceber que a definicao de desenvolvimento infantil e adolescente e estruturada pela logica da Psicologia do Desenvolvimento, envolto no estabelecimento de processo de maturacao biopsicossocial desenvolvido por meio de estagios temporais.

    Segundo Prout e James (1997), o paradigma do desenvolvimento infantil e baseado na ideia do crescimento biologico como regra universal da humanidade, cuja mensuracao e categorizacao podem ser padronizadas. Trata-se de modelo autossustentavel em que as etapas do crescimento biologico possibilitam progressiva racionalidade as criancas, de forma a que o grau de racionalidade satisfatoria so possa ser identificado quando alcancado o estagio adulto.

    O modelo de desenvolvimento da crianca, que passou a dominar o pensamento ocidental de forma semelhante, conecta o desenvolvimento social com o biologico: atividades das criancas--sua linguagem, jogo e interacoes--sao significadas como marcadores simbolicos de progresso do desenvolvimento... A diminuicao da 'irracionalidade' das brincadeiras das criancas a medida que amadurecem e tomada como uma medida de uma evolucao para tornar-se substituida por ideias sofisticadas" (PROUT; JAMES, 1997, p. 11. Traducao nossa) Este saber cientifico procede a abordagem das mudancas psicologicas que o ser humano sofre no decorrer de seu tempo de vida, o que implica na consideracao do desenvolvimento fisico, cognitivo e social em cada etapa estipulada, sem remeter a um isolamento entre as etapas, pois ha influencias das anteriores para a estruturacao das posteriores. A maturacao humana e, entao, organizada em etapas ou idades da vida, as quais apresentam, no ambito especifico das criancas, a vinculacao da idade mental a idade cronologica.

    De acordo com Baggio (1985) e Trindade (2007), a Psicologia do Desenvolvimento estuda as mudancas de comportamento que ocorrem em funcao do tempo (3). Nao do tempo si, mas dos eventos ao longo da vida que podem causar e explicar transformacoes humanas. O tempo se torna escala conveniente dentro da qual se ordenam comportamentos e assinalam mudancas cuja ligacao com a idade cronologica nao pode ser tomada como determinista, mas conjuntural, no sentido de estabelecer as mudancas de comportamento desenvolvidas em funcao de processos intra-organismicos e ambientais no decorrer de determinada temporalidade. Portanto, cada estagio de desenvolvimento compreende periodo temporal de vida definido pela reuniao de uma serie de caracteristicas fisicas, emocionais, intelectuais e sociais.

    Uma das classificacoes mais utilizadas pelos teoricos da moderna Psicologia do Desenvolvimento foi estabelecida por Holmes, Bee e Tyson apud Trindade (2007), dividindo e distribuindo os estagios do desenvolvimento humano a partir da consideracao da vida enquanto processo total:

    1. Estagio pre-natal (concepcao ate nascimento): formacao da estrutura e orgaos corporais basicos. O crescimento fisico e mais rapido que nos demais periodos, havendo grande vulnerabilidade as influencias ambientais.

    2. Primeira infancia (nascimento ate 3 anos): o recem-nascido e dependente, porem competente. Todos os sentidos funcionam a partir do nascimento, sendo rapidos o crescimento fisico e o desenvolvimento de habilidades motoras. O apego aos pais e a outras pessoas familiares vai se alicercando, e a autoconsciencia se estabelece em torno do segundo ano. Posteriormente, o interesse por outras criancas aumenta.

    3. Segunda infancia (3 a 6 anos): as forcas e as habilidades motoras simples e complexas aumentam. Embora a compreensao da perspectiva do outro aumente progressivamente, o comportamento continua predominantemente egocentrico e a familia ainda e o nucleo da vida. A independencia, o autocontrole e os cuidados proprios aumentam.

    4. Terceira infancia (6 a 12 anos): o crescimento fisico nao e tao intenso como no periodo anterior, mas a aquisicao de habilidades fisicas aumenta e se aperfeicoa. O egocentrismo diminui, e o pensamento organiza-se de modo mais logico, embora ainda permaneca predominantemente concreto. A memoria e as habilidades de linguagem aumentam.

    5. Adolescencia (12 a 20 anos): atingi-se maturidade reprodutiva. Desenvolve-se a capacidade de pensar abstratamente e de usar o pensamento cientifico. Nesta etapa a busca de identidade constitui um fator primordial, justificando a vida em grupos de iguais, a adocao de modelos e de comportamentos estandardizados, que facilitam o caminho de identificacao.

    Quais as contribuicoes desta caracterizacao do desenvolvimento humano? Em primeiro lugar, os postulados cientificos permitiram a consolidacao (e difusao mundial) da infancia e da adolescencia enquanto representacoes culturais e situacoes sociais delimitadas a determinados grupos sociais e periodos da vida, articuladas com caracteristicas identitarias proprias em contextos especificos que reivindicam, direta ou indiretamente, a presenca diferenciada em relacao aos adultos.

    Por outro lado, a fixacao do ser crianca e adolescente representou a universalizacao da condicao de vulnerabilizacao geracional, no sentido de enquadra-los como sujeitos susceptiveis a eventos externos que podem produzir danos biopsicossociais relacionados a trajetoria de desenvolvimento humano, cujo componente complementar e a prerrogativa da "dependencia natural" aos adultos como elemento intrinseco do percurso inicial da vida, indicando a insercao do grupo geracional num grau privilegiado de risco social, o que exigiu e, ao mesmo tempo, legitimou a institucionalizacao do tratamento socioestatal a partir da criacao e/ou modificacao de aparelhos sociais, como a escola e a familia, alem de garanti-los atencao juridica privilegiada para a protecao contra as multiplas formas de violencias e promocao de condicoes sociais que propiciem a melhoria da qualidade de vida.

    Paralelamente, fica evidente a correlacao entre marcadores cronologicos e atributivos da crianca e do adolescente pela otica da Psicologia do Desenvolvimento e marcadores juridicos de caracterizacao da infancia/adolescencia, seja em relacao ao momento em que termina e, portanto, em que a crianca passa a ser considerada adulta, seja pela consideracao a ideia de incapacidade civil (4) como traducao juridica da imaturidade do desenvolvimento infantil construido pela Psicologia, requisito inerente da cidadania das criancas, as quais, devido a (pretensa) imaturidade biopsicossocial ou racional, tem cerceadas a potencialidade de exercicio de seus direitos e, ao mesmo tempo, diferenciado o tratamento juridico-estatal em comparacao aos adultos.

    As enfases identitaria e sociojuridica tambem permitiram a criacao e circulacao ideologica de modelos ideais de crianca e adolescente referenciados em padroes valorativos eurocentricos que justificavam a homogeneizacao representacional e a desconsideracao ou subjugacao de valores diferenciados tidos como desvios, como os encontrados nas classes populares e entre povos diferenciados etnico-culturalmente, possibilitando a entrada no campo juridico, social e politico ocidental de marcadores morais hierarquicamente dispostos como superiores e que justificavam (e ainda justificam) tanto a exclusao social quanto a tentativa de padronizacao forcada ou consensuada da...

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