A Segunda Guerra Mundial, os nipo-canadenses e a primeira fase do Movimento pelos Direitos Humanos no Canadá

AutorStephanie Bangarth
CargoProfessora do King?s University College, University of Western Ontario, Canadá.
Páginas21-40

Page 21

Stephanie Bangarth1

No discurso de Henry Wilcoxon2 que ficou famoso, o Vigário que ele interpretava no filme britânico sobre a Segunda Guerra, “Mrs. Miniver”, proclamava, “[…] esta não é apenas uma guerra de soldados em uniformes. É uma guerra do povo, de todo o povo, e deve ser lutada não apenas no campo de batalha, mas nas cidades e nos povoados, nas fábricas e nas fazendas, no lar e no coração de cada homem, mulher e criança que ama a liberdade!”3 A poderosa “experiência nacional” que a guerra trazia à tona em cada uma das nações que dela participavam resultou em mudanças significativas, tanto positivas quanto negativas, nas

Page 22

esferas econômica, social, cultural e política no Canadá. O período da Segunda Guerra Mundial anunciou o começo de uma batalha articulada pelo fim da perseguição racial e pelo reconhecimento dos direitos humanos de todos os cidadãos do Canadá. Apesar da batalha por direitos certamente não ter envolvido “cada homem, mulher e criança”, alguns grupos de canadenses que incluíam aqueles historicamente afetados pelo preconceito racial incitaram a ira dos seus concidadãos e confrontaram vários níveis do governo para que fossem propostas as mudanças nas políticas públicas que muitos canadenses exigiam. A natureza dessas exigências era baseada em uma série de mudanças importantes que ocorriam naqueles tempos.

Uma das transformações mais significativas que ocorreu no curso da Segunda Guerra foi a crescente consciência dos canadenses a respeito dos seus direitos. Grupos que defendiam as liberdades civis expandiram suas áreas de preocupação de modo a incluir não apenas os direitos liberais (isto é, o direito de livre expressão, de assistência legal, direitos de propriedade) mas também a atenção aos direitos igualitários (o direito à igual proteção da lei). Em termos discursivos, a linguagem dos direitos passou de uma ênfase nas “liberdades britânicas” para um foco sobre os “direitos humanos”. Ativistas dos direitos também se tornaram mais inclusivos, reconhecendo a necessidade de formar alianças com outros grupos interessados, que muitas vezes incluíam minorias raciais, religiosas e étnicas.

Um caso em especial demonstra de modo claro a preocupação crescente dos canadenses com o racismo, os direitos e a igualdade durante a Segunda Guerra e no período do imediato pósguerra: a campanha pelo “Comitê Cooperativo sobre os NipoCanadenses” (Cooperative Committee on Japanese Canadians CCJC) para impedir expatriação de milhares de canadenses de ascendência japonesa. A campanha apelou para o discurso emergente dos direitos humanos e foi notável pela participação de nipocanadenses em papéis de liderança. Apesar do seu mandato prático limitado, as atividades do CCJC demonstraram como um grande número de organizações, incluindo as principais denominações religiosas da época e os sindicatos, políticos e partidos políticos, alguns jornais e periódicos liberais diários e semanais (como o Star de Toronto, o Free Press de Winnipeg, o Canadian Forum e a revista Saturday Night), assim como indivíduos proeminentes e membros das comunidades afetadas podiam transcender a política e se unir para defender os direitos humanos de um grupo étnico minoritário. Destacase que os nipocanadenses não aceitaram passivamente seu “destino”, nem se submeteram a políticas governamentais racistas e opressivas; eles foram ativos em sua própria defesa, indicando a politização crescente dos grupos minoritários no período do pósguerra. Ao escapar da imagem dos nipocanadenses como vítimas das políticas governamentais, este artigo prefere enfocar “aquilo que as

Page 23

pessoas fizeram, em vez de o que foi feito a elas.”4 O CCJC uniu esses grupos distintos e seus esforços podem ser vistos como uma progressão de conquistas de objetivos de curto prazo, perseguidas por um grupo de canadenses funcionando coletivamente como membros de uma pioneira comunidade de luta pelos direitos humanos.

Pesquisas acadêmicas recentes apontam para as políticas públicas do governo federal de encarceramento e deportação de nipocanadenses como tendo tido um impacto sobre o “surgimento do idealismo igualitário” que teve lugar no Canadá do pósguerra.56 De fato, a campanha para obter justiça para as pessoas de ascendência japonesa, especialmente com respeito à deportação e a expatriação, representou o primeiro e mais significativo envolvimento canadense com o discurso dos direitos humanos. A atenção daqueles que advogavam a causa e suas estratégias de influência foram além das liberdades civis e do apelo ao respeito às “tradicionais liberdades britânicas” e na direção de uma retórica que incluía as ideias recémarticuladas de direitos humanos, tais como haviam sido expressas na Carta Atlântica e, mais tarde, na Carta das Nações Unidas. Ainda que a falta de um Bill of Rights em estilo americano tenha levado os defensores da causa a olharem para a Carta Atlântica e a Carta das Nações Unidas para dar aos seus argumentos substância e significado, isso não sugere, entretanto, que a experiência canadense tenha de algum modo proclamado algo de mais louvável; na verdade, os canadenses fizeram o melhor de uma situação difícil.

As implicações contrastantes da “raça” e da etnicidade na Segunda Guerra nunca foram tão claramente reveladas quanto no caso de um grupo que se encaixava nas duas categorias: as pessoas de ascendência japonesa residentes no Canadá. Apesar das várias restrições voltadas a muitos grupos minoritários, foram as dificuldades enfrentadas pelos nipocanadenses no tempo da guerra que provocaram o interesse dos defensores da causa. Canadenses de ascendência japonesa, tanto nascidos no país quanto naturalizados, sofreram um grande número de injustiças baseadas na “raça” desde que chegaram, no fim do século dezenove. Entretanto, as políticas adotadas durante a Segunda Guerra foram extremas e colocaram em cheque as crenças de muitos canadenses a respeito de suas próprias instituições democráticas.

O reassentamento dos nipocanadenses não foi uma decisão tomada do dia para a noite, nem aconteceu sem uma certa confusão, como indicou uma testemunha em suas memórias daquela provação: “O governo federal está perdido, sem saber exatamente como lidar conosco, japoneses do Canadá. As ordens mudam de um dia para o outro, sem um princípio que as guie”7. O processo tomou a forma de uma série crescente de medidas ad hoc tomadas pelo governo liberal de Mackenzie King logo depois do ataque de Pearl Harbor. Começou pelo registro de todos os

Page 24

japoneses na Colúmbia Britânica, seguido pela prisão e o internamento de trinta e oito japoneses tidos como perigosos para a segurança nacional. Na primavera e no verão de 1941, todas as pessoas de origem japonesa foram obrigadas a submeterse ao processo de registro e a carregar seus cartões de registro todo o tempo. Em dezembro de 1941, 1.200 barcos de pesca de propriedade de japoneses foram retidos e os movimentos de pessoas de origem japonesa passaram a ser monitorados e restringidos pela polícia (Royal Canadian Mounted Police, RCMP). Em janeiro de 1942, um Comitê Permanente sobre os orientais, instância federal, ordenou o “internamento” de todos os nipocanadenses do sexo masculino em idade militar; esse foi o terceiro e último passo nessa fase inicial da política de reassentamento. Três dias depois aconteceu uma conferência de políticos federais e provinciais, oficiais militares e policiais para discutir a situação na costa oeste. Quando as medidas parciais não foram suficientes para calar as vozes antijaponesas que ecoavam na Colúmbia Britânica e por todo o Canadá, King anunciou, em 24 de fevereiro, uma política de remoção total de todos os nikkei, sem distinção de status de estrangeiro ou cidadão, da faixa protegida de 100 milhas na costa oeste, por medida de necessidade militar.8 Assim se deu o terceiro passo dessa fase inicial. Não era uma ideia original. Militantes antijaponeses na costa oeste vinham advogando algum tipo de medida semelhante há alguns anos. A Colúmbia Britânica, como um especialista notou, era “a criança problemática do Canadá no que diz respeito à legislação discriminatória”9

Ainda que a política de remoção trouxesse a inconfundível marca da opinião pública da costa oeste, o governo não pode ser completamente absolvido da culpa. King e os membros do seu governo eram produtos do seu tempo e certamente acreditavam na ideologia racial corrente. Ainda assim, a medida não respondia a uma necessidade militar, e as autoridades militares canadenses e a RCMP discordavam fortemente do governo de King sobre a necessidade da remoção. A população japonesa da Colúmbia Britânica compunha meros 2,7% do total, mas a questão é que ela se concentrava de modo intenso, criando “guetos étnicos” nos centros urbanos da província. Mas nem toda a concentração japonesa se dava em áreas urbanas, entretanto. Agrupamentos significativos podiam ser encontrados na aldeia pesqueira de Steveston e em vários lugares do Fraser Valley. No fim das contas, a política canadense de reassentamento envolveu mais de 21.000 pessoas de ascendência japonesa, representando mais de 90% da população japonesa no Canadá. Desses, quase 4.000 seriam “repatriados” para o Japão ou – de modo mais acurado para o caso de cidadãos canadenses de ascendência nipônica – expatriados. Dos 17.000 remanescentes, apenas cerca de 4.000 voltaram à costa oeste, enquanto os remanescentes reestabeleceramse a leste das Montanhas Rochosas10

Page 25

Hoje a opinião corrente é que a política de encarceramento foi uma violação dos valores democráticoliberais, mas virtualmente todos os liberais em 1942 a encararam como um mal necessário, justificável em termos de segurança nacional, assim como de defesa contra a possibilidade de ataques populares violentos antijaponeses. Aqueles membros da pioneira comunidade dos direitos humanos que poderiam sob outras condições ter protestado contra a política governamental, na verdade a apoiaram. Mesmo o Cooperative...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT