Prefácio Psicanalítico

AutorXavier-Serge Lesourd
Páginas21-25

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O próprio título do livro de Silvane Marchesini, o direito de ter uma criança fora da sexualidade, é um paradoxo que vem sublinhar a complexidade das questões que se colocam hoje em seguida ao progresso das tecnologias medicais que separaram o ato sexual da procriação, o ato do desejo da criação de uma nova vida humana.

Para tentar esclarecer este paradoxo nós precisamos desenvolver um pouco o que está no coração das questões fundamentais que coloca este livro para nossa pós-modernidade em situando os termos do debate: a questão da origem, o laço entre sexualidade e procriação, a organização dessas questões por essa forma particular de narrativa que é o Direito.

Em primeiro lugar, este livro vem tentar questionar esse "mistério da origem" nas coordenadas atuais da Ciência Médica e da governança do mundo pela economia que tentam criar novos direitos para os indivíduos de nossa pós-modernidade. Esse mistério da origem é de todos os tempos, de toda sociedade e de toda idade. "Onde eu estava antes de ser no mundo" esta questão que as crianças sempre colocaram a seus parentes, é uma questão sem resposta. E é porque a origem é um mistério, "o homem é aquele a quem uma imagem falta3" que, desde que o homem fala, ele inventou os mitos, as narrrativas, para tentar dar conta e organizar um senso face a este "impensável". A Teogonia de Hesíodo, como a Gênese e a teoria cientíica de homún-culos espermáticos ou aquela da penetração do óvulo pelo espermatozoide, são narrativas dessa criação do sujeito que colocam em forma as relações dos humanos à sua origem. Certamente essas narrativas não têm o mesmo valor cientíico, mas elas têm, entretanto, a mesma função: elas vêm dar conta, para uma época dada, da origem dos laços que fundam um ser humano, dos laços que unem uma criança a seus pai e mãe, genitores ou não.

Em seu fundo, todas as concepções da filiação, que o Direito leva em conta na sua formalização lógi-ca, restam narrativas que colocam em forma a sucessão das gerações, a reprodução sexual e a diferença dos sexos para uma época dada.

De fato, nenhuma época ignorou que precisaria que tivessem relações sexuais genitais entre um ho-mem e uma mulher para que aparecesse, primeiro uma parada do luxo sanguíneo da menstruação, em seguida uma nova vida no ventre da mulher tornada mãe. A maneira, cujas narrativas dão conta dessa aparição da criança, são múltiplas e variadas, e constituem as particularidades culturais e jurídicas de uma época dada. Nenhuma época, ignorou jamais que certas relações sexuais eram infecundas e cada sociedade inventou os modos particulares de remediar essa esterilidade. Desde os amantes das mães até o casal mãe-pai das sociedades da África Central passando pelas concubinas dos reis e as adoções diver-sas, todas as soluções imagináveis forão inventadas, para que a esterilidade das relações sexuais pudesse ser compensada por uma prática que permite dar a vida a um descendente. A filiação, de fato, torna-se para o ser humano a única das condições que permite afrontar o outro mistério da vida humana: "o que serei-eu após minha morte?"4 A filiação é, assim, para o ser humano o único lugar que trata em conjunto

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os mistérios do antes e do depois da vida, que tão bem "eterniza" a vida individual em construindo um antes (a sequência dos ancestrais) e um depois (a sucessão dos descendentes) para além da "presença no mundo" do indivíduo. Nisto a filiação, a qual faz traço do desejo dos genitores e perpetua o desejo subjetivo na criança, se inscreve no coração da psyché humana, na mais íntima, aquela do inconsciente, o lugar do desejo subjetivo que ignora a morte. Ela permite assim ao sujeito, na sua mais estrita intimidade, de ser desde sempre e para sempre, atenuando assim o peso angustiante da initude.

Outras vias são abertas para essa "sobrevivência" como o mostram bem os caminhos da arte, da criação ou da educação. Mas, essas vias sublimatórias que tranformam o desejo de realização de si e de gozo individual em bens culturais e sociais não são sempre abertas ao indivíduo, não por enfraquecimento individual, mas porque as condições reais da vida de um indivíduo podem se opor a isso. Precariedade, miséria, perigo de guerra, insegurança, todos esses fatores, quando eles dominam a vida individual, centrando-a sobre uma sobrevivência imediata, impedem a realização de si pelas obras culturais, e infelizmente é o lote de uma grande parte da humanidade. A filiação se torna então o único meio de s obrevivência do indivíduo.5

Outra coisa na nossa sociedade moderna é o direito a ter uma criança que reinvindicam esses que colocam em obra uma sexualidade não procriativa, quer essa seja homo ou heterossexuada. Esse Direito a ter uma criança veio originalmente dos parentes heterossexuais que, por diversas razões medicais6 não podiam ter crianças. O...

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