Prefácio

AutorMarco Aurélio Serau Junior
Ocupação do AutorProfessor da UFPR - Universidade Federal do Paraná
Páginas7-9

Page 7

Ao lado do Pelourinho, encontramos o Telheiro da Vila em Óbidos. Datado do período medieval e reconstruído no século XVI, antes de ser um balcão de honra para as festividades da praça central da cidade, o Telheiro serviu como local de contratação diária de trabalhadores rurais. As pessoas se ofereciam para a venda de seu trabalho, jornada a jornada. Já no Rio de Janeiro, o Cais do Valongo recebeu mais de um milhão de africanos escravizados, comprados e vendidos naquele porto. Local de maior desembarque de escravos africanos em toda a América, verdadeiro mercado de pessoas, o cais deixou de funcionar com a promulgação de leis contra a escravidão e foi duplamente encoberto em tentativas de apagamento da história.

Os escombros cariocas resgatados e reconhecidos como patrimônio da humanidade pela UNESCO, marco da memória da diáspora africana, ajudam a compreender a formação do mercado de trabalho brasileiro. Também o Porto de Santos, que recebeu milhares de trabalhadores europeus para substituir a mão de obra nas fazendas, é um local representativo. Da escravização ao colonato com regime de parceria, os portos brasileiros são locais simbólicos para o trabalho nacional, pois também para eles se dirigiram muitos trabalhadores negros libertos, preteridos nas fábricas, em busca de trabalho, e lá permaneceram avulsos. No Brasil, os portos representavam locais para onde se dirigia o patronato em busca por mão de obra para a escravidão ou para o assalariamento.

E hoje? Como buscam força de trabalho os que pretendem empreender? No “mercado de trabalho”, nos jornais, nas agências de colocação, nas empresas prestadoras de serviços a terceiros, nas intermediadoras de mão de obra? Estamos de volta ao “serviço”, à diária, à intermitência, à marchandage?

Olhar para locais do passado, ver o que está encoberto nas paisagens, permite-nos refletir sobre o valor que cada sociedade atribui ao trabalho. E sobre os modos de alocação do labor humano, muito antes da institucionalização daquilo que a economia designa como mercado de trabalho. E nessas rotas, buscar tentar entender aquilo que tantos e tantos juristas liberais e até alguns juízes, professores e ministros aduzem quando nos advertem em franca censura que o trabalho mudou e que não podemos dar as costas para a realidade. Deveríamos compreender a terceirização como dado natural de realidade! Sabemos que o ideal seria ensinar que o mercado não é um dado natural e que esta realidade que tanto nos falam é construída. Ou seja, que o mercado de pessoas que o reconhecimento amplo da validade dos contratos de prestação de serviços terceirizados pretende instaurar é uma construção, para o qual os pilares que os juristas edificam foram – com a Súmula 331 do TST – e são – com as Leis 13.429, de 31 de março de 2017 e 13.467 de 13 de julho de 2017 – essenciais para sua formação. Contudo, em um prefácio não temos o compromisso com a didática e sobre esta alusão à terceirização e à sua realidade, evoco a advertência do Milagrário Pessoal de José Eduardo Agualusa: “tu estás lúcida, a realidade é que parece ter perdido a razão. Não te preocupes. A realidade sofre com frequência de surtos psicóticos.”

O problema é que nos surtos que a realidade instaurada pelo economicismo neoliberal, pelo capitalismo descomplexado,1 a pulsão autoritária emerge com força contra os limites construídos pelo direito e busca implodir os espaços que a democracia criou ao derrubar os muros que separavam o público e o privado, a arena cidadã do despotismo fabril.2 E leva o direito que buscava civilizar relações de poder, por meio da juridificação das relações entre capital e trabalho, ao Pelourinho.3

E por que é este o direito que sofre mais ataque? Em sua ambiguidade constitutiva o Direito do Trabalho buscou conjugar as dimensões humanas do labor, a necessidade de preservação da vida, de estabelecer limites à coisificação da pessoa, sem desconsiderar as...

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