Peregrinações pouco católicas: o lócus religioso das peregrinações a pé a Fátima

AutorPedro Pereira
CargoInstituto Politécnico de Viana do Castelo
Páginas179-193

Pedro Pereira1

    Peregrination less than catholic: religious locus of walking pilgrimages to Fátima.

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1 -Introdução

A viagem por devoção até um lugar considerado sagrado apresenta-se como fenômeno social profundamente abrangente em termos históricos, geográficos e culturais. No caso do cristianismo, ainda que Cristo não tenha proposto qualquer tipo de peregrinação - ao contrário de outros fundadores de religiões, como Buda e Maomé -, elas se proliferaram com mais ou menos intensidade, depois da instituição do cristianismo como religião de Estado (século IV) até a atualidade.

Particularmente, a partir do século XIX, os peregrinos católicos começaram a convergir de forma mais intensa para lugares de aparições da Virgem Maria. De fato, o culto mariano, que acompanhou o cristianismo, de formas mais ou menos manifestas, quase desde seu início, 2 materializou-se no espaço, o que fica evidente na proliferação de santuários dedicados a Maria. Desde o século XIX, o número de santuários marianos, bem como o número de peregrinos católicos a convergir para eles aumentou. 3

Em Portugal, também o número de santuários marianos é elevado, 4 e destaca-se o Santuário de Fátima que, em 2006, atraiu mais de sete milhões de peregrinos das mais diversas partes do mundo, que utilizavam os mais diversos meios de transporte para chegar até Fátima (SEPE, 2008).

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Todavia, desde o início das aparições até ao presente, alguns milhares de peregrinos 5 fazem a viagem a pé.

A partir disso, o presente artigo tem como objetivo aferir o lócus religioso do fenômeno das peregrinações a pé a Fátima, ou seja, compreender as práticas e crenças religiosas dos peregrinos que caminham a pé até Fátima. De forma superficial, inserem-se as crenças e práticas em causa no catolicismo ou vislumbra-se nelas a presença da religiosidade popular.

Contudo, defende-se neste artigo que o que é específico às peregrinações a pé a Fátima não cabe na teologia católica da peregrinação e não se compreende no conceito demasiado vago da religiosidade popular. As peregrinações a pé a Fátima apresentam lócus religioso específico identificável particularmente pela compreensão das relações que os crentes mantêm com a Senhora de Fátima e da dupla viagem que fazem até Ela, primeiramente, espiritual - a promessa -, depois física - a peregrinação a pé.

2 -Peregrinações e catolicismo

Os critérios propostos por diversos autores para classificar as peregrinações podem ser diversos, atendem à dimensão geográfica do fenômeno, 6 ao momento histórico de seu surgimento 7 ou têm em atenção a entidade que apareceu no lugar. Nesse último caso, o fato de ter sido a Mãe do fundador da religião católica (e cristã) a aparecer em Fátima poderia levar a classificar as peregrinações a pé a Fátima como peregrinações católicas. Uma vez que a religião que os peregrinos caminhantes de Fátima dizem professar é também a católica, que os peregrinos que vão a pé a Fátima têm práticas católicas, quase todos são batizados e casados pela igreja católica,

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e boa parte vai à missa com maior ou menor regularidade, então, restam poucas dúvidas ao classificar as peregrinações em estudo como católicas. 8

Todavia, a própria instituição católica tem, diversas vezes, necessidade de evangelizar as peregrinações, o que faz supor seu afastamento do ideal de peregrinação defendido pela igreja católica. Veja-se aquilo que se pode conceber como algumas orientações para uma pastoral da peregrinação propostas pelo autor católico S. Rosso. Dentre outras, podem-se salientar as seguintes: "A peregrinação deve [se] orientar para o sentido de corresponder ao oferecimento que Deus nos faz da sua misericórdia e do seu amor" (1995, p.1048); "A peregrinação não deve representar acréscimo de obrigações (pagar dívidas ou 'comprar' facilidades diante de Deus), mas deve ser de tipo festivo" (1995, p.1048); "Não pode haver peregrinação sem a celebração da eucaristia" (1995, p.1048); "Vai-se a Maria para chegar melhor e mais facilmente a Deus" (1995, p.1046); a peregrinação deve promover a "participação na vida da igreja, entrando ativamente nas suas preocupações e na sua ação" (1995, p.1048-1049). Como já defendemos noutro lugar (PEREIRA, 2003), as peregrinações a pé a Fátima não satisfazem as importantes diretrizes daquilo que, pelo menos na atualidade, deve ser uma peregrinação cristã. Tanto assim é que são múltiplas as atuações da igreja para orientar ou converter essas práticas que se afastam do ideal de peregrinação cristã.

Reportando-se às diversas aparições não reconhecidas pela igreja, R. Laurentin (1995, p.118) refere que: "podemos nos perguntar se uma pastoral bem preparada não as teria podido dirigir no sentido justo e recuperar esses fenômenos". Relativamente às peregrinações a pé a Fátima, a tentativa de controle pela igreja começa na promessa, passa pela própria peregrinação a pé e prolonga-se até ao espaço do santuário. Quando alguns peregrinos dizem a um padre que fizeram uma promessa de ir a pé a Fátima, este, não raras vezes, sugere que a promessa pode ser comutada pela entrega à igreja de determinada quantia, que nos casos que me foram contados aproximavase sempre dos cento e cinqüenta euros. 9 Ao longo da peregrinação, a tentativa de controle da igreja pode ser notada em vários aspectos.

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Quando um peregrino se encontra em dificuldade, é freqüente que os poucos padres que acompanham peregrinos caminhantes digam a essas pessoas que "ficam por elas", isto é, que por meio da palavra do padre a promessa ficaria cumprida e o peregrino poderia ir para casa. Em alguns postos de socorro, os voluntários que aí trabalham procuram prestar cuidados de saúde, fornecer alimentos, às vezes guarida e, simultaneamente, apoio moral ou espiritual. Por exemplo, um chefe de um desses postos dizia-me que antes de os peregrinos saírem ele orientava algumas orações e fazia um discurso sobre aquilo que deveria ser a verdadeira peregrinação. Os guias do santuário 10 são de alguma forma um prolongamento das igrejas no seio das peregrinações a pé a Fátima. Na arena de discursos (EADE e SALLNOW, 1991) do santuário, a igreja procura fazer prevalecer seu discurso essencialmente pelas mensagens dos expositores 11 e de panfletos, 12 que são distribuídos em suas imediações, e pela recorrente seqüência de missas que decorrem, particularmente, na Capela das Aparições.

Apesar dessas empenhadas tentativas de controle pela igreja, na generalidade dos casos, os peregrinos caminhantes fazem prevalecer seu discurso e sua prática, evitando o controle por parte dos padres. Dificilmente os peregrinos trocam a promessa que fizeram, abandonam a peregrinação por sugestão de um padre ou alteram os rituais que tinham prometido fazer no santuário. Exemplo elucidativo do referido foi-me contado por um guia do santuário. Quando um enorme grupo de peregrinos pernoitava num quartel de bombeiros, um padre, que também era peregrino, sugeriu a todos os peregrinos, pertencentes a diferentes grupos, que, no dia seguinte, antes de começarem a caminhar, rezassem uma missa em conjunto. Na manhã seguinte,

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os peregrinos foram embora sem rezar, deixando ficar o padre com um pequeno grupo ao qual pertencia o guia que me contou esse episódio.

Essas tentativas delineadas pela igreja de controlar as peregrinações a pé a Fátima vêm reforçar a idéia de que elas não se enquadram integralmente nas peregrinações católicas, podem aparentemente situar-se nas margens do catolicismo e logo ser remetidas para o universo difuso dos fenômenos que habitualmente se denominam religiosidade popular.

3 -Peregrinações e religiosidade popular

A religiosidade popular é normalmente abordada em função de uma religião instituída, geralmente a católica. Alguns autores colocam a religiosidade popular à parte da religião instituída. Para Sanchis (1992, p. 82), a existência de uma religião "popular" deve-se ao fato de a religião "oficial" declará-la proscrita, não aceitá-la, o que faz com que as representações e os comportamentos estigmatizados se tornem mais livres. J. Maître (1968, p. 36), indo um pouco de encontro a Sanchis, considera a "religiosidade popular como uma religiosidade vivida nos grupos sociais por assim dizer por sua conta (abstraindo-se da intervenção do poder eclesiástico ou de uma legitimação dogmática)". Outros autores, para além de reconhecer alguma autonomia da religiosidade popular em relação à religião instituída, salientam que existe alguma interligação entre elas. Para François-Isambert (1982), a religiosidade popular é um sistema, conjunto de subsistemas ou cultos, caracterizados por sua relativa autonomia em relação à instituição eclesiástica. De modo semelhante, para Santo (1990, p.17), a religiosidade popular "é o sistema religioso que goza de uma certa autonomia em relação à instituição eclesiástica, ainda que ambos tenham traços comuns e estejam por vezes interligados".

Ao colocar um fenômeno como as peregrinações a pé Fátima dentro da religiosidade popular está-se a dizer mais aquilo que ele não era do que aquilo que ele era, ou seja, que esse fenômeno não pertencia à religião instituída. Por outro lado, não é correto chamar popular a religiosidade presente nas peregrinações a pé a Fátima, pois as pessoas que vão a pé a Fátima não pertencem todas ao povo (eventualmente de baixa classe econômica e social), nem são apenas pessoas...

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