A Polêmica Quanto à Prevalência do Negociado sobre o Legislado

AutorDavi Furtado Meirelles
Ocupação do AutorDesembargador Federal do Trabalho do TRT da 2ª Região (SP)
Páginas122-139
VIII
A Polêmica Quanto à Prevalência
do Negociado sobre o Legislado
D epois de tudo o que já foi, até aqui, estudado e analisado, comece-se invocando a seguinte assertiva:
“Não é exagero dizer que a maior barreira para a modernização das relações laborais hoje no Brasil situa-se na
própria Justiça do Trabalho, em especial quando ela insiste em rever ou anular cláusulas livremente acordadas
nas negociações coletivas entre patrões e empregados.
A fala é de um dos maiores empresários e líderes sindicais patronais do país, Abram Szajman, presidente da
Fecomércio-SP, a poderosa Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo(495). Esta é a
visão que o intervencionismo da Justiça do Trabalho, de maneira indiscriminada, vem transmitindo no empresariado
brasileiro. Se é uma posição acertada, ou não, é o que será tratado adiante.
A própria evolução histórica do Direito do Trabalho explica os motivos do intervencionismo estatal em benefício
dos trabalhadores. Segundo Maria do Rosário Palma Ramalho(496):
Animada pela necessidade de fazer face à “questão social”, a intervenção normativa dos Estados no domínio
laboral, em qualquer das suas áreas regulativas, é bastante pragmática: trata-se, por um lado, de uma intervenção
assumidamente em favor do trabalhador, reconhecido como parte mais fraca do vínculo laboral; e trata-se,
de outra parte, de uma intervenção em moldes imperativos, única forma de coartar efectivamente a liberdade
do empregador na xação do conteúdo do contrato de trabalho.
A mesma autora, no entanto, admite que a tendência do direito moderno é fugir a esse modelo tradicional, que
apenas protege o “trabalhador subordinado típico”, na medida em que se verica o ... surgimento de novas categorias
de trabalhadores (como as mulheres, os jovens ou os trabalhadores estudantes, os trabalhadores a termo e temporários, os
trabalhadores muito especializados, os quadros técnicos e os trabalhadores dirigentes) ...aos quais a autora portuguesa
dá a alcunha de “trabalhadores atípicos(497).
Essa evolução nas formas de prestação do trabalho pode fazer com que o Direito do Trabalho deixe de cumprir a
sua missão reguladora e protecionista. João Leal Amado(498), outro conhecido jurista lusit ano, nesse sentido, j á profetizou:
Um Direito do Trabalho demasiado rígido e excessivamente garantístico seria, anal, o grande responsável
por esta segmentação e pelo dualismo do mercado de trabalho, criando uma fractura entre os que estão
dentro e os que estão fora da “cidadela forticada” do direito laboral.
A consequência do abandono do modelo tradicional de contratação pode reetir na próxima essência do Direito
do Trabalho, uma ve z que:
... a retribuição dos trabalhadores é muitas vezes variável e em função dos resultados; a organização do
trabalho não é feita em moldes hierarquizados, mas em equipas; o local de trabalho pode não corresponder
(495) A toga e o chão de fábrica, artigo publicado no Jornal Folha de S. Paulo, na coluna Tendências/Debates, p. A3, do dia 6 nov. 2013 (fonte:
folha.com.br>).
(496) Direito do trabalho, p. 51.
(497) Ibidem, p. 60-61.
(498) Contrato de trabalho, p. 26.
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NEGOCIAÇÃO COLETIVA EM TEMPOS DE CRISE
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às instalações da empresa, vulgarizando-se as formas de controlo à distância que a evolução tecnológica
propicia e, sobretudo, no âmbito dos grupos de empresas, incentivando-se uma certa migração dos traba-
lhadores entre as empresas do grupo; é também comum a exibilização dos tempos de trabalho em função
das necessidades da empresa; ...(499)
E essa estrutura mais diversicada no desenvolvimento do trabalho pode permitir ... uma maior aproximação
dos trabalhadores ao empregador..., o que vai ser incentivado, segundo Palma Ramalho, ... por diversas formas de in-
teressamento dos trabalhadores nos resultados, como prémios de produtividade, participação nos lucros ou no capital...”,
podendo levar não somente a uma alteração clássica no tradicional Direito do Trabalho, como também “... contribui
para diminuir a força do associativismo sindical...(500).
Essa constatação levou João Leal Amado(501) a concluir que:
O Direito do Trabalho atravessa uma profunda crise de identidade, com a sua axiologia própria (centrada
em valores como a igualdade, a dignidade, a solidariedade, etc.) a ser abertamente questionada. Fala-se,
não sem alguma razão, numa autêntica “colonização economicista” deste ramo do ordenamento jurídico.
Com essas modernas formas de prestação do trabalho, mais exíveis, a estrutura tradicional de legislação prote-
cionista do próprio Direito do Trabalho, por vezes, se vê impotente, impossibilitada de alcançar uma regulamentação
muito mais complexa. Aqui ganha importância descomunal a negociação coletiva de trabalho.
Mas, ao contrário do que se prega e se teme, um amplo processo de negociação coletiva que visa garantir um certo
equilíbrio para as partes contratantes, e não que leve à desregulamentação de direitos conquistados. Mesmo porque não
se pode perder de vista a garantia do não retrocesso social em relação aos direitos assegurados constitucionalmente,
como já alertou Ingo Sarlet(502):
A garantia constitucional da proibição de retrocesso contempla dois conteúdos normativos que se complementam:
por um lado, impõe-se ao Estado a obrigação de “não piorar” as condições normativas hoje existentes em
determinado ordenamento jurídico – e o mesmo vale para a estrutura organizacional-administrativa; por
outro lado, também se faz imperativo, especialmente relevante no contexto da proteção do ambiente, uma
obrigação de “melhorar”, ou seja, de aprimorar tais condições normativas — e tamb ém fáticas — no sentido
de assegurar um contexto cada vez mais favorável ao desfr ute de uma vida digna e saudável pelo indivíduo
e pela coletividade como um todo.
Os processos de exibilização do Direito do Trabalho somente devem ocorrer com a necessária segurança jurídica
para as partes. É o que Maria do Rosário Palma Ramalho(503) chamou de “exisegurança”, em que a tendência de des-
regulamentação do Direito do Trabalho levará a “... diminuir o número de normas laborais imperativas e a aumentar o
espaço de liberdade dos entes laborais, que no âmbito da negociação colectiva quer no domínio dos contratos de trabalho...”.
No Brasil, a questão se reveste de maior importância na medida em que a legislação trabalhista é bem mais pro-
tecionista, deixando poucos espaços para um processo de negociação coletiva mais seguro. Daí o fato de que, por aqui,
a discussão quanto à prevalência do negociado sobre o legislado tenha causado inúmeras polêmicas e interpretações.
O tema não suscita consenso nem mesmo entre aqueles que deveriam inter pretar a aplicar o direito. Já se vericou
no trabalho, e novamente será enfocado a seguir, que as posições adotadas pelo STF e pelo TST são diametralmente
opostas em certa medida. Enquanto a Suprema Corte parece prestigiar a autonomia privada negocial de forma mais
absoluta, a Justiça Especializada, circundada, também, pelos Tribunais Regionais, não demonstra a mesma receptividade
com as normas autônom as.
(499) C.f. RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Direito do trabalho, p. 66.
(500) Idem.
(501) Contrato de trabalho, p. 26.
(502) Os direitos dos trabalhadores como direitos fundamentais na Constituição Federal Brasileira de 1988. In: Diálogos entre o direito do trabalho
e o direito constitucional. Coordenação de Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Philippe Vieira de Mello Filho e Ana de Oliveira Frazão, p. 67.
(503) Direito do trabalho, p. 74.
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