Judicialização da política e a percepção da mídia impressa brasileira

AutorFlávio Ramos; Samantha Buglione; Claudia Rosane Roesler
Páginas4-20

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Introdução

A expansão das ações do Judiciário na esfera da política pode ser considerada um fenômeno mundial e tem como característica o exercício interpretativo do direito.1234 O Judiciário, espaço privilegiado para esse exercício, torna-se, assim, um ator institucional capaz de exercer significativo e crescente controle sobre as ações dos outros poderes, bem como atender ou interpretar novas e inéditas demandas sociais procedentes (procedentes) de um mundo em profundas transformações. As instituições, como não poderia deixar de ser, sofrem as consequências dessas mesmas transformações. Uma questão fundamental que se deve fazer é sobre o sentido de política empregado quando se afirmar a intervenção do Judiciário na política. Dito de outra forma, em que medida essa suposta intervenção não significa, em realidade, o adequado funcionamento das estruturas democráticas? Esse é um ponto fundamental para que seja observada a linha divisória entre a ação do Estado, como instituição, e os abusos e as violações à autonomia dos diferentes poderes que compõem este Estado. Dworkin (1999a; 1999b), por exemplo, vai trabalhar com algumas categorias que são bastante úteis e ajudam a pensar a judicialização da política: a de rights e a goals5. As políticas públicas estão mais no campo dos princípios6 (goals) afirmados por uma sociedade, os quais, por sua vez, estão diretamente vinculados ao campo normativo (rights). Tanto um quanto outro (goals e rights) compõem a razão pública de uma sociedade.

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Nesse sentido, a intervenção do Judiciário na política só deveria ser condenada quando interfere ou impede a efetivação da razão pública. A razão pública é aqui compreendida como o conjunto de raciocínios e inferências que dizem respeito às questões políticas fundamentais da sociedade (RAWLS, 2000), em outras palavras, refere-se aos acordos políticos estruturais, como os direitos fundamentais.

Por outro lado, considerando que na modernidade, de acordo com Bauman (1998), há uma funcionalidade do conjunto da sociedade difícil de romper esse mundo, voltado para um rígido ordenamento, cede lugar para as incertezas da atualidade e a solidez das "estruturas" modernas deixa de existir. As mudanças de paradigmas em nossas constantes representações da vida coletiva e pessoal e as incertezas futuras proporcionam um cenário de grandes transformações não necessariamente previsíveis (BECK, 1997; BAUMAN, 2001; LIPOVETSKY, 2006; TOURAINE, 2006). Beck (1997) ressalta, inclusive, a "metamorfose do Estado", ou seja, uma mudança bastante significativa das ações institucionais "supostamente eternas".

A mudança de comportamento das instituições tem sido objeto de estudos ao longo do tempo. Théret (2003) observa que as instituições seriam correspondências dos planos morais e cognitivos dos atores. Com isso, as recentes transformações do Judiciário estariam sintonizadas com possíveis expectativas contemporâneas de uma sociedade que se caracterizaria por novas e inéditas demandas. Vertentes teóricas como o neoinstitucionalismo, por exemplo, privilegiam a relevância das instituições para o entendimento dos diferentes processos sociais (MARQUES, 1997).

O Judiciário, tornando-se um instrumento de controle e agindo para corrigir atos e decisões dos outros dois poderes, torna-se, portanto, objeto de análise em contexto histórico de grandes transformações. Necessário, portanto, questionar: há ou não legitimidade para a surpreendente desenvoltura dos tribunais em opinar e julgar ações do Executivo e do Legislativo? Estaria essa instância do poder constitucional qualificada para julgar temas de grande complexidade e igual diversidade? A resposta está diretamente vinculada a um conceito de política e funcionalidade das instituições democráticas. Se esses elementos não ficarem Page 6 explicitados, as chances de se enveredar por argumentos superficiais, no sentido de compreensão dos fatos e das prescrições legítimas, portanto vinculadas à razão pública, serão bastante comuns. O fato é que o debate ganhou as páginas da mídia impressa. Articulistas de periódicos brasileiros dedicam especial atenção para esse novo fenômeno do cenário político do país. Os cadernos culturais e políticos dos jornais concedem igual espaço para sociólogos e cientistas políticos expressarem suas respectivas opiniões e análises sobre o ativismo judicial.

O artigo resgata as principais manifestações, análises e opiniões registradas na mídia impressa brasileira sobre o tema. A escolha das colunas e análises registradas foi aleatória em função do número excessivo de matérias dedicadas ao assunto. Longe de contemplar a totalidade do que foi publicado, a intenção é registrar um fragmento do que foi impresso a partir de 2004 na mídia impressa, bem como algumas análises sobre o processo de judicialização da política, desenvolvidas por cientistas sociais, anteriores a esse período. A proposta é utilizar esses elementos como uma metáfora para mapear a forma como o tema está sendo debatido no Brasil, a fim de observar em que medida conceitos centrais estão sendo observados, debatidos e informados.

A preocupação, neste caso, de acordo com Cellard (2008), é localizar textos pertinentes que apresentem credibilidade. No caso específico dos jornais, convém, ainda de acordo com o autor, conhecer mais profundamente possível a mídia, a linha editorial e a orientação política do periódico. Por outro lado, o texto não apresenta os habituais argumentos de que a grande imprensa brasileira representa interesses de grupos econômicos, grandes estruturas de poder, etc. pelo fato de o artigo retratar apenas a percepção da mídia impressa sem a pretensão de aprofundar o tema buscando explicações a partir de um determinismo estrutural, embora os autores estejam conscientes de que o conteúdo das análises e dos artigos publicados representem, eventualmente, posturas ideológicas ou mesmo representem grupos de interesse.

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1 Judicialização da política

A expressão ativismo judicial ganhou destaque recentemente no âmbito das relações entre os três poderes constitucionais. As democracias contemporâneas convivem com uma significativa ampliação das ações normativas do Poder Judiciário7. Fruto ou não das pressões da sociedade, eis que essa participação diferenciada, atuante e original desse poder nos conduz ao que se convencionou denominar "judicialização da política8". A ideia comum sobre judicialização é que se trata de uma intervenção do Judiciário nas questões eminentemente políticas (OLIVEIRA; CARVALHO, 2006). A questão, portanto, é sobre o que são questões eminentemente políticas. Isso porque se pensarmos o direito e o Poder Judiciário como espaços que compõem a ordem democrática, perceberemos que suas ações são e devem ser políticas no sentido de política como expressão do interesse público e dos goals de determinada sociedade. O que se observa, contudo, é que nem sempre a discussão sobre este tema enfrenta elementos básicos como o sentido dessas categorias. Isso induz a uma confusão na forma de compreender o campo, fazendo com que não raras vezes julgue-se a conduta do Poder Judiciário como indevida.

Uma hipótese a ser considerada é que a maior participação do Judiciário na esfera das deliberações sobre direitos e objetivos é sintomática de uma democracia que não debate, nos locais apropriados, as questões que deveria debater. Em regra, o que se torna objeto do "ativismo social" são temas delicados do ponto de vista moral, como aborto, má formação fetal, cotas raciais; ou do ponto de vista econômico, como acesso a medicamentos. O que se quer dizer é que se o debate - e os conflitos decorrentes dele - não ocorrer na esfera do Legislativo e no processo de constituição das políticas públicas do Estado, iria se realizar de qualquer forma, porque os temas geram conflitos de interesse e tensão entre direitos. Ocorre que o Poder Judiciário está se tornando o campo privilegiado dos debates sobre leis e princípios do Estado, ou seja, o espaço de deliberações de políticas públicas, quando deveria, apenas, tratar da realização dos direitos. O que deve ser pensado a partir desse fato é sobre as razões disso estar ocorrendo no Brasil e quais as consequências desse processo para a democracia do país. O problema central não Page 8 é a intervenção do Judiciário, mas o que faz com que cada vez mais esse poder do Estado acabe agindo como o campo privilegiado do debate político em vez do Legislativo, por exemplo. Não é o Poder Judiciário que intervém em políticas públicas, mas são as demandas privadas que geram processos que acabam por provocar essa intervenção. Portanto, quem, ao fim e ao cabo, acaba modificando políticas públicas, leis e objetivos do Estado, são ações privadas (indivíduos ou instituições) e em alguns casos ações coletivas de órgãos como o Ministério Público ou pessoas jurídicas de interesse público.

Para Garapon (1999), a expansão jurídica decorre da dinâmica das sociedades democráticas. É, pois, um fenômeno social e não um sintoma da simplificação de barreiras processuais. Barroso (2005) registra que vivenciamos um bom momento para refletirmos e debatermos algumas ideias centrais relacionadas ao Estado constitucional democrático, pois estamos observando um processo em que questões políticas e relações sociais encontraram espaço, em termos de processo decisório, na arena do Poder Judiciário. Esse é o ponto, o Judiciário tornou-se uma arena, quando, em realidade, deveria ser um espaço de conciliação.

Há, portanto, um momento da intervenção do Poder Judiciário que é sintomático da ausência de um debate público qualificado nas instâncias políticas adequadas. De contrapartida, há o "ativismo judicial", que acontece como correição de práticas que violam direitos fundamentais, um Judiciário que age politicamente, mas em um sentido de...

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