Poder e violência em abordagem foucaultiana: reflexões sobre a produção da verdade jurídica

AutorAndrezza Ribeiro de Sousa - Fernanda Telles Márques
CargoAcadêmica da 10ª etapa do curso de Direito da Universidade de Uberaba - Doutora em Sociologia pela UNESP de Araraquara, com Pós-doutorado em Estudos Culturais pela UFRJ. Professora do PPGE-UNIUBE
Páginas163-175

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Considerações iniciais

Embora poder e violência não tenham sido focos das pesquisas de Michel Foucault (1926-1984), é inegável que o filósofo francês dedicou muito de sua obra a refletir sobre o tema. Isso permitiu que contribuísse com uma visão original sobre o assunto, em especial das relações de poder. Contudo, poder e violência não se confundem na teoria Foucaultiana. Enquanto as relações de poder podem conduzir o indivíduo, por meio de discursos de verdade e regras estabelecidas pela sociedade, tornando-o sujeito de modo discricionário, a violência, por sua vez, acontece quando esse mesmo indivíduo deixa de ser considerado como sujeito.

Em uma de suas obras mais populares, Vigiar e Punir, Foucault (2010) afirma que o poder, em si, não existe – senão como relação em que se tenta estabelecer determinadas regras de dominação. Com isso, assevera que o poder não é um objeto natural, mas uma prática social construída historicamente; e recomenda, assim, que seja analisado como algo que “se exerce mais que se possui” (FOUCAULT, 2010, p. 26).

Tomando como referência o pensamento foucaultiano, mas evitando, ao mesmo tempo, um uso meramente instrumental de fragmentos de sua teoria, o artigo tem como objetivo refletir sobre as categorias poder e violência para depois relacioná-las com a produção social da verdade, no seio estatal. Trata-se de um estudo teórico, no qual ideias expressas em obras de Foucault hoje reconhecidas como clássicas, são colocadas em interlocução com alguns de seus proeminentes comentadores.

O texto encontra-se organizado em quatro seções. Na primeira seção, apresenta-se o poder para Michel Foucault e o método genealógico utilizado em sua pesquisa. Na segunda, apresentam-se a violência e as relações de poder como formas de governamento. Na terceira, discute-se a relação saber-poder, conforme pensada pelo autor. Ao final, reflete-se sobre os riscos da arbitrariedade no processo de produção da verdade jurídica.

1 O poder em foucault

Michel Foucault trabalha a perspectiva histórica do poder – busca o momento em que ele surge, e percebe que durante muito tempo na história o poder era visto como algo eminentemente mau, ruim e opressor. Desde os tempos de rei e soberano, seu detentor procurava incutir a ideia de que o poder era algo tão somente a se temer. Todavia, em seus estudos, ele desmistifica o poder equiparado à repressão. Para o autor, quem detinha o poder, conduzia a essa falsa premissa com o intuito de mascarar o que ele de fato era e não dar margem àquele que não o detivesse em suas mãos, querer obtê-lo.

Ao recorrer a um método genealógico de inspiração nietzscheana, Foucault inicia argumentando que já que o poder, em si, não existe – existindo, em seu lugar,

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as relações de poder, este não é estático e não tem existência tangível, o poder deve ser analisado a partir das técnicas e táticas de dominação, entre elas, a disciplina. Ao abordar a sujeição e a exclusão de indivíduos que não se adequam aos controles sociais, o filósofo demonstra como são processados os inúmeros dispositivos de normalização, pelos quais se espera o alinhamento dos sujeitos às necessidades do ambiente.

Nesse sentido, o poder é uma força que não possui um lugar fixo e não é propriedade de ninguém, é apenas um elemento dentro das relações entre os indivíduos. Assim, parte da perspectiva de que o poder não se trata de um bem a ser adquirido por um ou por outro. A ideia de um poder emanado de um ponto central parece-lhe assentada em análises de visão estreita, que ignoram um número considerável de realidades. O autor propõe estudar a analítica do poder de forma progressiva, sem limitar-se à vontade de poder do dominador, mas, sim, em que ou quem esse poder se implanta e como produz seus efeitos reais, que sujeitam os corpos, em processos contínuos e ininterruptos que dirigem seus gestos e regem seus comportamentos. Logo, o elemento central deve ser o momento e o objeto a ser dominado.

Afirma, também, que não se deve pensar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo – um indivíduo que domina e outro que obedece ou de um grupo ou classe sobre os outros. O poder deve ser visto como algo que circula e só funciona em cadeia, pois é exercido em rede. Dessa forma, o indivíduo não é o outro do poder, mas um de seus primeiros efeitos.

Existem diferentes modos de se exercer o poder sobre o outro, seja nas relações de comunicação ou nas técnicas de dominação e adestramento. Esses diferentes tipos de relações não estão dissociadas, mas, sim, entrelaçadas. Desse modo, Foucault trabalha com o termo biopoder para se referir à prática de subjugar os corpos e o controle em massa da população.

Uma vez sabido que o poder não está concentrado única e exclusivamente na figura do Estado e nas macroestruturas que o apoiam – o poder e suas relações são bem mais óbvias nas chamadas microestruturas, onde a coerção se faz mais presente, com maiores tentativas de direcionar o outro a um rumo diferente – a ação sobre ação. Assim, o que define uma relação de poder não é a ação direta e imediata sobre o outro, mas sim a ação que age sobre sua própria ação; o poder é um conjunto de ações sobre ações possíveis, ou seja, se insere no campo das possibilidades encontradas no comportamento dos sujeitos ativos.

O poder é instrumento de domínio utilizado no meio social, pois conduz o indivíduo através de mecanismos de coerção e discursos de verdade minuciosamente estabelecidos por regras socialmente reforçadas, que resulta em sua manipulação e transfiguração de seu agir, tornando-o sujeito de modo discricionário. Nesse sentido, Foucault afirma que

[...] em todas as sociedades a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar

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seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e terrível materialidade. (FOUCAULT, 2005, p. 9)

Contudo, onde há relação de poder, ensina o pensador, há formas de resistência, pois o mesmo movimento que produz a dominação produz a resistência a ela, sendo esse um movimento importante na sociedade democrática, este fenômeno é o conceito de Poder Molar para Michel Foucault. Então, como parte constitutiva dessa relação, a resistência está sempre presente, e se configura como o grito do descontentamento anunciando o exercício da liberdade. Dessarte, é preciso partir do pressuposto que o exercício das relações de poder só é possível em quem se encontra em autonomia, pois apenas se exerce o poder em quem está “livre” – não há poder sem liberdade e sem potencial de revolta – o contrário seria constrangimento físico. Esse processo de disciplinarização transforma o ser em sujeito, resultado dos aparelhos disciplinares disseminados no tecido social, fazendo com que a conduta do ser humano comungue com a moral hegemônica, de maneira velada, quase invisível, diferentemente da época escravocrata, onde tudo era explícito.

A função normalizadora do poder disciplinar visa adestrar o maior número de pessoas, separa e impõe seus mecanismos de maneira individualizada. O processo em que o indivíduo veio a se tornar sujeito no contexto social é o foco das pesquisas de Foucault. O autor vê dois sentidos na palavra sujeito, ambos com implicações em se tratando de sujeição e poder. Os dispositivos usados no processo de assujeitamento estão dispersos na sociedade, desde as escolas aos asilos.

O enclausuramento do indivíduo permite que ele seja vigiado, adestrado e disciplinado. Assim, o corpo pode ser facilmente manipulado e treinado, tornando-o apto a obedecer a ordens. O poder está diretamente ligado ao saber – são indissociáveis e se implicam mutuamente. Um produz o outro – todo saber funda uma relação de poder. O saber, quando visa dominar o objeto, toma a verdade como premissa e cria regras articuladas, distintas por artifícios e regidas por interesses pontuais, para a inclusão e exclusão de discursos.

2 Poder e violência como formas de governamento

Conceito fundante do pensamento Foucaultiano, a noção de dispositivo, desenvolvida inicialmente no primeiro volume da...

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