Planejamento fiscal anterior à ocorrência do fato gerador sem propósito negocial e legalidade

AutorIves Gandra da Silva Martins
CargoProfessor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFIEO, UNIFMU, do CIEE/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército ? ECEME, Superior de Guerra ? ESG e da Magistratura do Tribunal Regional Federal ? 1a. Região
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I números autos de infração têm sido lavrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB) sob a alegação de que o planejamento tributário para reduzir tributos, sem projeto negocial, estaria por lei proibido, e sem mencionarem, seus autores, a norma antielisão, adotam o disposto no parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN).

Não a legalidade da operação redutora de tributos, mas o fato de gerar, sem propósito negocial, tal economia, tem sido este o fulcro das autuações.

Entendo que tais procedimentos são abusivos, pois, se a lei foi rigorosamente cumprida, não há que se falar em elisão, elusão ou evasão fiscal, nada obstante a equivocidade com que tais termos sejam utilizados, muitas vezes.

A meu ver, a questão que se coloca é de se saber se foi ou não cumprida a lei antes da ocorrência do fato gerador.

A questão diz, portanto, respeito ao princípio da estrita legalidade, que permeia todo o sistema constitucional, mas que, no campo do direito tributário, exige uma restrita aplicação, não se permitindo ao fisco nada que ultrapasse os precisos limites de sua competência impositiva1.

Tanto é assim que os constitucionalistas entendem que, ao princípio da legalidade, exposto no artigo 5º, caput e inciso I, da lei suprema, cuja dicção é a seguinte:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; [...]”, acresce-se o princípio da legalidade específico do direito tributário, que expresso está no inciso I, do artigo 150, da CF, com o seguinte discurso:

“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; [...].”2

Sobre tal limitação imposta ao fisco escrevi:

“Com efeito, em direito tributário, só é possível estudar o princípio da legalidade, através da compreensão de que a reserva da lei formal é insuficiente para a sua caracterização. O princípio da reserva da lei formal permitiria uma certa discricionariedade, impossível de admitir-se, seja no direito penal, seja no direito tributário.

Como bem acentua Sainz de Bujanda (Hacienda y derecho, Madrid, 1963, vol. 3, p. 166), a reserva da lei no direito tributário não pode ser apenas formal, mas deve ser absoluta, devendo a lei conter não só o fundamento, as bases do comportamento, a administração, mas – e principalmente – o próprio critério da decisão no caso concreto.

À exigência da ‘lex scripta’, peculiar à reserva formal da lei, acresce-se da ‘lex stricta’, própria da reserva abso-

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luta. É Alberto Xavier quem esclarece a proibição da discricionariedade e da analogia, ao dizer (ob. cit., p. 39): “E daí que as normas que instituem sejam verdadeiras normas de decisão material (Sachentscheidungsnormen), na terminologia de Werner Flume, porque, ao contrário do que sucede nas normas de ação (handlungsnormen), não se limitam a autorizar o órgão de aplicação do direito a exercer, mais ou menos livremente, um poder, antes lhe impõem o critério da decisão concreta, predeterminando o conteúdo de seu comportamento.”

Yonne Dolácio de Oliveira, em obra por nós coordenada (Legislação tributária, tipo legal tributário, in Comentários ao CTN, Bushatsky, 1974, v. 2, p. 138), alude ao princípio da estrita legalidade para albergar a reserva absoluta da lei, no que encontra respaldo nas obras de Hamilton Dias de Souza (Direito Tributário, Bushatsky, 1973, v. 2) e Gerd W. Rothmann (O princípio da legalidade tributária, in Direito Tributário, 5a. Coletânea, coordenada por Ruy Barbosa Nogueira, Bushatsky, 1973, p. 154). O certo é que o princípio da legalidade, através da reserva absoluta de lei, em direito tributário permite a segurança jurídica necessária, sempre que seu corolário conseqüente seja o princípio da tipicidade, que determina a fixação da medida da obrigação tributária e os fatores dessa medida, a saber: a quantificação exata da alíquota, da base de cálculo ou da penalidade.

É evidente, para concluir, que a decorrência lógica da aplicação do princípio da tipicidade é que, pelo princípio da seleção, a norma tributária elege o tipo de tributo ou da penalidade; pelo princípio do ‘numerus clausus’ veda a utilização da analogia; pelo princípio do exclusivismo torna aquela situação fática distinta de qualquer outra, por mais próxima que seja: e finalmente, pelo princípio da determinação conceitua de forma precisa e objetiva o fato imponível, com proibição absoluta às normas elásticas (Resenha Tributária 154:779-82, Secção
2.1, 1980).”3

É que, a meu ver, a norma tributária é uma norma de rejeição social, porque, em todos os espaços geográficos e períodos históricos, o poder público cobra mais do que necessita para prestar serviços públicos, objetivando a atender às benesses dos de-tentores do poder e acólitos – o que é um mal próprio do Estado aético, na definição do ministro Delfim Netto, para quem o Estado é necessariamente aético –, assim como financiar a corrupção, o peculato, a concussão e o desvio de recursos das obras públicas.

Por isto, em minha tese de doutoramento, há quase
quarenta anos, conciliei as teorias de
Cóssio4 e Kelsen5,
aquele dizendo que,
no direito, a norma
de comportamento é
a primária e a norma sancionatória a secundária, e, este, sustentando que a sanção
é a norma primária e
a de conduta, secundária. Partindo do
princípio de que há
normas de aceitação
social e de rejeição social, mostrei que, nas primeiras (ex: defesa do direito à vida), Cóssio tinha razão, pois, mesmo sem sanção, a maioria da população não seria homicida; já nas normas de rejeição social – como a norma tributária –, sem sanção, poucos pagariam os tributos6.

Esta é a razão por que os pais do moderno direito tributário brasileiro, desde a EC 18/65 e do CTN, conformaram o princípio da legalidade como necessariamente restritivo, em sua interpretação, visto que tem o Estado o poder de fazer a lei que desejar, porém, uma vez promulgada, só ela obriga o contribuinte e não qualquer interpretação fiscal pro...

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