O princípio da pré-constituição das provas no processo do trabalho

AutorFabiano Coelho de Souza
CargoJuiz do Trabalho Substituto no TRT da 18ª Região, desde 1999
Páginas152-160

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1. Introdução

Prova é o meio pelo qual as partes buscam convencer o juiz acerca da existência ou inexistência de algum fato. O conjunto probatório, por sua vez, é um complexo de elementos à disposição do juiz para conhecimento dos fatos debatidos na causa. Com ou sem prova, o juiz decidirá a lide, até mesmo em respeito ao princípio da indeclinabilidade da jurisdição. Deste modo, necessário faz-se a fixação de regras envolvendo a distribuição do ônus da prova, como norte para a solução dos litígios cujos fatos revelem-se nebulosos, ou mesmo para que as partes tenham ciência prévia dos encargos e riscos processuais que pesam sobre cada um.

No presente estudo, analisaremos um dos princípios que norteiam a distribuição da carga probatória no processo do trabalho — o princípio da pré-constituição das provas — e sua aplicação prática, buscando contribuir com o desenvolvimento da teoria processual e da prática judiciária.

2. Ônus da prova

Singelamente, podemos definir o ônus da prova como sendo a conduta necessária que se espera do indivíduo que pretenda obter um resultado juridicamente relevante. Nesta perspectiva, buscamos a lição de Carlos Alberto Begalles2:

“O ônus da prova consiste no encargo que as partes têm no processo de, não só alegar, mas de provar a verdade dos fatos por ela arrolados, se controversos. Não se trata de um dever, mas de ônus, assumindo a parte o risco de não ter êxito caso não prove os fatos alegados do qual depende a existência do direito que pretende assegurar.” Imposta contra si a carga probatória, cumpre ao litigante promover os atos necessários para vencê-la, pois, do contrário, muito provavelmente assistirá a um oferecimento de tutela jurisdicional contrária a seus interesses.

No âmbito do processo civil, a matéria é regulamentada pelo art. 333 do CPC. Tal regra dita que a prova incumbe ao autor, quanto aos fatos constitutivos do seu direito, e, ao réu, quanto aos fatos impeditivos, modificativos e extintivos do direito do autor.

Pensamos que as regras acerca da distribuição do ônus da prova não podem receber o tratamento individualista e neutro do Código de Processo Civil. Neste sentido, manifestamos concordância com a observação de Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira3, no sentido de que “essa distribuição rígida do ônus de prova atrofia nosso sistema, e sua aplicação inflexível pode conduzir a julgamentos injustos”.

Em uma sociedade democrática, marcada pelo direito de caráter socializante, temos que construir mecanismos mais razoáveis, justos e factíveis para a distribuição da carga probatória, de modo a permitir um tratamento mais igualitário aos litigantes. Ocorre que o provar é algo que não decorre exclusivamente da vontade dos litigantes, mas, também, e ouso dizer que na maioria dos casos, em razão do fato de que a parte pode não dispor dos meios adequados para reproduzir em juízo os fatos que lhe favoreçam na demanda. Neste sentido, colhemos a lúcida lição de Marcelo Abelha Rodrigues4:

“pode-se argumentar que a não produção de uma prova pela parte tanto pode ser resultado de uma situação de disposição de vontade do litigante (que optou por não fazê-la) como também de obstáculos dos mais variados tipos (econômicos, técnicos, científicos, sociais, jurídicos), que acabam por impedir ou quiçá obstaculizar a produção da prova, tal como era querida ou como poderia ter sido.”

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A CLT, de modo simples, mas preciso, regulamenta o ônus da prova em seu art. 818, indicando que “a prova incumbe à parte que alegar”. Em que pese diversas críticas ao dispositivo, temos que o legislador celetista estabeleceu regra dinâmica para a carga probatória laboral. Nesta perspectiva, a rigor o ônus de prova é do autor para tudo aquilo que alegar, mas será repassado ao réu quando este admite o fato alegado pelo adversário, mas deduz novo argumento. Não se trata de imprecisão normativa como mencionam alguns, mas, sim, de premissa aberta que permite a formação da regra de distribuição do ônus de acordo com o caso concreto, sem predeterminações rígidas. Vale dizer, ainda, que a regra do art. 818 da CLT não impede a aplicação de regra mais favorável ao trabalhador, de modo a adequar o encargo probatório às condições reais de isonomia no processo, valendo a incidência de interpretação com base na paridade de armas à disposição dos litigantes.

3. O princípio da pré-constituição das provas

Este princípio indica que a carga probatória deve pesar sobre aquele que teria obrigação legal de produzir ou manter um determinado documento em seu poder.

A prova pré-constituída foi conceituada de modo preciso por Jeremías Bentham5:

“Llamo proba preconstituída a aquella en que la ley há ordenado su creación y su conservación con anterioridad a la existencia de un derecho o de una obligación, hasta el punto de que la exhibición de esa prueba será necesaria para el mantenimiento de esse derecho o de esa obligación6.”

Importante frisar que o instituto em exame está situado em um contexto principiológico mais amplo. Assim, a regra está em consonância com os princípios da proteção ao trabalhador, da inversão do ônus de prova e da aptidão probatória, todos norteadores da sistemática da instrução de um litígio trabalhista.

Com relação ao princípio protetivo, temos que, na dúvida, a norma processual deve ser interpretada e aplicada em favor do trabalhador, sujeito tutelado pelo direito e pelo processo do trabalho. Estabelecemos, deste modo, a regra do in dubio pro operario, no âmbito processual, que não significa, necessariamente, interpretar a prova duvidosa em benefício do trabalhador, mas, sim, a aplicação das regras processuais em seu favor — o que já constitui uma posição bem mais favorável ao hipossuficiente no litígio. Neste sentido, releva notar que, na maioria dos casos, o princípio da pré-constituição estabelece presunções que potencializam as chances de êxito do trabalhador em uma demanda judicial. Não se confunde, porém, tal técnica com a inversão do ônus da prova.

A inversão do ônus da prova tem por base normativa o disposto no art. 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor, estabelecendo este procedimento quando a prova revelar-se dificultosa ao consumidor, em situações de hipossuficiência. José Maria Rosa Tesheiner7, sobre a esta fragilidade de um dos contratantes, pontua que “a hipossuficiência, aí referida, não é a econômica, mas se atrela ao monopólio da informação”.

No âmbito laboral, não bastasse a quase invariável posição de desvantagem econômica do trabalhador em relação a seu (ex-)empregador, não se pode desconsiderar a circunstância pela qual a empresa tem meios muito mais facilitados de produção de prova em juízo, em especial com a apresentação de documentos

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referentes à relação jurídica envolvendo os litigantes e também pela apresentação de testemunhas que conviveram no cotidiano com o trabalhador reclamante.

Por outro lado, temos a considerar que o Direito do Trabalho foi pioneiro no estabelecimento de um direito de cunho mais social/ socializante, no que foi ontologicamente seguido pela moderna regulamentação das relações de consumo. Deste modo, assim como na relação entre fornecedor e consumidor, o Direito do Trabalho exibe uma relação de sujeição e dependência, com um dos contratantes fragilizado na formação, desenvolvimento e extinção do pacto, no caso o trabalhador. Em consequência, em razão desta hipossuficiência obreira, o art. 769 da CLT pode ser invocado para permitir a incidência no processo laboral da regra consumeirista de inversão do ônus da prova.

Com intensa aproximação finalística com a inversão do ônus da prova, o princípio da aptidão probatória indica que a prova deva ser produzida por aquela parte que a detém ou que tem acesso à mesma, sendo inacessível à parte contrária. Tal regra é necessária para que não seja imposta uma carga probatória desmedida a um dos litigantes. Não se trata, porém, de inversão, mas, sim, de distribuição do ônus com base na capacidade probatória de cada um. Ou seja, o ônus sequer chega a ser imposto a quem não detém a aptidão probatória.

Sobre a necessidade de fixação adequada do ônus de prova, lemos a lição de Manuel Carlos Palomeque López e Manuel Álvarez de la Rosa8:

“A cada parte le corresponde acreditar lo que alega: al demandante los hechos que fundamentan su pretensión (art. 217.2 LEC) y al demandado, los hechos que soportan su postura opositoria (art. 217.3 LEC; en ningún caso puede exigirse una prueba imposible o diabolica...)9.”

A prova diabólica seria aquela que se afigura praticamente impossível...

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