A Quem Pertence o Ar Que Respiro? Acesso à Justiça e Direitos Transindividuais no Marco Jurídico-Constitucional do Estado Socioambiental de Direito

AutorTiago Fensterseifer
Ocupação do AutorMestre em Direito Público pela PUCRS; Bolsista do CNPq
Páginas589-622

Page 589

A Quem Pertence o Ar que
A Quem Pertence o Ar queA Quem Pertence o Ar que
A Quem Pertence o Ar queA Quem Pertence o Ar que Respiro Acesso à Justiça e Respiro Acesso à Justiça eRespiro Acesso à Justiça e Respiro Acesso à Justiça eRespiro Acesso à Justiça e Direitos Transindividuais no Direitos Transindividuais noDireitos Transindividuais no Direitos Transindividuais noDireitos Transindividuais no Marco Jurídico-Constitucional do Marco Jurídico-Constitucional doMarco Jurídico-Constitucional do Marco Jurídico-Constitucional doMarco Jurídico-Constitucional do Estado
EstadoEstado
EstadoEstado Socioambiental de Direito

Socioambiental de DireitoSocioambiental de Direito Socioambiental de DireitoSocioambiental de Direito

T TTTTIAGO

IAGOIAGO IAGOIAGO F

F

F
F
FENSTERSEIFER

ENSTERSEIFERENSTERSEIFER ENSTERSEIFERENSTERSEIFER*

****

Nossa época, já tivemos oportunidade de ver, traz prepotentemente ao palco novos interesses “difusos”, novos direitos e deveres que, sem serem públicos no senso tradicional da palavra, são, no entanto, coletivos: desses ninguém é titular, ao mesmo tempo que todos os membros de um dado grupo, classe, ou categoria, deles são titulares. A quem pertence o ar que respiro .1SUMÁRIO: 1 Considerações Iniciais: “a Quem Pertence o Ar que Respiro ”
2. A Edificação do Estado Socioambiental de Direito e o Novo Papel (Deveres de Proteção) do Estado na Tutela dos Direitos Transindividuais. 3 Direitos Transindividuais e Acesso à Justiça. 4 A Perspectiva Procedimental do Direito Fundamental ao Ambiente (e o seu Caráter Democrático-Participativo) Como Função Normativa Derivada da Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamentais. 5 A Inversão do Ônus da Prova (e o Dever de Informação) nos Procedimentos Judiciais (e Administrativos) Como Mecanismo de Acesso à Justiça na Tutela Coletiva do Ambiente. 6 Palavras Finais. 7 Bibliografia.

1 Considerações Iniciais: “A Quem Pertence o Ar que Respiro ” 1 Considerações Iniciais: “A Quem Pertence o Ar que Respiro ”1 Considerações Iniciais: “A Quem Pertence o Ar que Respiro ” 1 Considerações Iniciais: “A Quem Pertence o Ar que Respiro ”1 Considerações Iniciais: “A Quem Pertence o Ar que Respiro ”

O surgimento dos direitos transindividuais coloca novos desafios para o jurista contemporâneo. Em vista de uma sociedade de relações

* Mestre em Direito Público pela PUCRS; Bolsista do CNPq; Membro do NEDF – Núcleo de

Estudos e Pesquisa de Direitos Fundamentais (CNPq), coordenado pelo Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet; Defensor Público no Estado de São Paulo.

1 CAPPELLETTI, Mauro. “Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil”. In:

Revista de Processo, ano II, n. 5, jan./mar. 1977, p. 135.

Page 590

CONSTITUIÇÃO, JURISDIÇÃO E PROCESSO

590

massificadas, o Direito abandona sua concepção liberal-individualista para conceber cada vez mais demandas sociais de natureza plural e coletiva, modelando uma nova forma de conceber o processo civil, especialmente em face das garantias constitucionais do acesso à justiça e da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV) expressos na Constituição brasileira de 1988. Os exemplos mais importantes dos direitos transindividuais estão na defesa do consumidor (art. 5º, XXXII e art. 170,
V) e na tutela do ambiente (art. 225 e art. 170, VI), ambos integrantes do rol constitucional dos direitos fundamentais. O processo civil, nesse caminhar, passa a estabelecer um diálogo franco e aberto com a Constituição, e especialmente com a teoria dos direitos fundamentais, sem nunca perder de vista a natureza de “instrumento” das normas processuais para com o direito material. A efetivação dos direitos e a pacificação social são o verdadeiro “fim” das normas processuais.

No intuito de caracterizar a nova ordem de direitos e interesses de natureza transindividual, é oportuna a leitura dos textos de Cappelletti, que, já em meados da década de 70, diagnosticava a emergência das relações massificadas em nossas comunidades, destacando-se o seu célebre questionamento que caracteriza a natureza difusa do direito ao ambiente e elucida esta nova ordem de valores coletivos: “a quem pertence o ar que respiro ”. Com tal quadro da realidade social, ao processo civil cumpre ajustar-se aos novos direitos transindividuais a ponto de garantir a sua tutela adequada e efetiva.2Como instrumento ou meio de realização do direito material, o processo não pode opor barreiras formais à concretização dos direitos, especialmente quando estiverem em causa direitos fundamentais, mas deve mostrar-se flexível e modelável em face da formatação dos novos direitos transindividuais, sempre em vista da garantia constitucional do acesso à justiça3e do direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva4. Tal perspectiva pode ser verificada a partir da criação de técnicas processuais adequadas e necessárias a uma tutela jurisdicional

2 Nesse sentido, MAZZILLI revela a necessidade de a ordem jurídica reconhecer que o acesso individual dos lesados à justiça seja substituído por um processo coletivo, apto a conduzir a uma solução mais eficiente da lide. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo.
15. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 44.

3 Cfr., na mesma perspectiva, MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 4 .ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 32

4 Nessa linha, cfr. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 113.

Page 591

A QUEM PERTENCE O AR QUE RESPIRO ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS... 591 efetiva, como, por exemplo, a inversão do ônus da prova nos processos coletivos de matéria ambiental, uma atuação mais ativa do Poder Judiciário quando estiverem em litígio direitos fundamentais e a criação de um código de processo coletivo5.

O acesso à justiça no âmbito dos direitos transindividuais apresenta diversas possibilidades, podendo ser viabilizado tanto através de instituições estatais (Defensoria Pública, Ministério Público ou demais entes públicos) como através de atores privados, com o manuseio da ação civil pública6 por associações civis (por exemplo, de defesa ecológica ou dos direitos dos consumidores) ou mesmo através da atuação individual, como ocorre no caso da tutela ambiental viabilizada pela ação popular e pelas ações que tutelam os direitos de vizinhança. É importante sempre ter em conta a dimensão política e democrática da garantia constitucional do acesso à justiça, em razão de que a via judicial também é uma instância de atuação política e exercício da cidadania. Nesse contexto, o próprio papel do Estado, e especialmente do Poder Judiciário, deve estar justado à salvaguarda dos direitos fundamentais. Há que se abrir as portas dos Tribunais aos direitos transindividuais e garantir o acesso à justiça, materializando tais direitos no “mundo da vida”. E, para tanto, deve-se defender a idéia em torno de um acesso à justiça “substancial”, e não apenas “formal”, com a implementação de técnicas processuais capazes de “levar a sério” os direitos transindividuais.

2 A Edificação do Estado Socioambiental de Direito e o Novo
2 A Edificação do Estado Socioambiental de Direito e o Novo2 A Edificação do Estado Socioambiental de Direito e o Novo
2 A Edificação do Estado Socioambiental de Direito e o Novo2 A Edificação do Estado Socioambiental de Direito e o Novo Papel (Deveres de Proteção) do Estado na Tutela dos Direitos Papel (Deveres de Proteção) do Estado na Tutela dos DireitosPapel (Deveres de Proteção) do Estado na Tutela dos Direitos Papel (Deveres de Proteção) do Estado na Tutela dos DireitosPapel (Deveres de Proteção) do Estado na Tutela dos Direitos Transindividuais
TransindividuaisTransindividuais
TransindividuaisTransindividuais

Já nas primeiras linhas traçadas para fundamentar o novo modelo de Estado de Direito que aponta no horizonte jurídico contemporâneo impõe-se a justificativa acerca da preferência do autor pela expressão socioambiental, registrando-se a existência de inúmeros e diferentes termos

5 Cfr. o Código Modelo de Processos Coletivos, editado pelo Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, no ano de 2004, que foi elaborado, entre outros, pelos seguintes juristas brasileiros: Ada Pellegrinni Grinover, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, Antonio Gidi e Kazuo Watanabe.

6 Cfr. MANCUSO, Rodolgo de Camargo. Ação Civil Pública. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

Page 592

CONSTITUIÇÃO, JURISDIÇÃO E PROCESSO

592

para denominar o novo projeto da comunidade estatal, entre eles: Estado Pós-social7, Estado Constitucional Ecológico8, Estado de Direito Ambiental9, Estado do Ambiente10, Estado Ambiental de Direito11, etc. A preferência pela expressão socioambiental resulta, como se verá ao longo do presente estudo, da convergência necessária das “agendas” social e ambiental num mesmo projeto jurídico-político para o desenvolvimento humano. O objetivo do Estado contemporâneo não é “pós-social”, em razão de o projeto de realização dos direitos fundamentais sociais (de segunda dimensão) não ter se completado, remanescendo a maior parte da população mundial (o que se apresenta de forma ainda mais acentuada na realidade brasileira e dos países em desenvolvimento de um modo geral) até os dias atuais desprovida do acesso aos seus direitos sociais básicos (e, inclusive, da garantia constitucional do mínimo existencial indispensável a uma existência digna). Há, portanto, um percurso político-jurídico não concluído pelo Estado Social.

A partir de tal premissa, deve-se ter em conta a existência de uma dimensão ecológica, juntamente com a dimensão social, como elemento integrante do núcleo essencial da dignidade da pessoa humana, sendo que somente um projeto jurídico-político que contemple conjuntamente tais objetivos atingirá um quadro compatível com a condição existencial humana contemporânea tutelada constitucionalmente. Seguindo...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT