Penal e Processo Penal

AutorJorge Mussi
Páginas53-60

Page 53

Juiz não pode modificar a definição jurídica dos fatos narrados na denúncia no momento em que a recebe

Superior Tribunal de Justiça

Recurso em Habeas Corpus n. 27.628 - GO

Órgão julgador: 5a. Turma

Fonte: DJe, 03.12.2012

Relator: Ministro Jorge Mussi

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA (ARTIGO 2°, INCISO I, DA LEI 8.137/1990). MAGISTRADO DE ORIGEM QUE ALTERA A CAPITULAÇÃO JURÍDICA DADA AOS FATOS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO NO MOMENTO DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA INÉRCIA, ÀTITULARIDADE DAAÇÃO PENAL E ANTECIPAÇÃO DO JUÍZO DE MÉRITO DAAÇÃO PENAL. NECESSIDADE DE ANÁLISE DAS CONDIÇÕES DA AÇÃO A PARTIR DOS PARÂMETROS FORNECIDOS PELO ÓRGÃO ACUSATÓRIO NA PEÇA INAUGURAL. EXISTÊNCIA DE MOMENTO ADEQUADO PARA O JUIZ CORRIGIR A TIPIFICAÇÃO ELABORADA PELO PARQUET. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. OCORRÊNCIA DA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA ESTATAL. PROVIMENTO DO RECURSO.

  1. Um dos princípios que rege a jurisdição criminal é o da inércia, pelo qual o Estado-juiz só atua quando provocado, não podendo instaurar ações penais de ofício, característica que se revela evidente no processo penal, já que é incumbência do ofendido a promoção da ação penal privada, ao passo que a ação penal pública compete privativamente ao Ministério Público, consoante os artigos 129, inciso I, da Constituição Federal, e 24 e 257, inciso I, do Código de Processo Penal.

  2. Considerando-se que a persecução criminal é iniciada, via de regra, a partir da denúncia formulada pelo órgão ministerial ou da queixa apresentada pelo ofendido, não se pode olvidar que é a partir do exame das referidas peças processuais que o magistrado analisará a presença das condições da ação, a fim de que acolha, ou não, a inicial acusatória.

  3. A verificação da existência de justa causa para a ação penal, vale dizer, da possibilidade jurídica do pedido, do interesse de agir e da legitimidade para agir, é feita a partir do que contido na peça inaugural, que não pode ser corrigida ou modificada pelo magistrado quando do seu recebimento. Doutrina.

  4. Ainda que se trate de mera re-tificação da capitulação jurídica dos fatos descritos na vestibular, tal procedimento não pode ser realizado no momento do recebimento da inicial, sendo cabível apenas quando da pro-lação da sentença, nos termos do artigo 383 do Código de Processo Penal. Precedentes do STJ e do STF.

  5. No caso dos autos, o Ministério Público imputou ao recorrente a con-duta de ter deixado de realizar lucro inflacionário diferido relativo ao imposto de renda pessoa jurídica no ano calendário de 1998, o que caracterizaria o crime previsto no artigo 2o, inciso I, da Lei 8.137/1990, cuja pena máxima é de 2 (dois) anos de detenção.

  6. Considerando-se a sanção máxima abstratamente cominada ao delito atribuído ao acusado, e tendo em conta que os fatos teriam se dado em 1999, já no momento em que ofertada a denúncia, 3.12.2008, teria se consumado a prescrição da pretensão punitiva estatal, pois transcorridos mais de 4 (quatro) anos entre a data em que consumado o ilícito narrado pelo Par-quetl, e o primeiro marco interruptivo previsto no artigo 117 do Código Penal.

  7. Contudo, ao receber a denúncia, o magistrado de origem afastou a ocorrência de prescrição, sob o argumento de que "a narração contida na denúncia se subsume, ainda que em juízo provisório ao artigo Io, inciso I, da Lei n. 8.137/1990", entendimento que foi confirmado quando da análise da resposta à acusação apresentada pela defesa.

  8. Observa-se, então, que Juízo Federal, em total inobservância ao princípio dispositivo, desrespeitando o enquadramento jurídico dado aos fatos expressamente pelo Ministério Público, e antecipando indevidamente sua opinião sobre o mérito do processo, modificou, no ato do recebimento da denúncia, os parâmetros estabelecidos pelo titular da ação penal a fim de não reconhecer causa extintiva da punibi-lidade que estaria presente na espécie, caso observada a tipificação feita pelo órgão acusatório na peça vestibular.

  9. Por conseguinte, tendo o recorrente sido denunciado pela prática do crime previsto no artigo 2o, inciso I, da Lei 8.137/1990, não poderia o togado singular, a fim de viabilizar o prosseguimento da ação penal, dar nova definição jurídica aos fatos, já que, nos termos em que proposta a denúncia,

    Page 54

    desde a sua propositura inexistira uma das condições da ação, pois não haveria interesse de agir por parte do Estado, já que a punibilidade do paciente estaria extinta em face da prescrição.

  10. Recurso provido para anular a decisão que alterou a capitulação jurídica dos fatos dada pelo Ministério Público, declarando-se a extinção da punibilidade do recorrente pela prescrição da pretensão punitiva estatal.

    ACÓRDÃO

    Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da QUINTA Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, dar provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Marco Aurélio Bellizze, Campos Marques (Desembargador convocado do TJ/ PR), Marilza Maynard (Desembargadora convocada do TJ/SE) e Laurita Vaz votaram com o Sr. Ministro Relator.

    Brasília (DF), 13 de novembro de 2012. (Data do Julgamento). MINISTRO JORGE MUSSI Relator

    RELATÓRIO

    O EXMO. SR. MINISTRO JORGE MUSSI (Relator): Trata-se de recurso ordinário em habeas corpus interposto por (...), contra acórdão proferido pela Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da Ia Região, que denegou a ordem nos autos do HC n. 2009.01.00.050888-l/GO.

    Noticiam os autos que o recorrente foi denunciado pela suposta prática do crime previsto no artigo 2o da Lei 8.137/1990.

    Ao receber a inicial acusatória, o magistrado de origem afastou a alegação de prescrição da pretensão punitiva estatal, sob o argumento de que os fatos descritos na peça vestibular se subsumiriam ao tipo previsto no artigo Io, inciso I, da Lei 8.137/1990.

    Sustenta o patrono do recorrente que ele seria vítima de constrangimento ilegal, sob o argumento de que teria sido acusado de ilícito que já estaria prescrito, não podendo o julgador, no ato de recebimento da denúncia, ado-tar conclusão diversa da exposta pelo órgão ministerial, alterando o enquadramento jurídico dado à narrativa feita na inicial.

    Aduz que a fase do recebimento da denúncia não é a adequada para a alteração da classificação jurídica dos fatos contidos na vestibular, notada-mente quando tal modificação é feita para piorar a situação do réu.

    Alega que o togado singular não poderia ter recebido a denúncia pelo artigo Io da Lei 8.137/1990 sem que houvesse qualquer aditamento ou requerimento do Ministério Público, sendo-lhe facultado, no máximo, remeter os autos ao Procurador Geral da República, nos termos do artigo 28 do Código de Processo Penal.

    Requer o provimento do reclamo para que seja reconhecida a prescrição da pretensão punitiva em abstrato da imputação lançada na denúncia, ex-tinguindo-se a ação penal instaurada contra o paciente.

    Cientificada a Procuradoria da República (e-STJ fl. 122), ascenderam os autos a esta Corte Superior de Justiça, tendo o Ministério Público Federal, em parecer de fls. 132/135, manifestado-se pelo não provimento da irre-signação.

    É o relatório.

    VOTO

    O EXMO. SR. MINISTRO JORGE MUSSI (Relator): Conforme relatado, com este recurso ordinário constitucional pretende-se, em síntese, o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva estatal, extinguindo-se a ação penal instaurada contra o recorrente pela suposta prática de crime contra a ordem tributária.

    Segundo consta dos autos, o recorrente foi acusado de cometer o delito disposto no artigo 2° da Lei 8.137/1990, extraindo-se da peça acusatória os seguintes trechos:

    "1.0 denunciado, no exercício da gerência e administração da empresa ARMAZÉNS GERAIS FUTURO LTDA (CNPJ: 00.087.296/0001-20), da qual era sócio-proprietário à época dos ilícitos, juntamente com sua mãe (...), falecida (fl. 198), livre e conscientemente, deixou de realizar lucro inflacionário diferido relativo ao imposto de renda pessoa jurídica, no ano-calendário de 1998, totalizando o débito de R$ 3.850.060,09 (três milhões, oitocentos e cinquenta mil, sessenta reais e nove centavos).

  11. De acordo com a Representação Fiscal para Fins Penais (fls. 07/151), em fiscalização de rotina exercida pela Receita Federal, dando prosseguimento à revisão interna de Declaração de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica do exercício de 1999, ano-base 1998, autorizada pelo Registro de Procedimento Fiscal n° 2003/00142-3, foram detectadas inconsistências referentes à realização a menor do lucro inflacionário acumulado pela empresa ARMAZÉNS GERAIS FUTURO LTDA (CNPJ: 00.087.296/0001-20).

  12. Após a realização de diligências a fim de identificar o responsável pela pessoa jurídica, o senhor (...), intimado, apresentou o Livro da Apuração do Lucro Real n° 01 (LALUR), por ele subscrito e pelo contador (...).

  13. Após a análise da documentação pelos auditores fiscais, foi detectado o registro correspondente ao Lucro Inflacionário Diferido de períodos anteriores a 31/12/1998, no valor de R$ 8.463.263,25 (oito milhões, quatrocentos e sessenta e três mil, duzentos e sessenta e três reais e vinte e cinco centavos), com anotação de realização de 10% deste valor (fl. 44).

  14. No entanto, conforme informa o Termo de Verificação Fiscal de fls. 43/45, na confrontação dos dados constantes do referido LALUR com a Declaração de Renda da Pessoa

    Page 55

    Jurídica de 1999, ano-base 1998, a Receita Federal constatou que a empresa não providenciou a realização de 10% de mencionado valor, mas sim o registrou prejuízo no montante de R$ 1.163.567,52 (um milhão...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT