A parentalidade liberada da diferença dos sexos e de gerações

AutorSilvane Maria Marchesini
Ocupação do AutorJurista. Psicóloga. Psicanalista. Pós-Graduada, Mestra em Psicologia Clínica
Páginas118-127

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As mudanças da família e do parentesco levam os pesquisadores a se interrogarem sobre o lugar do pai na Sociedade contemporânea, assim como, sobre as referências familiais que a estruturam. Desenvolver uma aproximação psicanalítica sobre a homoparentalidade, com o objetivo de informar os campos do Direito e da Ciência, coloca em causa também o aporte teórico e alguns conceitos desde Freud. Será que poderíamos afirmar que há um declínio da triangulação edipiana, uma vez que este conceito se fundou inicialmente sobre uma concepção de família tradicional? Ou ainda, trata-se do declínio da função paterna, de uma nostalgia dos psicanalistas em relação ao patriarcado?

Por outro lado, as referências psicanalíticas continuam operantes nestas novas famílias de hoje em dia? Ou ainda, elas anunciam catástrofes inelutáveis para a vida psíquica de suas crianças? Todavia, a Psicanálise desenvolveu conceitos, a partir da clínica, acerca da função de parente, isto é, acerca dos modos de ser pai ou mãe, distinguindo, por exemplo, depois de Lacan, as dimensões real, imaginária e simbólica do Pai. Estes aportes psicanalíticos foram certas vezes contestados e mesmo controversos, pois eles pareciam muito normativos, até mesmo moralizadores, "atribuindo ao pai real um papel como que ixado pela natureza e pareciam at? opor-se aos progressos da ciência e ?s novas formas de família e de parentesco".332

Como o havíamos observado, as novas parentalidades começaram pelas mudanças de costumes, assim como pela participação dos pais na puericultura das pequenas crianças junto com as mulheres. Mas elas prendem-se, também, à geração das famílias recompostas, com a coexistência de parentalidades múltiplas. Do mesmo modo, os progressos da procriação medicamente assistida (PMA) acrescentaram consideravelmente as possibilidades de ser legalmente pai ou mãe de uma criança não consanguínea, mesmo se o seu reconhecimento no casamento e a adoção havia já ensejado maiores condições legais. De fato, o que há de comum nestas novas parentalidades, é que elas dissociam as diferentes dimensões de ser parente: o parente biológico, o parente educador, o parente legal.

Hervé Bentata333, no texto "Parentalidades de hoje em dia: para um pai aparente?", publicado na Revista Internacional "A clínica lacaniana", formulou muitas questões cruciais acerca da temática transdisciplinar que escolhemos para esta tese. No subtítulo: "Algumas questões afetas às parentalidades de hoje em dia", ele questiona-se:

A partir daí, o que ocorre quando uma mãe não está em uma relação de desejo com o pai, um homem, que seja de amor ou de ódio, mas que seu desejo se dirigiu para uma outra mulher ? É esta última que virá funcionar então como "pai"? E o que é então das identiicações : se farão elas ao modo da mulher da mãe ou haverá sempre um meio para esta criança de "se fazer um pai" a partir dos encontros que ela fará na vida? Em outros termos, o pai, suporte das identiicações e raiz do Supereu, é ele um ser psíquico necessariamente masculino ou a sua consistência não advém senão de ser o Outro da mãe, aquele que regula seu desejo?

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Do mesmo modo, esta função materna ? especíica da mãe real ou de uma mulher, ou os homens podem assumi-la totalmente? Ouvimos assim frequentemente mães de famílias monoparentais dizer-nos "eu tinha que representar o papel dos dois parente, mas eu não conseguia". Esta derrota está ligada a uma questão de pura lógica , não se pode sozinho fazer o papel de duas pessoas, ser si mesmo e um outro? Com efeito, o próprio da função terceira e sua eicácia ? justamente de fundar-se sobre o Outro do casal mãe/criança . Este Outro, vemos claramente que é habitualmente o pai real da criança; mas ele pode também ser pessoas designadas pela mãe, no mais frequentemente homens, mas também, porque não mulheres , que seja a companheira da mãe ou outras mulheres que fazem referência para esta mãe... Para uma criança, o fato de ter por pai um outro homem que o pai real, ou de ter uma mulher no lugar de pai, engajaria uma certa falta fundadora, ou ao contrário, uma certa diiculdade na identidade e no sentimento próprio de seu gênero? Eis algumas questões difíceis que podem ensejar as novas parentalidades, concernindo os efeitos que produzem sobre as crianças. Isso geraria sofrimento psíquico , e diferentemente de antes? Novas economias psíquicas seriam aptas para passar adiante as neuroses, psicoses e perversão de outrora ? 334

Para responder a estas complexas questões, ele335 nos explica de um modo muito didático e sintético a visão da Psicanálise sobre a estrutura familiar e societal. As elaborações freudianas partem da função do Pai com o mito da Horda primitiva, no qual o desejo de "assassino do pai" é motivado pelo desejo dos irmãos de possuir mulheres monopolizadas pelo pai primitivo. No "Totem e Tabu", Freud336 considera que este assassinato inicial do pai vai fundar e organizar a sociedade atual, a repartição das mulheres e a reverência à Lei. Na escala da família, este mito do pai morto se reedita, por meio da elaboração psíquica do Complexo de Édipo. Este desejo mortífero, que gera na criança receios de represália da parte do pai e as angústias de castração, o leva a renunciar ? sua mãe e a identiicar-se ao seu pai. "Assim, de certo modo, o protótipo de todo desejo seria o desejo pela mãe e o protótipo de todo ato, até mesmo, de toda tomada de palavra em relação a um desejo, seria o assassinato do pai. Um pai é então uma pessoa que, pelo seu lugar, suporta votos de morte e que, na sua função, vem interditar o incesto".337

O pai torna-se o portador da Lei de interdição do incesto, isto é, da endogamia e, geralmente, de tudo o que faz lei. O pai representa a autoridade, sua igura é ao mesmo tempo temida, odiada e amada. Incumbe à função do pai reinar sobre o desejo da mãe que ele captura e suporta. Este lugar do pai que funciona como vetor do desejo materno, coloca-se em posição de separar a criança da sua mãe. Ele faz a função de um terceiro exterior, estabelecendo o reconhecimento da alteridade no casal mãe/ilho, e permite assim a boa saúde mental da criança, sua "boa" estruturação psíquica.

A função do pai é de tornar a Lei da castração simbólica. Após Lacan, o pai aparece como um sig-niicante maior, como a metáfora do Nome-do-Pai. Esta metáfora constitui a pedra angular da signiicância e a possibilidade para um Sujeito de se fornecer sentido. Eis porque, no caso de forclusão do Nome-do-Pai, abre-se, no inconsciente, a possibilidade de uma rasgadura que vai até a psicose, até o delírio. Isso signiica, nestes casos, que há forclusão do significante paterno e, portanto, da diferença sexual no discurso da mãe. Alguma coisa do pai não tem curso, não corresponde a um pai, ausente na realidade. Eis porque os psicanalistas atentam-se ao nome na filiação.

Com Lacan então, a função do pai é em primeiro lugar simbólica, mesmo se a função do pai real é também muito importante, pois é ele quem permite o acesso à castração simbólica, da qual ele é o agente. Este pai real, Lacan o diferencia ainda do pai imaginário, declinando assim sua tríade Real/Simbólica/Imaginária também ao nível do pai. Este pai real, Lacan o deine como sendo aquele que "trepa" com a mãe, de modo menos trivial aquele quem com ela vive. Então, esta função do pai real, não é aquela à qual a mãe intuitivamente recorre quando, por exemplo, nas famílias monoparentais onde um menino não vai bem, a mãe pede-lhe que procure um terapeuta homem? Este terapeuta vem fazer reconhecimento de seu lugar e de sua necessidade.

Por outro lado, o que se comenta na psicanálise em relação à função materna? Mães, eu diria sobremodo a função essencial no que se denomina o holding. A preocupação de uma mãe para sua criança, com os tratamentos que ela lhe prodiga, busca lhe permitir apreender o mundo; ela antecipa e nomeia suas necessidades, seus sentimentos etc. No início, a criança vive por meio das funções que ela exerce no seu lugar; a mãe é um eu auxiliar. Progressivamente, ela lhe permite de separar-se dela, de necessitar-se menos dela338.

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A partir de dois fragmentos clínicos de novas parentalidades, Bentata339 aborda estas questões com o prisma do novo "desejo de crianças". No primeiro, ele relata um caso de homoparentalidade:

Aladine veio consultar, pois ela se preocupa com sua ilha e com o comportamento do pai da criança. O que não vai bem, diz ela, são os efeitos produzidos sobre a criança pelos momentos passados com seu pai. De fato, após o inal de semana, ela choraminga com frequência, se cola à sua mãe e não a larga. Tudo isso torna Aladine perplexa e a deprime. Sua ilha, quanto a ela, parece, no entanto estar bem mesmo que ela apresente um pouco de diiculdade de separar-se de sua mãe. Para Aladine, todas estas diiculdades resultam do mau comportamento do pai. Pois ele nunca pôde comportar-se como um pai com sua criança ; ele se comporta como uma mãe , diz-me ela, como uma segunda mãe . Ele não consegue integrá-la, ela, como mãe; ela tem a impressão de ser transparente para ele, o que consequentemente a anula como mãe ; ela sente-se completamente anulada na sua função pelo pai da criança. Aladine sente-se enganada, como capturada em armadilha. Ela tinha muito reletido com sua companheira sobre seu projeto homoparental: ela queria dar um pai a sua criança; este amigo homossexual havia anuído de ter uma criança com ela, por inseminação . E eis que ela está excluída, como mãe, por este homem . Era importante para ela, que teve um pai ausente, que o pai de sua ilha se invista, seja presente. E eis que no lugar disso, "Ele me arruína como mãe quando lhe dou seu lugar" diz-me ela. Isso a arruína na sua função, mina-a; às vezes ela sequer consegue cuidar de sua ilha, ocupar sua função de mãe para sua criança. " Eu necessito realmente que ele me re- conheça como mãe " diz ela. A situação...

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