Confiança no parceiro e proteção frente ao HIV: estudo de representações sociais com mulheres

AutorAndréia Isabel Giacomozzi
Páginas81-98

Page 81

Este artigo* constitui um resumo de uma dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina e tem como foco as representações sociais de mulheres com e sem relacionamento fixo sobre sexualidade e prevenção à Aids 2. O trabalho fundamentou-se em conhecimentos da psicologia social, mais especificamente na teoria das representações sociais de Serge Moscovici e do gênero como categoria de análise.

A contaminação das mulheres pelo vírus HIV configura-se em um importante questionamento na área da saúde nos últimos anos e tem sido problematizada também como uma questão social. Segundo o Boletim Epidemiológico de 2002, publicado pelo Ministério da Saúde, o número de mulheres contaminadas com o vírus da aids cresce a cada ano e, na maioria dos casos, a contaminação nas relações heterossexuais. Entre as décadas de 1980 e 90, as mulheres maiores de 13 anos, contaminadas pela relação heterossexual, perfaziam 61,1%. No ano de 2002, essa porcentagem elevou-se a 93,5%.

No Brasil, o número de casos de aids é de 257.780 pessoas (notificados desde 1980), sendo que, deles, 66,61% (185.061) são homens e 26,17% (72.719) são mulheres. Entretanto, nota-se que, a cada boletim epidemiológico o número de mulheres infectadas aumenta gradualmente. Observou-se, também, redução da participação das categorias “homo e bissexual”, de 44,5%, nas décadas 1980 a 90, para 16,3%, no ano de 2002, ao mesmo tempo, houve incremento da categoria “heterossexual”, de 16,4%, nas décadas de 1980 a 90, para 58,0%, em casos de aids, sendo que 1.981 (65%) eram homens e 1.043 (34%), mulheres.

Os dados revelam aumento dessa epidemia, principalmente, entre indivíduos heterossexuais com parceiro fixo, em regime de conjugalidade. Considerou-se, portanto, necessário investigar os fatores determinantes na propagação dessa doença entre esse grupo de pessoas. Assim, esta pesquisa estuda os aspectos interacionais da epidemia da aids, no âmbito da intimidade e da conseqüência da confiança existente no ambiente privado dos lares, sob o ponto de vista das mulheres. É importante entender que, para as mulheres, as representações sociais da aids configuram-se de forma diferente de como são para os homens.

Page 82

Como exemplo disso, há o estudo de Camargo (2000), que pesquisou a representação da aids entre estudantes universitários. Mesmo com a prevenção à aids estando relacionada com a prevenção sexual, homens e mulheres relatam, segundo essa pesquisa, associar aids à promiscuidade. Porém, as mulheres atribuíram à desinformação o fato de as pessoas contraírem o vírus, enquanto, para os homens, a infecção pelo vírus HIV dava-se por um descuido do indivíduo contaminado.

Algumas pesquisas (CARVALHO, 1998; TURA, 1998; MADEIRA, 1998) demonstram que o cuidado com a aids pauta-se em relações em que predomina um sentimento de desconfiança, enquanto, nas relações conjugais, essa desconfiança inexiste ou é diminuída, pois o perigo da aids está relacionado ao “outro” de quem se desconfia.

A teoria das representações sociais

A teoria das representações sociais originou-se na Europa, a partir da publicação por Serge Moscovici (1961) da obra La Psychanalyse: Son image et son public. Nela, o autor estuda a representação social da psicanálise, com o objetivo de compreender como a teoria psicanalítica disseminava-se de formas diferentes em diversos grupos.

Segundo Moscovici (1981, p.181),

[...] uma representação social é um conjunto de conceitos, proposições e explicações originadas na vida cotidiana, no curso de comunicações interpessoais, que funciona como uma espécie de ‘teoria do senso comum’”.

As representações desempenham papel fundamental nas práticas e na dinâmica das relações sociais. Dentre suas funções, Abric (1994) define quatro: saber, orientação de comportamentos e de práticas, justificação de posicionamentos e comportamentos. Quando ocorrem contradições entre as representações sociais e suas práticas respectivas, surgem as relações de conflitos, que podem gerar a transformação de uma ou outra.

Nesse sentido, esta pesquisa pretende verificar se as representações das mulheres com e sem parceiro fixo estão em acordo com suas práticas sociais com relação à prevenção a essa epidemia.

Page 83

Levanta-se a hipótese de que o risco com relação à aids pode iniciar-se quando a relação de intimidade e confiança se estabelece. A partir de então, as pessoas tornam-se mais vulneráveis e as dimensões das práticas sociais podem dar indícios de que essa maneira de pensar afetará as estratégias de prevenção desse grupo.

A confiança influencia os relacionamentos, pois, de acordo com Misovich, Fisher e Fisher (1997), evidências indicam que indivíduos em relacionamentos estáveis tendem a não tomar nenhuma medida efetiva de prevenção à aids, geralmente, não usam preservativos e não conhecem a sua condição sorológica nem a do parceiro. Essas medidas preventivas não entram em pauta na relação. Já entre os indivíduos que utilizam o preservativo, esses pesquisadores encontraram os que, em geral, têm relacionamentos sexuais casuais: jovens, homossexuais, profissionais do sexo (porém, quando estes têm relacionamentos estáveis, não usam preservativo com seus parceiros fixos). Isso também foi encontrado na pesquisa de Oltramari (2001), que constatou que as profissionais do sexo utilizam preservativo em seus relacionamentos comerciais, mas não o utilizam com um parceiro fixo. A intimidade e a confiança seriam, portanto, causas de uma maior exposição ao vírus da aids. Estudos de Pinkerton e Abramson (1993) indicam que ter relacionamento sexual sem proteção com parceiro fixo e eliminar relações casuais (manter monogamia) pode expor o indivíduo a maior risco e vulnerabilidade do que ter sexo seguro com parceiro fixo e parceiros eventuais.

A relação de confiança, portanto, leva os indivíduos ao risco de contágio, pois se estabelece certa vulnerabilidade, e isso afetará as estratégias de prevenção à doença.

Utiliza-se a seguinte noção de “vulnerabilidade”:

[...] avaliar objetivamente as diferentes chances que cada indivíduo ou grupo populacional particular tem de se contaminar, dado o conjunto formado por certas características individuais e sociais de seu cotidiano, julgadas relevantes para a maior exposição ou menor chance de proteção diante do problema (AYRES e cols., 1999, p.65).

Esse termo surgiu como uma tentativa de compreender as possibilidades que uma pessoa ou grupo tem de se infectar com o vírus da aids. A vulnerabilidade divide-se em dois aspectos: individual e coletiva.

Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.35, p.79-98, abril de 2004

Page 84

Segundo Ayres e cols. (1999) a vulnerabilidade individual consiste em três pressupostos:

  1. Qualquer indivíduo é passível de contaminação, de acordo com seus valores pessoais e recursos preventivos, em determinada época de sua vida; b) Quanto maior o amparo social e a assistência à saúde de que os indivíduos dispuserem, menor a morbidade, invalidez e morte; e c) Questões de ordem cognitiva, comportamental e social afetam diretamente a vulnerabilidade individual.

A vulnerabilidade coletiva divide-se em programática e social. A primeira consiste nas ações do Estado, pelos seus programas de prevenção à aids, que fazem uma ligação entre os planos individual e social. São muitos os critérios para a avaliação dessas ações. Segundo Ayres e cols. (1999), a vulnerabilidade social é avaliada por muitos indicadores sociais elaborados pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD). A partir de oito índices, definem-se critérios para a classificação da vulnerabilidade entre alta, média e baixa. São eles: acesso à informação; gastos com serviços sociais e da saúde; mortalidade antes dos cinco anos; situação da mulher; índice de liberdade humana; relação entre despesas militares e gastos com educação e saúde; índice de desenvolvimento humano.

Como dito, trabalha-se aqui com o gênero como categoria de análise. A noção de gênero, segundo Grossi e Miguel (1995), preocupa-se em desvincular os papéis sexuais de seu determinismo biológico, desnaturalizando a visão de mulher ainda existente e questionando a idéia de que haveria apenas um feminino e um masculino. Mais, as noções ligadas ao gênero são vistas como produtos de processos sociais e culturais, à medida que identidades de gênero (masculinidades e feminilidades múltiplas) diferenciam-se e constroem-se relacional e dinamicamente. É importante, portanto, conceber o masculino e o feminino como...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT