O papel da ideologia na sociedade moderna

AutorTatiana Ribeiro de Souza
Páginas7-41
O PAPEL DA IDEOLOGIA NA SOCIEDADE
MODERNA
“Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a
consciência”
(Karl Marx)
INTRODUÇÃO
Quando se fala em ideologia, a primeira coisa a ser feita é
esclarecer o significado que se quer lançar sobre esse termo, pois,
geralmente, atribui-se a ele duas concepções contrárias, sendo uma
considerada positiva e outra crítica ou negativa.
O que se considera como significado positivo de ideologia,
predominante no senso comum, é a tomada do termo como
sinônimo de ideário, ou conjunto de ideias que formam a visão de
mundo de um grupo ou indivíduo e que o orienta para suas ações. A
perspectiva crítica ou negativa, por sua vez, aponta para a distorção
da realidade, como instrumento de dominação, sendo
invariavelmente associada ao pensamento de base marxista.
Embora se use também a adjetivação “neutra” para expressar a
concepção positiva de ideologia, optou-se, neste trabalho, por não
fazer uso dessa classificação, pois não existe acesso ao mundo
exterior que não seja por meio de pré-compreensões, o que retira
qualquer possibilidade de neutralidade na formação da consciência.
1. Da inversão à ideologia: evolução de um conceito na
obra de Marx
Mesmo em Marx, o conceito de ideologia não pode ser tratado
como possuindo significado único, pois existem divergências
relevantes sobre o termo, divergências essas decorrentes das
interpretações dos escritos de Marx e Engels ao longo da formação
das diversas gerações de marxistas. Para tratar do assunto, far-se-
á, primeiramente, um apontamento sobre a evolução do significado
de ideologia nos escritos do próprio Marx para, depois, ampliar a
análise sobre o que se escreveu com inspiração nas obras do
filósofo-economista.
A obra de Marx, no que se refere ao tratamento dado ao termo
ideologia, pode, segundo Larrain (2001), ser dividida em três fases.
A primeira fase, que compreende o período entre seus primeiros
escritos até 1844, traz apenas o termo “inversão”, que mais tarde foi
associado à noção de ideologia. Essa fase se caracteriza pela
influência de Hegel e Feuerbach nas reflexões de Marx. A segunda
fase, que começa com o rompimento com Feuerbach, em 1845, e
vai até 1857, caracteriza-se pela introdução do termo “ideologia” em
sua obra, para construção da crítica à filosofia não engajada dos
jovens hegelianos na Alemanha, sem, contudo, abandonar a ideia
de “inversão”. Na terceira fase, que vai de 1858, com a redação dos
Grundrisse, até sua morte, a palavra ideologia quase desaparece
dos escritos de Marx, que reelabora e usa constantemente o termo
inversão. Essa última fase é marcada pela análise concreta das
relações sociais capitalistas adiantadas, que culmina em “O Capital”.
Na primeira fase da obra de Marx, no que diz respeito ao
tratamento dado ao termo ideologia, estão presentes apenas os
elementos materiais desse conceito, consubstanciados na crítica à
religião, por influência do materialismo francês e de Feuerbach, e à
concepção hegeliana de Estado. A palavra-chave do pensamento
desenvolvido nesse período é “inversão”, que foi utilizada por Hegel
como conversão do subjetivo em objetivo e vice-versa.
Ao contrário de Hegel, Marx procura mostrar que, na relação
entre formas invertidas de consciência e a existência material dos
homens, a fonte de inversão é a realidade que se encontra invertida.
Assim, a ideia não se manifesta no mundo empírico, o Estado não é
a autorrealização da ideia. Nesse caso, o Estado seria a realidade
invertida, existência material, que está criando a consciência
invertida.
Fonte: elaborada pela autora
Da mesma forma, Marx critica a religião ao argumentar que ela
expressa as contradições do mundo real, vale dizer, a religião é
também um real invertido que inverte a consciência. Tal proposição
de Marx parte do princípio básico de Feuerbach de que o homem
fez a religião e esta inverteu tudo ao afirmar que Deus fez o homem.
A pergunta é: qual seria o propósito da inversão promovida pela
religião? De acordo com o pensamento marxista, seria uma
compensação, no espírito, da realidade cheia de contradições.
Foi apenas na segunda fase da reflexão sobre ideologia, no
pensamento marxista, que esse termo apareceu pela primeira vez
nos escritos de Marx. O sentido de ideologia aparecia como uma
ampliação do termo inversão para, além de abranger a crítica à
religião e à filosofia de Hegel, contemplar a crítica ao que os jovens
hegelianos vinham desenvolvendo, a noção de que era necessário
libertar o homem das ideias errôneas.
Em “A ideologia Alemã”, em que Marx elabora sua crítica à
filosofia alemã, os verdadeiros problemas da humanidade são
atribuídos às contradições sociais reais, e não às ideias errôneas.
Para Marx (2006, p. 43), ao lutarem contra as ilusões da consciência
(ideias errôneas), substituindo-as por outras ideias, os neo--
hegelianos estavam apenas interpretando de modo diferente o que
existe, sem combaterem o mundo real existente. A isso, Marx
chama de “fraseologias”, vale dizer, fraseologias novas substituindo
velhas fraseologias.
O contexto teórico da crítica construída por Marx à filosofia
alemã é o da construção, juntamente com Engels, do “Materialismo
Histórico, em que as premissas gerais de sua abordagem da
sociedade e da história são desenvolvidas e a tendência
feuerbachiana da primeira fase é definitivamente abandonada”
(LARRAIN, 2001, p. 184). Ao afirmar que não é a consciência que
determina a vida, mas a vida é que determina a consciência, Marx
considera que o idealismo dos neohegelianos é um desserviço à
sociedade alemã e chega a chamá-los de “carneiros que se julgam
lobos” (MARX; ENGELS, 2006, p. 35), pois a filosofia que produzem
não é mais do que a tradução filosófica das representações da
burguesia alemã1.
Nas palavras de Larrain (2001, p. 184), ao considerar que as
“ideias errôneas” é que são consequências das contradições
sociais, e não o contrário, o pensamento marxista era de que,
enquanto os homens, por força do seu limitado modo material de atividade, são

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