Outros Elementos do Tipo e Classificação dos Crimes

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas205-226

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7.1. Elementos valorativos culturais e jurídicos

Existem tipos legais delitivos que apresentam em sua dicção, como propriedades necessárias à configuração jurídica do crime, os denominados elementos valorativos, igualmente chamados elementos normativos.

Os elementos valorativos são representados na definição do delito pela utilização de certas expressões que reclamam uma análise de valor (juízo axiológico) para extrair-se o exato significado da locução no corpo do modelo típico traçado pela lei.

Se o juízo de valor requerer formulação com fulcro nas normas de cultura vigentes na sociedade no momento do fato criminoso, o elemento valorativo é designado cultural. Se a valoração atinar aos conhecimentos jurídicos do exegeta, ele recebe o batismo de elemento valorativo jurídico.

7.1.1. Elementos valorativos culturais

Elemento valorativo cultural é a expressão utilizada em certas molduras típicas cuja significação depende de prévio juízo de valor respaldado nas normas de cultura vigentes na sociedade em um dado momento, qual seja, o da prática da conduta incriminada.

Sob essa lente, calha notar que o dispositivo incriminador alojado no art. 130 do CP introduziu na consagração do crime a moléstia venérea na classe de elemento valorativo cultural. Insta, consequentemente, determinar com precisão o que se entende por moléstia venérea, pois, incrustada no tipo como requisito para o aperfeiçoamento jurídico do delito, deve estar presente no caso concreto para a sua identificação com a imagem abstrata da lei incriminadora. Ora, somente é possível estabelecer o que é uma moléstia venérea ao se proceder a uma análise valorativa de seu significado, com o socorro dos conhecimentos culturais. Em síntese, e consoante as normas de cultura, pode-se asseverar que moléstia é um processo patológico que compromete o equilíbrio funcional do organismo humano. Mas não é suficiente o risco de transmissão de qualquer moléstia. É ainda necessário ser venérea. Cumpre, portanto, perscrutar da acepção desse adjetivo.

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Ilustremos, então. Na mitologia grega, Afrodite, personificação da fecundidade, representava a deusa do amor, mãe de Eros, deus da paixão lúbrica. De Afrodite tem-se hoje a expressão afrodisíaco (referente a tudo quanto estimula ou excita o desejo sexual) e, de Eros, o vocábulo erotismo (a indicar a sensualidade, a lubricidade, a lascívia). Assim como Afrodite era a deusa do amor na mitologia grega, na mitologia romana Vênus ocupava a mesma posição. Dela provêm o nome dado ao preservativo masculino (camisa de vênus) e a denominação da moléstia que ora ocupa a atenção: doença venérea. Moléstia venérea, destarte, é a moléstia do amor, aquela essencialmente transmissível pelo trato sexual (DST), embora ocasionalmente nada impeça o contágio - em conotação excepcional - por outros meios. Nessa conjuntura, se duas pessoas mantêm o congresso carnal e um parceiro transmite ao outro, durante o amplexo sexual, a lepra ou tuberculose que o acomete (ou cria o risco consciente do contágio), é irrefutável que não se tonaliza o delito em questão. Isso porque a doença transmitida (ou com risco de transmissão) ocorreu ocasionalmente no decorrer do ato sexual, mas não se tratava de moléstia essencialmente transmissível por esse meio. Entretanto, fosse o caso de contágio ou possibilidade de contágio de blenorragia, sífilis, cancro mole, linfogranuloma inguinal, condiloma venéreo e mesmo, hodiernamente, aids (esta com possibilidade de projeção típica para o homicídio, por dolo direto ou eventual em face do desfecho fatal da doença), seria indubitável a ocorrência do delito, desde que a moléstia, embora certas delas admitam ocasionalmente transmissão por outros meios (objetos contaminados, transfusão de sangue...), se transmitisse pelo trato sexual, pois o crime pertence à estirpe daqueles que apresentam forma vinculada (v. n. 3.2) e esse é o meio comum, frequente e usual de seu contágio. Todavia, se o risco de transmissão ou o efetivo contágio atinasse, durante o conúbio sexual, ao piolho do púbis, crível é que o crime não se configuraria. Apesar de essencialmente venéreo, o piolho do púbis não constitui moléstia, à falta de comprometimento do equilíbrio funcional do organismo humano.

Elemento valorativo cultural também é a expressão ato libidinoso, empregada no art. 213 do diploma penal. Ato libidinoso consiste na prática de conduta tendente à satisfação da volúpia, lascívia ou libido do agente, à satisfação de seu instinto ou desejo sexual. É o ato inspirado na concupiscência e representa toda evasão do apetite luxúrico, abrangendo a conjunção carnal ou coito vagínico (ato libidinoso por excelência) como, até, o simples beijo lascivo ou o apalpamento corpóreo e, inclusive, as mais aberrantes anomalias sexuais. Não constituirão, contudo, atos libidinosos o simples toque de cabelos e o mero afago em braço nu, ainda que subjetivamente, dada a anormal lubricidade do agente, assim pudessem ser considerados, porque, objetivamente, não ofendem o mediano senso de pudor387. Na mesma direção, atos superficiais e fugazes em partes pudentas, ou simplesmente indecorosos, como, verbi gratia, o beijo tentado e o apalpamento dos seios, pernas, nádegas e do órgão genital da vítima que não levaram senão alguns segundos, porque não ensejam ao agente auferir prazer sexual, não constituem propriamente atos libidinosos388. Bem por isso é que o beijo roubado apenas

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perfaz a prática contravencional do art. 65 da LCP pela petulância, ousadia, descaramento e insolência do agente389, assim como o toque superficial e fugaz, por sobre as vestes, nos seios de uma mulher, não caracteriza a prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal, mas, pela conduta indecorosa, a infração contravencional de importunação ofensiva ao pudor (art. 61, LCP)390ou de perturbação da tranquilidade (art. 65, LCP), dependendo do local em que ocorra.

Como o elemento valorativo cultural embasa-se nas normas de cultura vigentes na sociedade em um dado momento, eis que por meio delas é feita a valoração, e como a estruturação social de valores sofre a influência das regras do comportamento social, é irrefragável que, muitas vezes, o costume adquire importância neste campo.

O costume não tem o poder de criar ou revogar a lei penal (v. n. 1.6.1). Mas se houver lei penal já elaborada e existente e esta trouxer na descrição do crime elemento valorativo cultural que admita influência consuetudinária na acomodação dos parâmetros sociais do comportamento, o costume representará valioso fator de ajuste do fato concreto à imagem abstrata da lei.

Existem elementos valorativos culturais que não se conciliam com a influência consuetudinária, pela sua própria natureza. Assim ocorre com a noção de moléstia venérea e ato libidinoso, diante da qual o costume não encontra campo fértil para germinar, posto que a significação desses elementos normativos independe do costume para ser alcançada.

Outras vezes, contudo, o elemento valorativo cultural sofre íntimo reflexo consuetudinário e sua compreensão somente pode ser captada à luz do costume. Com supedâneo nele, fatos idênticos, sob a lente do mesmo preceito legal, podem ou não ser considerados criminosos, conforme o momento e o local da sua prática.

É o que sucede, para exemplificar, com o conceito de ato obsceno, elementar típica entalhada na dicção do crime inscrito no art. 233 do CP. Obsceno é o ato que atinge o sentimento de pudor da moralidade média, com capacidade para ferir o seu senso de decência. O ato, pois, deve ser cotejado com as emanações defluentes do contexto social, em razão do momento e do lugar no qual é praticado. De tal arte, o mesmo ato pode ou não revestir-se da obscenidade, dependendo da noção de moralidade do momento e do local. Se certa jovem pusesse, nos idos de 1940 (quando já em vigor o Código Penal), um dos trajes de banho atualmente usados nas praias (tanga ou fio dental) e ali comparecesse trajada dessa forma, seria inconteste a prática do ato obsceno, embora hoje, diante do mesmo texto legal, não exista delito. Mas se, nos dias atuais, com essa mesma indumentária, em vez de banhar-se no mar ou na piscina de um clube, a jovem comparecer a cerimônia fúnebre ou culto religioso, será patente a afronta ao sentimento de decência. Daí se dessume da variação no entendimento do ato, com espeque no costume, em função do momento e do local em que é praticado.

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Se hoje uma jovem expuser o busto nu em piscina de clube, como sucedeu em caso semelhante analisado no acórdão que consta na RT. 450/465, a obscenidade do ato será inconcussa, mas o mesmo não acontecerá se o fizer em desfile carnavalesco de projeção, como os que se verificam nas grandes avenidas (Sambódromo) do Rio de Janeiro, porque, agora, trata-se de prática socialmente aceita no contexto. O decote das damas, que é um requinte de elegância entre os povos cristãos, constitui uma into-lerável desvergonha entre as gentes maometanas391. Já a bolinação392, o apalpamento de seios393 ou nádegas394, a exibição dos órgãos genitais395e a prática da conjunção carnal396em público configuram o delito, não, porém, quando, simulados, são feitos em peça de teatro perante o público pagante. Um casal de namorados surpreendido aos abraços e beijos em lugar público foi absolvido porque se trata de cena corriqueira que não atrita abertamente com o sentimento médio de pudor ou com os bons costumes397. Mas, decerto, outra seria a solução se o episódio ocorresse em outro lugar público, como o interior de uma igreja, ou se retratasse a prática do "streaking" ou "chispada" (correr nu em local público)398ou do ato da micção399.

De outra...

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