Origens históricas do direito processual coletivo

AutorGustavo Viegas Marcondes
Ocupação do AutorBacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP)
Páginas21-37

A determinação da origem histórica do Direito Processual coletivo não é de todo pacífica, havendo quem a credite ao Direito Romano e também aqueles que a tributam ao Direito inglês e norte-americano, principalmente do século XVII.

Se, por um lado, a ação coletiva atual, empregada no Brasil e em grande parte dos países ocidentais, guarda grande similitude com a Bill of Peace do Direito inglês e, particularmente, com a class action do Direito norte-americano, não há como deixar de reconhecer que a Ação Popular romana já apresentava a mesma estrutura fundamental que inspira o Direito Processual Civil coletivo atual, fundada em legitimação extraordinária, efeitos subjetivos amplificados da coisa julgada e, até mesmo, a indivisibilidade do objeto da tutela jurisdicional.

Sob esse prisma, a ação popular do Direito Romano, que ainda subsiste nos dias atuais, nos legou os dois pilares fundamentais inerentes ao Processo Coletivo, quais sejam, a legitimação extraordinária e o aproveitamento subjetivo generalizado dos efeitos da coisa julgada. Nesse sentido, as lições de José Afonso da Silva se mostram sobremaneira oportunas, principalmente ao se destacar a própria natureza indivisível do interesse jurídico em disputa, dando claras mostras de que a ideia de interesse (ou direito) coletivo – de titularidade indeterminada e de objeto indivisível – já era um conceito bastante arraigado desde a era romana.

A origem das ações populares perde-se na história do Direito romano. O nome ação popular deriva do fato de atribuir-se ao povo, ou a parcela dele, legitimidade para pleitear, por qualquer de seus membros, a tutela jurisdicional de interesse que não lhe pertence, ut singuli, mas a coletividade. O autor popular faz valer um interesse que só lhe cabe, ut universis, como membro de uma comunidade, agindo pro populo. Mas a ação popular não é mera atribuição de ius actionis a qualquer do povo, ou a qualquer cidadão como no caso da nossa. Essa é apenas uma de suas notas conceituais. O que lhe da conotação essencial é a natureza impessoal do interesse defendido por meio dela: interesse da coletividade. Ela há de visar a defesa de direito ou interesse público. O qualificativo popular prende-se a isto: defesa da coisa pública, coisa do povo (publicum, de populicum, de populum).

Toda ação popular consiste na possibilidade de qualquer membro da coletividade, com maior ou menor amplitude, invocar a tutela jurisdicional a interesses coletivos.1

Embora o conceito primitivo do que se entende por interesse coletivo possa, de fato, ser atribuído ao Direito Romano, foi no âmbito do Direito inglês e norte-americano que melhor se desenvolveu a ideia de representação judicial de interesses.

De toda sorte, a abordagem dos antecedentes históricos do Processo Civil coletivo, qualquer que seja a perspectiva de análise, remonta ao direito estrangeiro, particularmente ao direito inglês e norte-americano, de matriz conceitual ligada à common law, ao contrário dos países de tradição romano-germânica, como o Brasil, seguidores da civil law2.

Essa peculiaridade não se mostra irrelevante, uma vez que o sistema da commmon law, justamente por estar construído fundamentalmente sobre os precedentes judiciais, e não sobre leis escritas (embora também existam leis positivadas nesse sistema jurídico), contribui para o desenvolvimento de um Direito altamente criativo, que se auto completa à medida que os casos concretos suscitam novas soluções ao Poder Judiciário.

Antônio Gidi aborda, com extremo detalhamento, a origem das ações coletivas no direito inglês, inicialmente fazendo uma distinção entre a law jurisdiction e a equity jurisdiction:

Por razões histórico-políticas, em um determinado momento histórico, o poder de aplicação autoritativa do direito na Inglaterra estava dividido em duas esferas: a “jurisdição do direito” (law jurisdiction) e a “jurisdição da equidade” (equity jurisdiction). Esse sistema dual de justiça coexistiu por cinco séculos na Inglaterra, até a sua unificação em 1873.

[...]

Simplificando uma questão extremamente complexa e controvertida, pode-se dizer que o sistema de common law tinha jurisdição sobre as pretensões de natureza pecuniária e indenizatória (damages) e o sistema de equity tinha jurisdição sobre as pretensões declaratórias e injuntivas ou mandamentais (injunctions).

A “equidade” (law of equity ou simplesmente equity) era aplicada pela court of chancery, um tribunal especial encarregado de disciplinar as situações que o “direito” (common law ou simplesmente law) não regulava de forma adequada. Tratava-se, assim, de uma espécie de “direito complementar”, que supria as lacunas do direito comum. A equidade era muito mais flexível em seus procedimentos, decisões e provimentos (remedies) do que a common law, que era um sistema extremamente formal, rígido e burocrático e composto de muitas tecnicalidades.3

Teori Albino Zavascki, citando Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, também destaca a existência das Cortes de Equidade do direito inglês como sendo a origem remota das ações coletivas, ressaltando, ainda, que se trata das primeiras experiências de demandas instauradas mediante legitimação extraordinária, tanto ativa quanto passiva:

Aponta-se a experiência inglesa, no sistema da common law, como origem dos instrumentos do processo coletivo e, mais especificamente, da tutela coletiva de direitos. Desde o século XVII, os tribunais de equidade (Courts of Chancery) admitiam, no direito inglês, o bill of Peace, um modelo de demanda que rompia com o princípio segundo o qual todos os sujeitos interessados devem, necessariamente, participar do processo, com o que se passou a permitir, já então, que representantes de determinados grupos de indivíduos atuassem, em nome próprio, demandando por interesses dos representados ou, também, sendo demandados por conta dos mesmos interesses. Assim nasceu, segundo a maioria dos doutrinadores, a ação de classe (class action).4

Vê-se, portanto, que o Bill of Peace do direito inglês é o ancestral da ação coletiva hoje admitida no Brasil e em diversos outros países, tanto naqueles seguidores da tradição jurídica romano-germânica, quanto naqueles outros, seguidores da tradição anglo-saxã. O Processo Civil coletivo, hoje, é uma realidade presente e inexorável em praticamente todos os sistemas jurídicos modernos5.

Analisando os antecedentes históricos do Processo Coletivo, faz-se importante observar que o direito inglês dessa época já admitia o instituto do litisconsórcio em determinados tipos de demandas, tanto naquelas instauradas sob a égide da law jurisdiction, quanto naquelas instauradas ante a equity jurisdiction. Nesses casos, contudo, não se falava em tutela jurisdicional coletiva, mas individual típica, mediante litisconsórcio ativo ou passivo.

E é justamente em torno do instituto do litisconsórcio que se dá o surgimento fundamental do Processo Coletivo. A esse respeito, Aluísio Gonçalves de Castro Mendes enfatiza justamente a pluralidade de sujeitos titulares de um determinado interesse jurídico em disputa e a dificuldade, ou impossibilidade, de congregá-los, todos, numa mesma relação jurídica processual. O autor acentua, no entanto, que a natureza coletiva da tutela jurisdicional não configura uma característica decorrente apenas da quantidade de pessoas que venham a integrar o polo ativo (ou passivo) da ação.

A existência de várias pessoas integrando a relação processual, ainda que em número elevado, não qualifica o caráter coletivo da ação. O fenômeno, conhecido como litisconsórcio, seja ativo, seja passivo ou misto, é típico do processo individual, na medida em que significa a mera cumulação de demandas singulares. Diante de fatos com repercussão sobre grupos pequenos, o litisconsórcio pode, por certo, representar um meio viável e econômico para a resolução da lide. Mas diante da massificação moderna, na qual os conflitos e as questões jurídicas e fáticas envolvem milhares ou milhões de pessoas, clara é a incapacidade do fenômeno litisconsorcial para a efetivação da prestação jurisdicional no âmbito coletivo.6

Diante, portanto, da inconveniência, ou impossibilidade, de se assegurar a todos os envolvidos na demanda a efetiva participação no processo, passou-se a admitir a postulação, e também a defesa, por meio de representantes. Com efeito, pode-se dizer que o surgimento do Processo Civil coletivo na Inglaterra decorreu de um esgotamento das possibilidades práticas asseguradas pelo instituto do litisconsórcio, na medida em que a grande quantidade de titulares dos interesses em disputa se mostrava incompatível com a presença de todos em juízo.

Havia a necessidade de se compatibilizar um mecanismo de prestação jurisdicional que atendesse, de uma só vez – e definitivamente – à necessidade de solução de conflitos massificados, sem que tal solução, todavia, desprezasse direitos considerados fundamentais, em especial a cláusula due process of law.

A compatibilização encontrada pelo direito inglês consistiu num deslocamento do objeto da garantia do due process of law, de modo a que tal direito não mais significasse uma efetiva participação no processo, mas o direito a uma adequada defesa dos interesses, feita por representantes, ou seja, direito à representatividade adequada.

O Processo Civil coletivo surge, então, como uma alternativa para a resolução judicial das controvérsias que apresentava, desde então, algumas características de fragmentação, ou molecularização de sujeitos e de interesses, o que impossibilitava a presença de todos os titulares de direitos – ainda que estes fossem meramente afirmados – em juízo.

Segundo Antônio Gidi, a partir do século XVII, os tribunais de equidade do direito inglês (courts of chancery), que permitiam o litisconsórcio fundado em questões comuns, porém, adstritos à intervenção compulsória das partes no processo, necessitariam flexibilizar a sua estrutura, dando azo à intervenção de representantes. Fazia-se necessário que o...

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