On the concept of law in Karl Marx/ Sobre o conceito de direito em Karl Marx.

AutorCasalino, Vinicius
CargoTexto en portugues - Ensayo

Introducao

No ano de 1926, por ocasiao do prefacio a segunda edicao de Teoria geral do direito e marxismo, Pachukanis confessava-se perfeitamente consciente dos varios "defeitos" que marcavam sua obra, dentre os quais a abstracao, a forma concisa--um esboco de exposicao--, o aspecto unilateral e a concentracao da atencao em certos aspectos, reputados os mais essenciais. Ainda assim, optou por nao modificar o trabalho. Segundo o autor, a critica marxista do direito ainda estava no inicio e qualquer conclusao definitiva seria precipitada. Era mais do que necessario um profundo estudo de cada ramo da ciencia juridica (1).

Passados quase noventa anos, nao ha duvida de que a critica marxista evoluiu. Em ambito nacional e internacional autores dao testemunho desse avanco com publicacoes cujo enfoque e o fenomeno juridico a luz de analises marxistas (2).

A crise de paradigma que atinge o positivismo juridico e a insuficiencia de sua continuacao logica, o chamado "pos-positivismo", explicam apenas parte desse crescimento. Nao parece exagero afirmar que, no fundo, o que se procura sao respostas mais amplas e substanciais as contradicoes economicas, politicas, juridicas e culturais que vem assolando a sociedade global apos o denominado "fim da historia". A teoria tradicional, em razao do ponto de vista de classe que representa, nao tem condicoes de explicar de modo satisfatorio as incongruencias da chamada "pos-modernidade" (3-4).

Obviamente deve-se reconhecer que a profusao de estudos marxistas e salutar caso se pretenda construir uma democracia material efetiva. Entretanto, nao se pode deixar de assinalar que esta multiplicacao de analises nao tem primado, como regra, pelo devido rigor metodologico. Sem ingressar em questoes estruturais--como a necessaria e inescusavel compreensao acerca dos fundamentos da economia capitalista--a critica marxista, em sua quase totalidade, nao conseguiu desvencilhar-se de certos pressupostos epistemologicos adotados pela teoria juridica tradicional.

De fato, por mais que Pachukanis tenha se esforcado por esclarecer que o direito, assim como o capital, nao passa de uma relacao social dotada de forma especifica (5), os estudiosos marxistas ainda nao se sentem confortaveis para abandonar o paradigma basico sustentado pela teoria tradicional segundo o qual o direito deve ser compreendido como conjunto de normas postas por uma autoridade competente (6-7).

Ao recusar este rompimento, no entanto, a critica marxista assume o serio risco de nao representar mais do que mera variante "economicista" do ponto de vista tradicional, ou, o que e efetivamente pior, simplesmente reincidir na ideologia burguesa "maquiada por um protetor tom marxista", como diria Pachukanis (8).

O que espreita sob a incapacidade ou inconveniencia desta recusa, na verdade, e algo mais grave e sub-repticio: uma relativa incompreensao quanto ao sentido especifico da forma juridica na critica da economia politica marxiana. Em outros termos: a teoria marxista ainda nao compreendeu adequadamente o conceito de direito em Karl Marx.

A tonica dessa incompreensao pode ser identificada, por exemplo, nas diversas e inconciliaveis concepcoes sobre o fenomeno juridico. Assim, alguns afirmam, apoiados numa determinada interpretacao de Marx, que o direito e uma "forma de dominacao de classe" (9). Para outros, ancorados em uma analise supostamente mais "sofisticada", o direito qualifica-se como uma "instancia juridico-politica" (10). Ha ainda os que, amparados em certa leitura de Pachukanis, veem o direito como "forma da equivalencia subjetiva autonoma" (11).

Ora, supondo que tais perspectivas reivindiquem-se "marxistas", como se explica que, fundadas todas na leitura de Karl Marx, apresentem conceitos tao diversos e antagonicos sobre o sentido da forma juridica?

A resposta tradicional assinala o velho lugar-comum segundo o qual nao ha em Marx uma teoria do direito (12). Desse modo, as ideias gerais sobre a forma juridica devem ser "colhidas" nas diversas obras do pensador alemao, de modo que cada leitura, a sua maneira, identifica um conceito particular conforme se atenha a determinado aspecto do pensamento marxiano.

Esse ponto de vista apresenta um sem-numero de problemas. No entanto, dois sao mais evidentes. Considerando que se funda numa acentuada relatividade epistemica, revela como conclusao inexoravel o fato de que quaisquer interpretacoes, desde que facam referencia a esta ou aquela obra de Marx, sao igualmente validas. O direito, entao, pode ser compreendido tanto como "forma de dominacao de classes", quanto como "forma da equivalencia subjetiva autonoma". A circunstancia de serem as definicoes antagonicas e inconciliaveis nao acarreta qualquer complicacao ou embaraco para os marxistas. Em segundo lugar, ela fixa ocultamente a premissa de que nao ha em Marx indicacoes metodologicas suficientes, capazes de apontar os caminhos a serem seguidos para que se obtenha um sentido conceitual relativamente objetivo com relacao a forma juridica.

E obvio, no entanto, que, se a critica marxista do direito almeja dar um passo adiante; se pretende se alcar a patamar mais elevado, proximo do qual se encontram os estudos filosoficos, politicos e, sobretudo, economicos, sobre Marx, e mais do que necessario e urgente aprofundar as reflexoes metodologicas com vistas ao aperfeicoamento de certas premissas a partir das quais seja possivel fixar determinados pressupostos relativamente objetivos, dotados, portanto, de algum compartilhamento.

Sem a delimitacao mais apurada desses fundamentos, a critica marxista continuara sendo percebida simplesmente como colecao de perspectivas plurais sobre observacoes marxianas a respeito da forma juridica, todas igualmente validas. A consequencia inevitavel e a que se verifica hoje: alem de concepcoes as mais variadas sobre o que e e que papel cumpre o direito, constata-se uma quase irrelevancia do marxismo no meio academico tradicional, uma aparente inexistencia na pratica judicial quotidiana e um completo bloqueio de suas potencialidades politicas transformadoras.

Do que se trata, portanto, e de estabelecer, com certo rigor, esses parametros. Esta e a pretensao deste artigo: testar a hipotese segundo a qual ha indicacoes suficientes na obra marxiana indicadoras dos caminhos metodologicos adequados a apreensao do sentido especifico da forma juridica em sua critica da economia politica. Em suma: pretende-se fixar, em termos relativamente objetivos, a estrutura logica do conceito de direito em Karl Marx.

  1. "Jovem Marx" ou "Velho Marx"?

    Verifica-se, com assidua frequencia, certa "relutancia" entre marxistas quando se pretende falar sobre metodo. Sob o pretexto de se criticar, e com razao, a ideologia do metodo--pela qual se sustenta que a objetividade do conhecimento cientifico reside exclusivamente no rigor metodologico (13) denuncia-se o carater mistificador de toda e qualquer abordagem metodologica, inclusive aquela inserida no contexto do pensamento dialetico. Neste caso as consequencias sao nefastas, pois, se e verdade que o metodo emana do objeto, nao e menos verdade que aquele e o "caminho" pelo qual se apreende este ultimo e, portanto, um momento fundamental da propria dialetica (14).

    E fundamental assinalar a importancia do debate metodologico quando uma ciencia encontra-se em suas primeiras etapas. Pachukanis tinha isso em mente quando dedicou a introducao e o primeiro capitulo de sua Teoria geral do direito e marxismo a discussao de questoes metodologicas (15). E se hoje soa relativamente obvio que a pesquisa da sociedade capitalista deve iniciar-se pela analise da mercadoria, nao se deve esquecer que Marx dedicouse a profundos estudos sobre o metodo para chegar a esta conclusao. O desdobrar de suas analises resultou em uma passagem classica que consta da famosa Introducao aos Grundrisse, denominada "O metodo da economia politica" (1857) (16).

    Muito embora a critica marxista do direito tenha evoluido de modo consideravel nos ultimos tempos, nao e menos verdade, como assinalado, que parte substancial dos autores ainda se mantem refem dos pressupostos basicos cultivados pela teoria juridica tradicional (17). Por isso, ao menos neste quesito, pode-se afirmar que os marxistas ainda dao os primeiros passos. Justificavel, portanto, que se introduza na ordem do dia o debate metodologico, cujo objetivo consiste em procurar estabelecer certa uniformidade ao menos no que tange ao objeto de estudo e ao modo de sua abordagem.

    Nesse contexto, um dos problemas mais evidentes e a acentuada tendencia que se encontra nas analises marxistas de fundar suas pesquisas, total ou parcialmente, nas obras iniciais de Marx (18), ou, como diria Althusser, no "Jovem Marx". A justificativa comum ressalta que somente nas obras de juventude o pensador alemao trata o direito como objeto de estudo dotado de alguma autonomia. Surge, entao, com assidua e talvez indesejavel persistencia, a "famosa" coletanea de artigos reunidos sob a denominacao Debates acerca da lei sobre o roubo de lenha, publicados na Gazeta Renana em 1842 (19). Tais apontamentos obtem o status de quintessencia do pensamento marxiano a proposito dos temas juridicos.

    A insuficiencia deste ponto de partida e evidente e precisa ser indicada com rigor. Aqueles que aderem a leitura de Althusser, por exemplo, nao tem qualquer dificuldade em demonstrar o equivoco. Sob esta perspectiva, o pensamento do "Jovem Marx" move-se no interior de certa "filosofia humanista". Como consequencia, os escritos de juventude situam-se no campo da "ideologia" e apenas as obras de maturidade alcancam status "cientifico" (20). E mais do que evidente, portanto, que as pesquisas sobre o direito devem comecar pelas obras do "Velho Marx" (21).

    Considerando, nao obstante, que a critica se autoproclama marxista, nao seria o caso de buscar o fundamento desta opcao imediatamente nas obras marxianas?

    Sem desprezar os estudos de Althusser ou de quaisquer outros, nao seria mais adequado...

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