Um olhar sociológico sobre a pena de prisão

AutorVioleta Refkalefsky Loureiro; Andréa Bittencourt P. Chaves
CargoDoutora em Sociologia pela Université de la Sorbonne Nouvelle-Paris III; Doutora em sociologia
Páginas176-194

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Introdução

A pena, um dos elementos centrais do Direito Penal - expressão que na língua portuguesa remete a castigo, sofrimento -, tem entre seus pressupostos teórico-filosóficos mais recorrentes pelo menos os seguintes: a) o primeiro e talvez o mais persistente no tempo encontra seus pilares fincados no princípio moral estabelecido pela filosofia idealista de Kant - o imperativo categórico -, que preconiza a reciprocidade ética das relações sociais; e, posteriormente, na indissociabilidade jurídica do binômio crime versus pena, formulada por Hegel.12 Este princípio se transporta para o Direito sob a forma da retributividade e, em consequência, para a ideia de que o transgressor ou o criminoso deve pagar pelo crime cometido com uma pena correspondente ao dolo provocado; b) em segundo lugar, a crença de que a pena de reclusão numa instituição fechada e o consequente isolamento do criminoso teriam o poder de ajustá-lo às normas de conduta desejáveis socialmente, além de prevenir contra novos atos antissociais pela dissuasão, coação, ou intimidação que o exemplo da pena aplicada imporia aos demais; c) e, finalmente, a pressuposição de que o trabalho na prisão funcionaria como preparação para um saudável reingresso do detento na sociedade após o cumprimento da pena, o que hoje vem sendo objeto das chamadas teorias da ressocialização (Lei de Execução Penal, art. 1º).

Uma perspectiva crítica mais apurada desses pressupostos aponta para a penosa evidência, no meu modo de entender a questão, de que tais pressupostos são frágeis e equivocados, e que as penas e as prisões são, em si mesmas, instrumentos ineficazes quando pretendem a recuperação ou ressocialização da pessoa. Por outro lado, embora concordando com Michel Foucault, na obra Vigiar e punir (FOUCAULT, 1977, p. 239), no que tange à análise da inutilidade da prisão como recurso de correção da pessoa, não concordo com sua postura quando propõe por isto sua extinção. A ideia me parece radical, uma vez que o mundo ocidental não concebeu até o momento nada que a substitua quando se trata de garantir a proteção aos direitos fundamentais da sociedade e resguardá-la de pessoas com comportamento incompatível com a vida em sociedade. Esta é uma questão de que tratarei ao final deste artigo, já que abordarei inicialmente os pressupostos acima referidos. Page 177

1 Sobre as finalidades da pena de prisão

Hassemer e Muñoz Conde (1989), ao analisarem a conduta humana, merecedora de pena de prisão (lesão grave com ou sem morte, ameaça à vida, à integridade física e outras), chamam a atenção para o fato de que, embora haja um consenso em relação à existência de condutas criminosas que clamam por uma pena, não há, em contrapartida, idêntico acordo quando se questiona a capacidade da pena em cumprir qualquer das funções para as quais é aplicada e que se espera que cumpra. O merecimento da pena apresenta-se como um componente concreto do exercício da Justiça, mas o outro componente, o utilitário, é que se converteu cada vez mais num objeto de controvérsias entre penalistas, sociólogos e muitos segmentos da sociedade, pelo menos no caso brasileiro. Tornou-se já evidente não haver uma relação direta entre o merecimento da pena e sua utilidade. Existe aí uma clara contradição no fato de que, se a pena é necessária, ela parece ser ao mesmo tempo inútil, dado que não consegue cumprir suas funções. Interessa, portanto, compreender por que se afirma a inutilidade da pena, seja sob o ponto de vista individual, seja do social.

No que concerne à função e à utilidade da pena, os estudiosos se distribuem ao longo de um amplo leque de posturas que convergem para três vertentes básicas (HASSEMER; MUÑOZ CONDE, 1989):

  1. as teorias clássicas sobre a pena, baseadas na filosofia idealista alemã, em especial em Kant e Hegel, segundo a qual a pena tem por finalidade básica o restabelecimento da ordem jurídica lesada. São teorias de caráter eminentemente repressivas e entendem a prevenção como resultado do controle social, pela intimidação que a pena imprime aos culpados. A pena seria o instrumento mais efetivo quando se trata de incutir na sociedade a responsabilidade social, de legitimar o poder do Estado na reposição da ordem social lesada e, assim, alcançar o bem-estar da sociedade;

  2. uma segunda linha teórica sobre a utilidade da pena se contrapõe a esta primeira e propugna pela ressocialização do criminoso. É neste sentido que se encaminham as modernas teorias sobre a pena no mundo ocidental. A fraqueza teórica desta linha de pensamento reside no fato de que a realidade conflita com ela, à medida que são raros os casos de ressocialização ou de perfeita integração de exdetentos à sociedade. Embora não haja dados para todos os estados, o fato pode Page 178 ser demonstrado pelos números da reincidência. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (ILANUD/Brasil), entre dezembro de 2004 e janeiro de 2006, a taxa de reincidência no sistema penitenciário brasileiro era estimada entre 70 e 80% (Relatório de Pesquisa: "Levantamento Nacional sobre Execução de Penas Alternativas" realizada entre dezembro de 2004 e janeiro de 2006", financiado pelo Ministério da Justiça/Departamento Penitenciário Nacional - DEPEN). Em entrevista concedida ao Jornal O Estado de S. Paulo de 25.01.08, p. C4, o Ministro da Justiça, Tarso Genro, confirmou que: "de cada dez detentos postos em liberdade sete voltam à prisão por novos delitos". É evidente que alguns estados apresentam números inferiores à média estimada para o país. Segundo o Departamento Penitenciário do Paraná (DEPEN - PR), entre 2003 e 2007, 26% a 30% dos presos condenados eram reincidentes, nos termos da lei, isto é, somente após a sentença ter tramitado em julgado e sem mais direito a recurso. Na Bahia, conforme dados da Secretaria de Justiça da Bahia, o índice de reincidência esteve em torno de 55% entre 2002 e 2007.

  3. teorias ecléticas sobre a função/utilidade da pena, que procuram, por vias diversas, combinar os objetivos das duas anteriores, privilegiando ora os pressupostos teóricos da corrente clássica, ora os da corrente ressocializadora, em especial no que tange às finalidades preventivas da pena, mas limitando o caráter repressivo das mesmas, que é substituído, cada vez mais, pelo caráter formador e educativo embutido modernamente nas penitenciárias, por entenderem seus defensores que a coação, a repressão e a violência não contribuem no sentido da ressocialização da pessoa.

Da parte da sociedade em geral, há um evidente interesse na redução da violência e do crime, porém é igualmente inequívoca a constatação de que a reincidência tem sido elevada e que a função dissuasiva da pena não tem funcionado a contento (mesmo nos países centrais, conforme mencionam RUSCHE; KIRSHEIMER, 2004). Daí porque nesses países as penas de reclusão vêm sendo, desde algumas décadas, substancialmente reduzidas e os castigos corporais, a repressão, etc., foram suprimidos. Page 179

2 O perfil do criminoso no Brasil

Alguns poucos dados são suficientes para proporcionar um perfil aproximado do preso no Brasil: em 1994 os 95% dos presos eram "absolutamente pobres" e 76% "analfabetos ou semianalfabetos" (citado em AZEVEDO, 1999, p. 48), o que já permite supor uma correspondente insuficiência de renda e cultura em geral. Em 2007, a situação pouco havia alterado: os dados do DEPEN para a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário da Câmara Federal - DF mostram que apenas 1% dos presos no Brasil tem curso superior completo e a maioria dos que cumprem pena máxima não chegou a completar o Ensino Fundamental. Ao analisar a situação dos presos em áreas do Sudeste (tendo por base Rio e São Paulo), Sérgio Adorno (2001) encontra uma população carcerária dividida em três grandes grupos de pessoas socialmente secundarizadas e subordinadas, todos discriminados socialmente: o dos 3 PPPs - pobres, pretos e prostitutas; o grupo MIB - caracterizado pela miséria, ignorância e bebida; e da nordestinidade, composto por imigrantes pobres. Essas categorias não são excludentes, em geral superpondo-se. De fato, vários estudos têm mostrado que a criminalidade que leva aos presídios no Brasil é, em sua quase totalidade, aquela relacionada a estratos sociais pobres e a fatos gerados prioritária (embora não exclusivamente) pelas condições de risco que a pobreza impõe. Já é o oposto o que ocorre com os crimes de colarinho branco e outros similares que, raras vezes, levam à prisão e que parecem ter-se tornado invisíveis socialmente ou são mais aceitos pela sociedade face a uma generalizada ética de tolerância social e solidariedade de classe com esse tipo de crime. Contribui também para isto o fato de que a legislação brasileira estabelece requisitos para a concessão de habeas corpus que são facilmente preenchidos pelas pessoas das classes mais abastadas, mas não o são com a mesma facilidade pelas classes desfavorecidas. Alessandro Baratta (1999) chama a atenção para o fato de que o crime de colarinho branco parece atingir grande parte dos membros das sociedades pós-industriais. Assim, se para uns a pena de prisão é inócua e atua como gestora de maior criminalidade, para outros ela é injusta, com muita frequência, de vez que discrimina socialmente os culpados. Page 180

3 As diversas posturas teóricas sobre o crime e/ou a pena

Quando se analisa a vasta gama de teorias existentes sobre o crime e a pena dentre as primeiras teorias modernas destacam-se autores que se situam no âmbito da sociologia, como Émile Durkheim (1960) e Robert...

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