Um olhar para a inclusão: as cotas raciais nas universidades brasileiras e o princípio da isonomia

AutorCristiane Pasche/Raquel Fabiana Lopes Sparemberger
CargoBacharel em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. E-MAIL: cpasche@yahoo.com.br/Doutora em Direito. Professora do Programa de Mestrado em Direito Ambiental e Relações de Trabalho da Universidade de Caxias do Sul E-MAIL: rsberguer@unijui.tche.br
Páginas235-247

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1 Introdução

A formação histórica e cultural do Brasil, fruto de uma colonização centrada na exploração mercantil, no regime escravocrata e nos latifúndios monocultores, trouxe profundos reflexos ao desenvolvimento da sociedade brasileira, em especial à população afro-descendente. Esses indivíduos foram historicamente vítimas de abusos e opressões decorrentes da escravidão, apresentando, atualmente, as mais graves condições socioeconômicas em diversos setores da sociedade. Nesta conjuntura, mostra-se cada vez mais necessária a intervenção estatal, mediante a instituição de ações de caráter afirmativo, a fim de compensar a exclusão e a marginalização sofridas. Tais medidas devem proporcionar ações positivas, confirmando a responsabilidade do Estado pelosPage 236 séculos de opressão e pelo restrito acesso aos instrumentos de cidadania de determinadas parcelas da população. Dentre tais medidas, surgem as propostas de efetivação da Reforma Universitária e do sistema de reservas de cotas raciais nas universidades brasileiras, a fim de garantir a inclusão dos indivíduos desfavorecidos, em especial das populações afro-brasileiras.

2 O princípio constitucional da isonomia e a igualdade material

Consoante o disposto no "caput" do artigo 5.º da Constituição Federal de 1988, "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]."

Na referida norma constitucional o legislador regulamentou o chamado princípio da igualdade ou isonomia, direito fundamental basilar da nossa Carta Magna, segundo o qual todos os indivíduos são iguais perante a lei, sendo vedadas discriminações de qualquer natureza.

O princípio da igualdade tem sua origem histórica no berço da Revolução Francesa, instituída em 1789, quando "a ideologia revolucionária foi sintetizada pela tríade «liberté, égalité et fraternité»." (CANOTILHO, 2002, p. 156).

Mas naquela ocasião conhecia-se à perfeição o endereço do preceito. Tratava-se de abolir a sociedade estamental então vigorante. O que se pretendia era fazer ruir um castelo de privilégios erigidos a partir da inserção do indivíduo numa dada classe social. Era todo um sistema de valores sendo contestado, quer quanto à sua legitimidade, quer quanto à sua legalidade.

Assim, quando se dizia que todos são iguais perante a lei, não havia dúvidas que a intenção era impedir que alguém se beneficiasse, por exemplo, de um tratamento mais benévolo, sob o fundamento de ser ele um nobre, como seria o caso de um integrante desta casta social que, tendo matado alguém, pretendesse subtrair-se à prisão, invocando para tanto sua posição nobiliárquica. (BASTOS, 1999, p. 180).

Bastos (1999, p. 181) afirma, ainda, que com a Revolução Francesa, foram derrubadas as barreiras que separavam os homens nitidamente em classes sociais diferentes, algumas detentoras de muitos privilégios. Nesse momento a igualdade tinha um endereço certo: voltava-se à extinção das discriminações de nascimento, isto é, alguém era nobre porque nasceu de pais nobres, sem que ele necessariamente tivesse algum mérito para conquistar esse título.

De acordo com Canotilho (2002, p. 426), a afirmação - «todos os cidadãos são iguais perante a lei» - significava, tradicionalmente, a exigência de igualdade na aplicação do direito. [...] A igualdade na aplicação do direito continua a ser uma das dimensões básicas do princípio da igualdade constitucionalmente garantido e, como se irá verificar, ela assume particular relevância no âmbito da aplicação igual da lei (do direito) pelos órgãos da administração e pelos tribunais.

Dessa forma, o preceito apresentado pelo princípio da isonomia acaba por impor limitações tanto ao legislador, quanto seu ao intérprete e aos próprios particulares.

Moraes (2004, p. 67) enfatiza em sua obra que o princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que encontram-se em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social.

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Neste sentido, Canotilho (2002, p. 426) afirma que "ser igual perante a lei não significa apenas aplicação igual da lei. A lei, ela própria, deve tratar por igual todos os cidadãos. O princípio da igualdade dirige-se ao próprio legislador, vinculando-o à criação de um direito igual para todos os cidadãos."

Para Bastos (1999, p.182), então, o princípio da isonomia é dos mais importantes da Constituição: ele incide no exercício de todos os demais direitos. É como se disséssemos: é garantido o direito de propriedade, de liberdade, de comunicação, respeitado o princípio da igualdade. Toda vez que o critério adotado perde legitimação, isto é não se afigura mais aos olhos da sociedade com razão para diferenciar as pessoas, esse elemento tem de ser expurgado do sistema.

A igualdade é classificada na doutrina em duas espécies distintas. A primeira, denominada de igualdade formal ou igualdade de condições, caracteriza-se por garantir a isonomia entre os seres humanos perante a lei, ou seja, todos os indivíduos devem ser tratados de maneira uniforme.

Esta igualdade, contudo, não significa tão-somente um tratamento idêntico perante o direito. Em verdade, ela implica a busca por uma igualdade real e efetiva perante os bens da vida.

Como explana Canotilho (2002, p. 426), um dos princípios estruturantes do regime geral dos direitos fundamentais é o princípio da igualdade. A igualdade é, desde logo, a igualdade formal ("igualdade jurídica", "igualdade liberal") estritamente postulada pelo constitucionalismo liberal: os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. Por isso se considera que esta igualdade é um pressuposto para a uniformização do regime das liberdades individuais a favor de todos os sujeitos de um ordenamento jurídico. A igualdade jurídica surge, assim, indissociável da própria liberdade individual.

A igualdade formal, contudo, a despeito da carga humanitária e idealista que traz consigo, até hoje nunca se realizou em qualquer sociedade humana. São muitos os fatores que obstaculizam a sua implementação: a natureza física do homem, ora débil, ora forte; a diversidade da estrutura psicológica humana, ora voltada para a dominação, ora para a submissão, sem falar nas próprias estruturas políticas e sociais, que na maior parte das vezes tendem a consolidar e até mesmo a exacerbar essas distinções, em vez de atenuá-las.

No campo político-ideológico, a manifestação mais acendrada deste tipo de igualdade foi traduzida no ideário comunista, que procura ainda tradução na realidade empírica, na vida das chamadas democracias populares. Ainda aqui, entretanto, a procura da igualdade material não foi de molde a eliminar as efetivas desigualdades existentes na vida das sociedades sujeitas a tal regime. (BASTOS, 1999, p. 179).

A segunda espécie, por sua vez, é denominada igualdade material ou igualdade substancial, que se caracteriza fundamentalmente em dispensar tratamento desigual aos desiguais, na medida de suas desigualdades. Este tipo de igualdade visa, sobretudo, ensejar idênticas oportunidades aos indivíduos, levando em consideração as particularidades e as dessemelhanças dos sujeitos.

Bastos (1999, p. 179) refere-se, neste contexto, que desde priscas eras tem o homem se atormentado com o problema das desigualdades inerentes ao seu ser e à estrutura social em que se insere. Daí ter surgido a noção de igualdade que os doutrinadores comumente denominam igualdade substancial. Entende-se por esta a equiparação de todos os homens no que diz respeito ao gozo e fruição de direitos, assim como à sujeição a deveres.

De acordo com os apontamentos de Canotilho (2002, p. 427), a igualdade material é exigível "através da lei, devendo tratar-se por «igual o que é igual e desigualmente o que é desigual». Diferentemente da estrutura lógica formal de identidade, a igualdade pressupõe diferenciações. A igualdade designa uma relação entre diversas pessoas e coisas."

Pode se afirmar, destarte, que a consagração da igualdade formal é responsável pela perpetuação das desigualdades, uma vez que atende a todos os seres humanos com identidade, considerando-os potencialmente iguais.

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Sendo assim, a isonomia almejada pela Constituição Federal de 1988 não é unicamente a igualdade de condições, mas também a verdadeira igualdade de oportunidades.

Por essa ótica, Moraes (2004, p. 66) assevera que a Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito, sem que se esqueça, porém, como ressalvado por...

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