De novo: “direito penal” do inimigo?

AutorManuel Cancio Meliá
CargoProfessor titular de Direito Penal na Universidade Autônoma de Madrid, Espanha
Páginas214-240

    A parte inicial deste texto foi feita durante uma pesquisa conduzida com ajuda de bolsa outorgada pela Fundación Alexander Von Humboldt, das Universidades de Bonn e Munique. Foi publicado em JAKOBS; CANCIO MELIÁ. Derecho penal del enemigo. Hammurabi, Buenos Aires, 2003, p. 57-102; versões posteriores – com pequenas modificações – foram publicadas em JAKOBS; CANCIO MELIÁ. Derecho penal del enemigo. Hammurabi, Buenos Aires, 2005; traduzido ao português a cargo de André Callegari: JAKOBS; CANCIO MELIÁ. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Livraria do Advogado, Porto Alegre / Rio Grande do Sul, 2005; a versão em alemão foi publicada em Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft 117 (2005), ps. 267 a 289; já a tradução para a língua italiana ficou a cargo de Federica Resta, publicada em DONINI (ed.), Diritto penal dello nemico, Giuffrè. Este trabalho, que completa os demais, faz parte dos projetos investigativos intitulados El nuevo sistema de sanciones penales (MEC, SEJ 2004-7025/JURI; investigador principal: A. Jorge Barreiro) e Democracia y Seguridad: transformaciones de La política criminal (Comunidad de Madrid-UAM/2006; investigador responsável: M. Cancio Meliá). Agradeço aos professores Jakobs e Schünemann, assim como ao Dr. Müssig, por sua amável disposição ao diálogo.

Traduzido por: Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira* e Bruno Costa Teixeira**

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Introdução

Na tentativa de esboçar os traços básicos do quadro, pode-se dizer de maneira simplificada que nos últimos anos os ordenamentos penais do “mundo ocidental” deram início a um desvio que os conduz de uma posição relativamente estática dentro do núcleo duro do ordenamento jurídico – em termos de tipo ideal: um núcleo duro no qual foram feitas com todo cuidado adaptações setoriais e no qual qualquer mudança de direção era submetida a uma intensa discussão política e técnica prévia – até um perigoso lugar na vanguarda do quotidiano jurídico-político, de modo a lhe introduzir novos conteúdos e a serem reformados setores de regulação já existentes com grande rapidez. Por conseguinte, os assuntos do cotejo político quotidiano rapidamente chegam, também, ao Código Penal.

As mudanças diante da práxis político-criminal habitual até o momento não apenas dizem respeito aos tempos e às formas, como também têm alcançado, paulatinamente, os conteúdos tamanho grau de intensidade que se pode formular a suspeita – com a permissão de Hegel e da coruja de Atena – de que assistimos a uma mudança estrutural de orientação. Esta mudança estrutura, de modo muito claro – como aqui se procurará demonstrar –, o conceito de “direito penal do inimigo”, que foi (re)introduzido – de maneira um tanto quanto macabra antes mesmo (das conseqüências) do 11 de setembro de 2001 – recentemente por Jakobs1 na discussão da ciência do direito penal.

Pretende-se examinar neste trabalho, em rigor, este conceito de direito penal do inimigo, a fim de saber qual o seu significado para a teoria do direito penal e avaliar suas possíveis aplicações e implicações político-criminais. Para tanto, de início, buscar-se-á esboçar a situação global da política criminal da atualidade. Em seguida, será possível abordar o conteúdo e a relevância do conceito de direito penal do inimigo a partir da perspectiva da teoria da prevenção geral positiva. A tese que será adotada é a de que o conceito de direito penal do inimigo supõe um instrumento idôneo para descrever um determinado âmbito, de grande relevância política, do atual desenvolvimento dos ordenamentos jurídico-penais. Aliás, enquanto direito positivo, o direito penal do inimigo apenas pertence nominalmente ao sistema jurídico-penal real: “direito penal do cidadão” é um pleonasmo, “direito penal do inimigo”, a seu turno, uma contradição.

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1 Sobre o estado atual da política criminal Diagnóstico: a expansão do direito penal
1. 1 Introdução

As principais características da política criminal praticada nos últimos anos podem ser resumidas ao denominador mínimo comum do conceito de “expansão” do direito penal2. Com efeito, atualmente pode-se convir que o fenômeno mais destacado e visível na evolução atual das legislações penais do “mundo ocidental” está na aparição de várias novas figuras, às vezes inclusive de inteiros novos setores de regulação, acompanhada de uma atividade de reforma de tipos penais já existentes realizada sob um ritmo muito superior ao de épocas anteriores.

O ponto de partida de qualquer análise do fenômeno que pode ser denominado de a “expansão” do ordenamento penal está em uma simples constatação: a atividade legislativa em matéria penal, desenvolvida no decorrer das duas últimas décadas nos países circunvizinhos colocou ao redor do elenco nuclear de normas penais um conjunto de tipos penais que, vistos da perspectiva dos bens jurídicos clássicos, constituem hipóteses de “criminalização no estádio prévio” a lesões de bens jurídicos3, cujos marcos penais, ademais, estabelecem sanções desproporcionadamente altas. Em suma: na evolução atual tanto do direito penal material como do direito penal processual, é possível constatar tendências que, emPage 217 seu conjunto, fazem aparecer no horizonte político-criminal os riscos de um “direito penal paleorrepressivo4” com características antiliberais5. A deixar ainda mais simples, talvez excessivamente, este é um primeiro ponto de partida da situação político-criminal6 que caberia situar temporalmente nos anos 1980 e que delineia o que se poderia denominar a “crise própria” do Estado social em matéria criminal. Como se procurará expor em seguida, esta problemática expansiva que poderia ser resumida na idéia do “direito penal do risco” não é a única. Ora, na evolução mais recente há outros fenômenos de expansão que somam características distintas a esse quadro político-criminal de partida.

1. 2 Os fenômenos expansivos

Em primeiro lugar, cabe delinear uma imagem mais concreta e atual desta evolução político-criminal. A partir da perspectiva aqui adotada, esse desenvolvimento pode-se resumir essencialmente em dois fenômenos: o chamado “direito penal simbólico” e o que se pode denominar “ressurgimento do punitivismo”. Em todo caso, deve-se sublinhar desde o início que estes conceitos apenas identificam aspectos fenotípico-setoriais da evolução global e não se apresentam de modo clinicamente “limpo” na realidade legislativa. Ambas as linhas de evolução, a “simbólica” e a “punitivista” – tal a tese que neste trabalho será exposta – constituem a linhagem do direito penal do inimigo. A considerar apenas esta filiação na política criminal moderna poder-se-á apreender o fenômeno que aqui interessa.

1.2. 1 O direito penal simbólico

Têm particular relevância aqueles fenômenos de neocriminalização a respeito dos quais se afirma criticamente que apenas possuem efeitos meramente “simbólicos7”. Como assinala Hassemer desde o início dessa discussão, aquele que relaciona o ordenamento penal com elementos “simbólicos” pode criar a suspeita de que não leva em conta a dureza muito real e nada simbólica das vivências daquele que se vê submetido à persecução penal, detido, processado, acusado, condenado, preso8, isto é, a idéia de que se inflige um dano concreto com a pena para obter efeitos algo mais que simbólicos. Portanto, para se poder abordar o conceito, deve-se recordar até que ponto o moderno princípio político-criminal de que apenas uma pena socialmente útil pode ser justa tem sido incorporado (em diversas variantes) pelosPage 218 participantes no discurso político-criminal. Contudo, apesar desse postulado (de que se satisfaz com a existência do sistema penal um fim, que se obtém um resultado concreto e mensurável, ainda que seja apenas – no caso das teorias retributivas – a realização da justiça), os fenômenos de caráter simbólico fazem parte de modo necessário da trama do direito penal, de maneira que, em realidade, é incorreto o discurso do “direito penal simbólico” como fenômeno estranho ao direito penal. Com efeito: desde perspectivas muito distintas, desde a “criminologia crítica” – e, em particular, desde o assim chamado enfoque do labeling approach9 – que acentua as condições da atribuição social da categoria “delito”, até a teoria da prevenção geral positiva, que entende delito e pena como seqüência de tomadas de posição comunicativa a respeito da norma10: os elementos de interação simbólica são a mesma essência do direito penal11. Então, que é que se quer dizer com a crítica ao caráter simbólico, se toda a legislação penal necessariamente tem características que podem ser denominadas “simbólicas”? Quando se usa em sentido crítico do conceito de direito penal simbólico se que, então, fazer específica referência a que determinados agentes políticos tão-só perseguem o objetivo de dar a “impressão tranqüilizadora de um legislador atento e decidido12”, é de se dizer que nesses casos predomina uma função latente sobre a manifesta, ou, dito de outra maneira, que há uma discrepância entre os objetivos invocados pelo legislador – e os agentes políticos em sua maioria concordam com este – e a “agenda...

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