Nova lei de drogas: primeiras impressões

Autor1.Ricardo Gueiros Bernardes Dias - 2.Juliana Silva Baños
Cargo1. Professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e da Faculdade de Direito de Vitória (FDV/ES) - 2.Monitoria da disciplina Teoria do Direito Penal I na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Páginas73-91

Page 73

Notas introdutórias

O afã da inflação legislativa de novo mostra sua face. Quatro anos após a promulgação da Lei 10.409/02, o Presidente da República sancionou, em 23.08.2006, a Lei 11.343/06, a nova lei de Drogas. O projeto de lei foi apresentado no Senado Federal pelo “Grupo de Trabalho – Subcomissão – Crime organizado, narcotráfico e lavagem de dinheiro”, em 06.05.2002, ou seja, menos de 4 meses após a promulgação da norma vigente (mas recortada) Lei de Tóxicos (10.409/02)!

Apesar da iniciativa do Senado Federal, o projeto recebeu um substitutivo na Câmara dos Deputados que modificou substancialmente seu teor. Com o retorno do projeto à Casa iniciadora, Senado Federal, em 17.02.2004, limitou-se ela a fazer pequenas modificações, concluindo-se, assim, que o âmago da nova lei é proveniente do conteúdo proposto pela Câmara dos Deputados.

Tratam-se de modificações profundas em alguns temas. Limitamo-nos, aqui, ao estudo dos novos tipos penais, bem como ao exame de algumas modificações processuais.

Page 74

Substância entorpecente ou droga?

Desde a edição da Lei 10.409/02, embora com veto total ao capítulo III (Dos crimes e das penas), o legislador já demonstrava sua preferência pelo termo “droga” em vez de “substância entorpecente”. A diferença é que, na norma vetada, ainda se utilizava a expressão “substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica”.

Ou seja, além de conciliar os termos “substância” e “droga”, a lei insistia em deixar claro que a substância ou a droga precisaria causar dependência física ou psíquica. Isso agora muda. A nova lei se limita ao termo “drogas”.

Sob a ótica técnico-científica e legal, droga é qualquer substância ou matéria-prima que tenha finalidade medicamentosa ou sanitária, enquanto entorpecente é qualquer substância que pode determinar dependência física ou psíquica. No Parecer 847/06, apresentado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, o Senador- Relator Romeu Tuma foi lacônico ao afirmar que “estamos de acordo com a nova terminologia proposta, mais sintética, além de amplamente consagrada no senso comum.”

O problema é que, com essa redação, haverá uma ainda maior abertura temática delegada à norma reguladora. Como se sabe, a lei de drogas contém inúmeras normas penais em branco, que são regulamentadas, hoje, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Se, até o advento da nova lei, essa norma regulamentadora elencava o rol das substâncias entorpecentes, psicotrópicas, etc. 1 , temos que, a partir da entrada em vigor da Lei 11.343/06, a regulamentação precisará deixar claro quais as drogas serão objeto da nova norma. Não importará, teoricamente, se se tratam de substância entorpecentes, psicotrópicas ou ainda que causem, ou não, dependência física ou psíquica.

Atentemos, contudo, à necessidade emergente da regulamentação. Ora, a Lei 11.343/06 prevê uma vacatio legis de 45 dias. A ANVISA deverá editar, nesse período, a nova norma regulamentadora. Não parece ser possível o “aproveitamento” do Decreto 344/98, que deixaria ímpar lacuna interpretativa. E oPage 75pior: entendemos que, se não editada a norma regulamentadora, nesse prazo, estaríamos diante de uma insólita e desmensurada abolitio criminis no tocante ao tráfico de drogas, conforme entendimento do STF. 2

A Lei 6.368/76, na verdade, utilizava-se da interpretação analógica ao preceituar “substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”. O conectivo “ou”, assim como disposto no art. 28, II, CP, dá uma conotação exemplificativa ao dispositivo, querendo dizer: as substâncias entorpecentes e todas as demais que causem dependência física ou psíquica, desde que, obviamente, previstas na norma regulamentadora. Era o caso, por exemplo, das substâncias psicotrópicas que, a rigor, não eram entorpecentes (e.g., cloreto de etila, princípio ativo do lança perfume).

De qualquer forma, mais razão ainda possuirá a doutrina para fortalecer sua tese a respeito da duvidosa constitucionalidade dessa forma de regulamentação.

A descriminalização e o “usuário”

Aqui, talvez, o dispositivo de maior impacto modificativo. O artigo, similar em parte ao art. 16 da Lei 6.368/76, descriminaliza o “uso” de drogas.

Embora o art. 28 se localize no Capítulo III (Dos crimes e das penas), pode-se, indubitavelmente, concluir pela descriminalização. É que o dispositivo passa a cominar penas sem qualquer conteúdo criminal, tais como advertência sobre os efeitos das drogas, medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo etc.

Mudou-se, assim, apenas a natureza da norma. A conduta permanece ilícita. Não houve legalização. Teremos uma punição híbrida: por um lado, não se pode admiti-la como pena administrativa, pois imposta por órgão com poder jurisdicional; por outro,Page 76não se pode conceituá-la como pena criminal, pois "crime" é conduta típica, ilícita e culpável a que se comina pena, de forma primária, de reclusão ou detenção, cumulada ou não com multa 3 . Lembremos que a substituição de pena, como a própria denominação denota, é hipótese secundária e condicional de imposição da sanção.

Admitir que um crime possa cominar pena, de forma direta e primária, de, por exemplo, prestação de serviços comunitários, seria trazer ainda maior balbúrdia quanto à sagaz diferenciação entre as normas penais e administravas.

Pouco se mudou na redação da norma. As locuções “ter em depósito” e “transportar” foram acrescentados. Entretanto, o legislador pecou por não corrigir uma conhecida falha do art. 16 da Lei 6.368/76. Não se incriminava o “usar”, razão pela qual entendia a doutrina que a norma não objetivava o vício, em si. Dizia-se que melhor seria se o legislador houvesse usado a expressão “fazer uso”. Assim, caso detectado que a pessoa fez uso da substância entorpecente, não haveria...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT