Notas sobre colisão de direitos fundamentais e argumentação jurídica: um diálogo entre Robert Alexy e Klaus Günther

AutorLeonardo A. de Andrade Barbosa
Páginas24-37

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1 Introdução

Em entrevista concedida a Manuel Atienza, publicada em 2001 na revista Doxa12, Robert Alexy ofereceu um interessante balanço crítico de suas contribuições teóricas. Perguntado acerca das principais diferenças entre seu trabalho e o de Jürgen Habermas, Alexy respondeu que as duas versões da teoria do discurso guardavam algumas diferenças, mas partiam da mesma intenção básica. O ponto central da discordância entre ambos remetia à teoria dos direitos fundamentais:

Em 'Facticidade e validade' Habermas contrapôs ao modelo da ponderação o modelo do discurso de aplicação, idealizado por Klaus Günther, no qual a idéia de coerência desempenha o papel central. Eu sou, como Habermas, da opinião de que na interpretação do direito a coerência tem grande importância. Mas creio que não pode haver coerência sem ponderação. Este é o ponto no qual discordamos intelectualmente. Habermas crê que a idéia de otimização destrói a estrutura deôntica dos direitos fundamentais. A ponderação supõe um mais ou um menos. [...] Eu considero, pelo contrário, que o simples fato da gradação não supõe, por si só, uma estrutura teleológica.3

A teoria de Alexy vem desempenhando um papel de grande relevância no pensamento jurídico brasileiro. Dentre suas propostas teóricas mais difundidas encontra-se a distinção entre princípios e regras (baseada na descrição dos princípios como mandados de otimização) e a formulação do princípio da proporcionalidade na dogmática dos direitos fundamentais4. A crescente importância que o modelo teórico dos juízos de ponderação ganha em nosso contexto acadêmico e profissional exige uma reflexão crítica sobre seus supostos epistemológicos. Este artigo toma como ponto de partida as considerações de Alexy na entrevista citada anteriormente para contrapor os aspectos básicos de sua teoria da argumentação jurídica à alternativa proposta por Günther. Problematiza-se, ao final, a consistência do modelo de juízos de ponderação, entendido como método para a solução fundamentada de problemas concretos de colisão entre princípios.

2 Ponderação como método de solução de colisões entre direitos fundamentais

O modelo da ponderação será apresentado em etapas: primeiro, é necessário compreender sua relação com a teoria da argumentação de Alexy para, em seguida, analisar a distinção entre princípios e regras, a caracterização dos princípios como mandados de otimização e a ponderação como possibilidade de aplicação fundamentada de princípios.

Alexy desenvolveu uma teoria da argumentação jurídica como caso especial da argumentação prática geral5. Isto significa que, a despeito de guardar especificidades, a argumentação jurídica está condicionada às possibilidades gerais da argumentação moral. As limitações do discurso jurídico referem-se à necessidade de produção de uma decisão obrigatória e se expressam de diferentes formas, por meio de restrições a determinados argumentos, à participação de pessoas, ao tempo disponível e assim por diante6. O termo "discurso", por sua vez, designa a problematização de pretensões de validade levantadas por atos de fala locucionários e ilocucionários (ou constatadores e reguladores, para utilizar a terminologia de Atienza7). A validade do que enunciam tais atos de fala tem como critério sua aceitabilidade racional, respaldada nos fundamentos aduzidos num ou noutro sentido. Neste ponto, a teoria de Alexy é tributária de desenvolvimentos da teoria do discurso de Habermas.

Mais do que um aglomerado de atos de fala, o discurso deve ser entendido como procedimento, garantido a partir de determinadas regras. Essas regras preservam a comunicação e permitem a formação da aceitabilidade racional a partir da força dos melhores argumentos. É à formulação de tais regras no âmbito do discurso prático racional que Alexy dedica boa parte de sua teoria da argumentação8. A teoria proposta por Alexy recusa a validade dedutiva como critério de correção, isto é, reconhece que os problemas do direito superam os limites da mera subsunção de fatos a normas. Alexy entende que uma teoria da argumentação jurídica só revela todo o seu valor prático no contexto de uma teoria geral do Estado e do Direito. Essa última teoria teria de ser capaz de unir Page 25 dois modelos diferentes de sistema jurídico: o sistema jurídico como sistema de procedimentos e o sistema jurídico como sistema de normas. O primeiro representa o lado ativo, e se compõe de quatro procedimentos já mencionados: o discurso prático geral, a criação estatal do Direito, o discurso jurídico e o processo judicial. O segundo é o lado passivo, e, de acordo com Alexy, deve mostrar que o Direito, como sistema de normas, é composto não só de regras, como também de princípios (destacamos).9

A dimensão procedimental e a dimensão material do fenômeno jurídico articulam-se, portanto, na medida em que supõem uma normatividade que se abre à construção interpretativa por meio de procedimentos argumentativos. Isso é possível em razão da indeterminação estrutural dos princípios, cujos sentidos são reiteradamente construídos no processo de aplicação do direito.

É em sua teoria dos direitos fundamentais que Alexy desenvolverá a distinção entre princípios e regras, bem como uma definição de princípios. Princípios e regras são espécies do gênero "norma". Não obstante, há uma diferença qualitativa entre as duas categorias, o que torna possível uma distinção a priori. Para Alexy, princípios são mandados de otimização, ou seja, podem ser cumpridos em diferentes graus. A medida de seu cumprimento depende não só das possibilidades fáticas, mas também das jurídicas.

O conflito entre regras remete a um problema de validade: regras antinômicas não podem valer simultaneamente no âmbito de um mesmo sistema jurídico. Ou se exclui uma das regras em conflito ou se constrói uma "cláusula de exceção". Já a colisão de princípios não pode ser equacionada a partir da mesma fórmula. Para Alexy, os problemas suscitados por este tipo de situação se referem não à validade dos princípios, mas ao seu peso10. É neste ponto que a ponderação se apresenta como modelo de solução racional da colisão entre princípios.

Alexy considera que a situação concreta na qual dois princípios igualmente válidos colidem é relevante para a determinação de uma relação de precedência de um sobre outro. Esta precedência não pode, entretanto, significar uma "prioridade sem mais". Estaria implicado, no processo de ponderação, o dever de tratar proporcionalmente os interesses em jogo, através de uma harmonização ou "concordância prática"11. Fala-se, então, em uma relação de precedência condicionada, determinada a partir das condições fáticas relevantes que, em uma determinada situação concreta, levam o princípio P Page 2 a ter precedência sobre o princípio P Page 3. Com base nesse raciocínio, Alexy formula uma lei de colisão, que é enunciada da seguinte maneira: "As condições sob as quais um princípio prevalece sobre outro constituem o suporte fático de uma regra que expressa a conseqüência jurídica do princípio prevalente"12.

Os princípios não funcionam, na teoria de Alexy, como topoi. Ao longo do tempo, a operação do direito estabelece entre eles uma " ordem frouxa”13, que se refere, em primeiro lugar, a um " sistema de condições de prioridade”, estruturado a partir de um conjunto de decisões pregressas tomadas mediante ponderação de princípios. Este sistema, mesmo contingente, serve como referência para o aplicador, funcionando como uma espécie de horizonte de sentidos normativos. Ele também permite afirmar que vigora o princípio da universalidade no tratamento dado à solução de conflitos entre princípios14. Liga-se a ele, em segundo lugar, um " sistema de prioridades prima facie”, o qual estabelece que aquele que deseja refutar a prioridade estabelecida em prol de um determinado princípio responderá pelo "ônus da prova", isto é, a responsabilidade por fundamentar de maneira convincente tal pretensão15. Em terceiro lugar, a ordem estabelecida entre os princípios seria garantida por um " sistema de estruturas de ponderação”. Tais estruturas dizem respeito à dupla exigência dos princípios, como mandados de otimização dirigidos às possibilidades fáticas e às possibilidades jurídicas de seu cumprimento16.

Diante disso, Alexy poderá afirmar que princípios e regras funcionam, na argumentação jurídica, como razões, não obstante razões de natureza diversa. Enquanto as regras seriam razões definitivas, os princípios seriam razões prima facie. Razões, entretanto, referidas a normas, isto é, princípios e regras não são propriamente razões para a ação, mas razões para a produção de outras normas, universais ou individuais17.

A pergunta que se coloca à teoria de Alexy é sobre a possibilidade de um controle racional da ponderação. Se nos ativermos ao sentido que Alexy atribui à expressão "racional", a irracionalidade de um procedimento significará sua abertura ao "subjetivismo" ou "decisionismo". Sua preocupação é em que medida a descrição dos princípios, a partir de uma estrutura teleológica, abre espaço para converter a decisão judicial na expressão de preferências do julgador. Afirmar a racionalidade Page 26 da ponderação é, por outro lado, caracterizá-la como um modelo de fundamentação. Ao contrário de um modelo de decisão, em que a precedência de um princípio sobre o outro é determinada...

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