Conflito entre Fontes Normativas Estatais e Não Estatais do Direito Desportivo. O Recurso ao Pluralismo Jurídico como Forma de Superação da Falsa Dicotomia

AutorWladimyr Vinycius de Moraes Camargo
Ocupação do AutorMestre em Direito. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás
Páginas81-90

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Ver nota 1

Mostra-se crucial, nessa nova realidade, a ideia de uma esfera pública que seja capaz de recompor o Universal contra a identidade: que não se contente, portanto, de relativizar e enfraquecer a identidade, simplesmente pluralizando-a. Trata-se, em outras palavras, de construir um Universal multicêntrico, que não vise a recompor como um mosaico as várias identidades culturais, tomando-as como tal - ou seja, como um dado autoevidente e autofundado, e não como um problema.

(Giacomo Marramao)2

1. Introdução

O presente trabalho busca respostas a um aparente conflito entre a "ordem jurídica desportiva" e a "ordem jurídica estatal". A inscrição em nossa Constituição Federal do princípio da autonomia das entidades desportivas e seus dirigentes tem dado azo a um debate pungente quanto à abrangência do instituto, assim como sobre os contornos limítrofes a seu exercício.

Álvaro Melo Filho desafiou o problema em recente comentário à chamada "Nova Lei Pelé", conforme se vê abaixo:

[...] este ordenamento jusdesportivo, não raro, agride e ofende princípios e ditames aos quais foi conferida estatura constitucional. E a normatização desportiva, quando em dissintonia com o quadro de princípios estruturantes e normas constitucionais, ‘vai gerando ondas de frustração e juízos inoperantes, os quais, para além de enfraquecerem a vivência do sistema desportivo, diminuem a legitimidade de intervenção pública e conduzem a que os cidadãos e as organizações desportivas tenham como realidade palpável não uma situação normativa formal efetiva, mas uma espécie de legislação paralela, onde a regulação não leva em linha de conta os desígnios do legislador democrático’, como sublinha J. M. Meirim [...]3

A tarefa que se impõe remete a uma necessária reflexão sobre um sistema que é essencialmente especial e original. Ou, conforme as palavras de J. J. Canotilho, "originário", "porque arranca de um pacto fundador - A Carta Olímpica de 1894 - que passou a constituir a ossatura jurídica e estatutária de um número crescente de actividades e organizações desportivas".4

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O problema transparece principalmente na definição de fontes normativas na área do desporto e a possibilidade ou não de coexistência de um sistema autorregulado e a produção legislativa estatal.

Com a crescente incursão do tema do desporto nos fóruns intergovernamentais, o Sistema das Nações Unidas, através da Carta Internacional de Educação Física e Esporte da UNESCO de 1978, reconhece que o Direito ao Esporte constitui um dos direitos humanos. Uma de suas dimensões se dá no denominado Esporte Social, onde o papel do Estado é marcante, conforme leciona Manoel Tubino: "O Esporte Social ganha relevância gradualmente tornando-se uma das responsabilidades mais marcantes do Estado".5

Os próprios movimentos esportivos contemporâneos conclamam, assim, o Estado a assumir uma postura protagonista em seu ambiente. A tensão entre necessidade de participação estatal e autarquização passa a ser preponderante na área desportiva.

Marta Lora-Tamayo Vallvè relata até mesmo uma pretensa reação do Comitê Olímpico Internacional - COI - referente à cooperação internacional dos Estados no âmbito esportivo:

Estas iniciativas de organizaciones internacionales que se rigen por el derecho internacional público fueron interpretadas en algunos momentos como una tentativa para romper la hegemonía del COI y de las Federaciones Deportivas Internacionales en sus respectivos ámbitos en la organización del deporte internacional, y de hecho el COI, receloso de toda a injerencia que pudiera tener el aspecto de una intervención política en aquello que consideraba su dominio exclusivo, manifestó ciertas reservas a la Carta6.7

Isso é próprio do sistema jurídico, onde a tessitura aberta e indeterminada das normas conduz não à resolução definitiva da complexidade, nem mesmo a sua mitigação, mas à orientação de que não existirá volta a um mundo onde a determinabilidade era regra.8

O desafio é, portanto, sobretudo teórico, de exercício de hermenêutica e incursões nos campos do Direito Internacional e no Direito Desportivo.

A resposta não necessariamente apontará ao conflito. A busca por soluções no campo do pluralismo jurídico e na teoria da interpenetração de sistemas normativos - internormatividade - pode distinguir um caminho de reconhecimento de complexidades indeterminadas, porém de respeito à diferença e ao convívio com identidades plúrimas.

2. O Sistema Desportivo Internacional - Hierárquico e Piramidal

A organização do esporte olímpico é marcadamente internacionalista, transnacional. Esse fenômeno se assenta na premissa de que todo o sistema, incluindo os subsistemas nacionais, é encimado por dois princípios reitores: a supremacia normativa da Carta Olímpica e a hegemonia organizativa do Comitê Olímpico Internacional - COI.

Esta simbiose entre comando normativo e autoridade político-administrativa encontra-se no próprio texto da Carta Olímpica, que dispõe em seu art. 2 que "A missão do COI é promover o Olimpismo a nível mundial e dirigir o Movimento Olímpico" (grifou-se).

Na forma disposta no art. 1 da mesma norma, abaixo do COI estariam as Federações Desportivas Internacionais (FI’s) e os Comitês Olímpicos Nacionais (CON’s). Dispõe ainda que o sistema hierárquico engloba as Entidades Nacionais de Administração do Desporto, as Entidades de Prática Desportiva e todas as pessoas vinculadas, especialmente os atletas (tidos como um elemento fundamental da ação do Movimento Olímpico).

Pode-se ilustrar a organização mundial do desporto olímpico na forma de uma pirâmide, conforme exemplifica a figura a seguir:

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[VER PDF ADJUNTO]

Tem-se, claramente, uma verticalização piramidal que se completa com o 6º princípio inscrito na Carta, segundo o qual: "Pertencer ao Movimento Olímpico exige o respeito da Carta Olímpica e o reconhecimento pelo COI". O mesmo comando se repete no n. 2 do art. 1, que dita que: "Toda a pessoa ou organização pertencente, seja a que título for, ao Movimento Olímpico está vinculada ao disposto na Carta Olímpica e deve respeitar as decisões do COI."

Assim, em contraste com o que ocorre na relação entre Estados soberanos, o Sistema Desportivo Mundial se organiza enquanto um bem resolvido caso de vinculação jure et de facto dos subsistemas nacionais às normas e entidades internacionais, estando o COI no papel de dirigente principal.

Em outra via, a Comunidade Internacional é descentralizada no âmbito das relações entre Estados. É justamente o contrário do que preconizava Hans Kelsen em seu monismo internacionalista, ou seja, a verticalização da estrutura normativa, que resultaria naturalmente na construção de um Estado super pars, civitas máxima, derivando ao fim, numa federação mundial de Estados que acabaria por absorver os Estados nacionais:

A construção do Estado mundial pode ocorrer de dois modos: ou um Estado estende com a força a sua "soberania" sobre os outros Estados (e essa é a via do imperialismo), ou cada um dos Estados se une voluntariamente ao outro, numa federação universal de Estados, da qual, gradualmente, através de uma crescente centralização, pode surgir uma confederação e, enfim, um Estado unitário. Esta é a via do federalismo.9

Nesse sentido, não havendo um estado internacional stricto sensu, para o Direito Internacional Público - DIP, em tese uma nação soberana pode exercer seu direito de não pertencer à comunidade internacional institucionalmente. Teria o chamado "direito de ficar fora" (opting out).

O mesmo também poderia ocorrer - ainda que "em tese" - para uma entidade de administração do desporto. Ela não é obrigada a participar do sistema internacional do desporto. Não seria impelida a se filiar obrigatoriamente a uma federação internacional ou ao COI. Ocorre que, tanto para o caso do DIP, como para o desporto, acontece na prática o que prescreve o jusconstitucionalista português J. J. Canotilho acerca da livre adesão dos Estados ao Direito Internacional:

(...) o princípio da autodeterminação deve ser reinterpretado no sentido de que a legitimação da autoridade e da soberania política pode e deve encontrar suportes sociais e políticos a outros níveis - supranacionais e subnacionais - diferentes do "tradicional" e "realístico" Estado-nação (...) hoje os fins dos Estados podem e devem ser os da construção do "Estados de direito democráticos, sociais e ambientais", no plano interno, e Estados abertos e internacionalmente "amigos" e "cooperantes" no plano externo.10

Para Canotilho há um nítido jus cogens internacional, ou direito imperativo internacional, assentado na supremacia da observância do respeito aos direitos humanos.

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Poder-se-ia dizer, igualmente, que para o desporto há a supremacia da Carta Olímpica.

Denota-se que todo o sistema olímpico é conformado por um sistema normativo próprio, fruto de autorregulação. Como modelo sistêmico, o que ocorre na base da pirâmide com relação à normatização própria deve estar em consonância com as regras adotadas pelas entidades que se situam acima. Mutatis mutandis, as entidades principais, inclusive as internacionais, ao reconhecerem aquelas que lhes são subordinadas, também dão legitimidade às mesmas como fontes de direito no âmbito esportivo.

No fechamento ao modelo autogestionário, hierárquico e transnacional, há na Carta Olímpica ainda a consagração do princípio da autonomia das entidades desportivas, conforme dispõe seu 4º princípio: "As organização, administração e gestão do desporto devem ser controladas por organizações desportivas independentes" (grifo nosso). Indo mais além, diz o texto que cabe ao...

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