A norma jurídica previdenciária geral e abstrata

AutorDaniel Pulino
Ocupação do AutorProfessor de Direito Previdenciário da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Procurador do Instituto Nacional do Seguro Social
Páginas67-92

Page 67

Dada, assim, a estrutura genérica essencial das normas jurídicas, cuidemos de ressaltar, agora, de que forma se preenche aquela moldura, especificamente, no direito previdenciário, ressaltando então suas particularidades e, com isso, acentuando a “heterogeneidade semântica” de que nos fala Paulo de Barros Carvalho, ao contrapô-la à já vista “homogeneidade sintática”93das normas de Direito.

Separemos, pois, a norma-padrão, a regra-matriz de incidência previdenciária, a norma previdenciária em sentido estrito94, enunciando os critérios de sua hipótese de incidência e de sua conseqüência.

Cumpre alertar, contudo, que a estrutura normativa que teremos em vista será a impositiva da obrigação válida para as prestações previdenciárias, sobretudo as pecuniárias (os benefícios de

Page 68

previdência social). E é claro que assim procedemos por uma razão fundamental: o objeto específico deste trabalho é uma prestação previdenciária em pecúnia. E — evidentemente — o modelo proposto é válido para apenas uma precisa ordem jurídica: a brasileira atual, no que diz respeito ao regime geral.

1. Antecedente da norma previdenciária

Há aqui, na composição do antecedente, uma seleção de caracteres, de uma classe de traços de acontecimentos, tidos como relevantes para caracterizar eventuais ocorrências fáticas.

O antecedente ou hipótese é, pois, ”uma previsão hipotética, relacionando as notas que o acontecimento social há de ter para ser considerado fato jurídico”95.

A rigor, o antecedente das normas gerais não abriga o evento nem o fato jurídico (este estará caracterizado — rectius: será constituído — na norma individual, como veremos no próximo capítulo), mas, sim, o modelo, o arquétipo, o conceito do fato, que permitirá saber, afinal, em face de determinada ocorrência — do evento — se ela faz ou não parte deste conceito abstrato, subsumindo-se ou não, então, este àquele.

Cabe observar que a proposição descritora da hipótese lançase, projeta-se sempre para o futuro, circunstância que se refletirá, inclusive, no tempo do verbo nela empregado (por exemplo, “ficar inválido...”; “ser mãe...”, etc.).

Dentro dela, encontramos os critérios (material, espacial e temporal) para identificação dos eventos aptos a pôr em movimento o mecanismo de proteção previdenciária. Vejamos cada um desses critérios.

1.1. Critério material

No direito previdenciário, consistirá na descrição de pelo menos um fator necessário, ao qual se podem combinar três outros, acidentais.

Com efeito, necessariamente, o critério material da regra-matriz de incidência previdenciária terá que se referir a uma contingência social. Sem isso, não estaremos em face de uma norma jurídica concessiva de uma prestação verdadeiramente previdenciária, em nosso sistema jurídico.

Page 69

Em alguns casos, porém, o critério material da hipótese de incidência previdenciária abrigará também a situação de necessidade social, explicitamente, a carência — que, apesar de acidental, constitui a regra, como logo veremos — e a causa da contingência (risco)96.

Assim, as prestações previdenciárias variam, primeiramente, em razão da contingência social, embora possam variar também em função da associação desta à situação de necessidade especificamente determinada, à causa da contingência e/ou à carência.

É este o domínio material (matérias ou objetos da disciplina legal) de validade possível para as normas previdenciárias em nosso sistema. Eis o conteúdo possível de previsão hipotética nas normas previdenciárias.

1.1.1. Fator necessário: contingência social

O conceito de contingência social já foi dado, quando analisamos o regime jurídico-previdenciário.

A contingência, como vimos, tem papel fundamental em nosso modelo previdenciário, já que é através dela que o sistema detecta as diferentes situações de necessidade social que serão combatidas pelas prestações previdenciárias.

Exatamente por isso, a situação de necessidade social estará sempre compreendida, implicitamente, no modo de funcionamento do mecanismo protetivo previdenciário; nem sempre, porém, estará descrita no critério material da regra-matriz de incidência previdenciária.

Atente-se: a situação de necessidade pode não aparecer descrita com todas as letras na lei, e, de fato, geralmente não aparece. Na quase totalidade dos casos, ela é apenas legalmente presumida a partir da ocorrência da contingência social. Como, porém, as contingências sociais só interessam ao direito previdenciário justamen-te enquanto instrumentos seletores de necessidade social — sendo estas, verdadeiramente, as situações a proteger —, mesmo quando a lei não fizer menção à situação de necessidade, saberemos que, no plano lógico do funcionamento do sistema previdenciário, ela sempre terá sido levada em conta. Todavia, para fins de análise da incidência jurídico-previdenciária, ela não nos interessará nesses casos — que, repita-se, são a grande maioria no regime geral — pois, se o

Page 70

critério material descrever somente a contingência social, é este even-to, apenas, que interessará para aferir a instauração da relação jurídica concessiva da prestação.

Em se tratando de benefícios previdenciários (vale dizer, prestações monetárias), vimos também que as situações de necessidade traduzem-se como um desequilíbrio econômico, consistente ou num defeito de ganho (na perda ou redução da renda do trabalhador ou de seus dependentes) ou num excesso de gastos, que sobrecarrega o orçamento daqueles sujeitos97. E é para recompor esse equilíbrio que se pagam os benefícios de previdência social. Já sabemos, igualmente, que a maior parte dos casos de necessidade social é daquele primeiro tipo, de forma que a contingência social será, por conseguinte, geralmente evento que impossibilita ou reduz a capacidade de ganho do segurado.

Este fator é, portanto, constante na composição do critério material das normas previdenciárias. Constará, pois, de todas as normas de incidência previdenciária, consistindo na descrição de um acontecimento da natureza (v.g., morte natural ou velhice) ou da experiência social (v.g., desemprego), produtor de situação de necessidade para aqueles que vivem do próprio trabalho ou para os que retiram seu sustento de alguém que vive de seu trabalho.

Nesse sentido, são precisas as palavras de Persiani, que devem ser transcritas: “gli eventi al verificarsi dei quali è prevista l’erogazione di prestazioni presentano, nella loro varietà, una caratteristica costante: si tratta di eventi, per la natura delle cose o per il modo in cui la società è organizzata, normalmente indevitabili che producono comunque conseguenze dannose per chi vive del proprio lavoro e che, a causa dell’atuale struttura economico-social, generano una situazione di bisogno, di solito in conseguenza dell’impossibilità o incapacità di lavorare che ne deriva”98

Page 71

Note-se, a propósito, que o mestre italiano também realça a idéia — corrente na doutrina — de que as contingências sociais são eventos normalmente inevitáveis, o que é absolutamente verdadeiro numa consideração global, social — que é a que interessa inclusive na conformação atuarial e financeira do sistema — embora essa característica apareça com maior ou menor propriedade em uma ou outra delas99. Isso mostra, de mais a mais, quão indispensável é este mecanismo jurídico de proteção social.

Diga-se, finalmente, que a lei previdenciária impõe, para cada contingência social, a produção de especial forma de comprovação como condição da outorga da prestação ou, em alguns casos, também da sua manutenção. Assim, por exemplo, no salário-família, a Lei
n. 8.213/91 condiciona seu pagamento “à apresentação da certidão de nascimento do filho ou da documentação relativa ao equiparado ou ao inválido, e à apresentação anual de atestado de vacinação obrigatório do filho” (art. 67); já no auxílio-reclusão, a outorga deste benefício previdenciário dependerá de prova, mediante certidão, do efetivo recolhimento do segurado à prisão, sendo exigida, ademais, a apresentação trimestral de declaração, da autoridade competente, de que perdura essa situação (cf. art. 80, parágrafo único da Lei n. 8.213/91, combinado com o art. 117, § 1º do Regulamento veiculado pelo Decreto n. 3.048/99).

1.1.2. Fatores acidentais: explicitação da situação de necessidade social, carência e causa

Uma primeira observação a ser feita aqui é de ordem terminológica e diz respeito ao vocábulo “acidentais”, que acima empregamos para mostrar que, diferentemente do outro fator que acabamos

Page 72

de ver, é possível que haja norma previdenciária sem que sua hipótese se refira a estes três componentes. De fato, a lei previdenciária pode, perfeitamente, não se referir à situação de necessidade social, dispensar de carência determinadas prestações, ou então não atribuir relevância alguma à causa que leva à contingência social, cuja conseqüente situação de necessidade será suprida pela outorga do benefício.

Todavia, se e quando a situação de necessidade for explícita, ou quando a carência ou a causa constarem da hipótese de incidência de determinado benefício previdenciário, tais fatores serão, obviamente, necessários para a incidência da regra-matriz e, portanto, sem eles não poderá ser instaurada a relação jurídica de prestação...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT