Nexo Subjetivo: Dolo

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas393-409

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15.1. Vontade, representação e conhecimento da anti-juridicidade

Dolo, em alemão, corresponde ao Vorsatz, que significa propósito, intenção.

Dolo, destarte, é agir de propósito. É a intenção dirigida à realização de objetivo determinado, de escopo bem definido.

A tônica do dolo, portanto, está na intenção do agente.

Todavia, embora em apertada síntese se possa dizer que o dolo consiste em atuar de propósito, é convinhável acentuar que o dolo não se esgota na mera manifestação de vontade. Esta representa apenas um de seus aspectos.

A intenção retrata o momento final do dolo, a ultimação ou desfecho de seu processo de formação.

A vontade resulta do raciocínio e da inteligência, por meio dos quais o ser humano concebe ideias e toma resoluções. Sob esse prisma, é translúcido que dolo não significa somente vontade dirigida, mas uma vontade que teve uma estruturação prévia, que seguiu um processo de formação pela inteligência e raciocínio. O dolo, portanto, não condensa simplesmente o querer (simples manifestação da vontade - v. n. 3.1), mas, ainda, o saber consciente.

De tal arte, é necessário que a intenção, que sintetiza a noção de dolo, seja precedida pela representação dos fatos e pelo conhecimento da antijuridicidade. Representação e conhecimento da antijuridicidade são os componentes que estruturam a vontade dolosa em seu processo de formação e constituem as características prévias que conferem à intenção o rótulo dolo.

A representação, na quadra do dolo, é termo jurídico que designa a percepção antecipada que o sujeito ativo tem com relação ao desenvolvimento do delito. Vale dizer: o agente precede mentalmente o desenrolar do acontecimento criminoso. Imagine-se um filme como realização humana, que constitui obra cinematográfica inteira e completa. Antes, entretanto, desse filme ser projetado nas telas do cinema ou lançado no vídeo da televisão, o espectador recebe chamadas, por intermédio de sumários, que lhe fornecem uma amostragem do conteúdo e enredo da fita. Em sentido figurado, a representação está para o crime assim como a sinopse para o filme.

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Antes do delito concretizar-se, seu autor recebe na esfera psíquica a imagem do desenrolar da conduta punível no plano fático. A essa sensação mental do desenvolvimento do crime é que se denomina representação, componente enraizado na estruturação da vontade dolosa.

José resolve matar o desafeto Antonio. Escolhe a arma e o local da emboscada. Antes de efetivamente agir, no plano mental José já se visualiza de tocaia, apontando e atirando contra Antonio, prostrando-o morto no solo. José tem, dessa forma, a representação dos fatos, pelo descortino psicológico antecipado de seu desenvolvimento.

O agente se dispõe a cometer um furto residencial, quando sabe que os moradores de determinada casa viajaram. Idealiza o modus operandi do assenhoreamento ilícito e mentalmente se vislumbra procedendo à escalada, removendo e deslocando telhas para a passagem do corpo e procedendo, ato contínuo, à subtração dos bens após adentrar na moradia. O sujeito ativo recebeu, destarte, a projeção mental antecipada do desenrolar do episódio delituoso.

Nesse passo, dos exemplos supramencionados pode surgir a impressão de a representação ser característica exclusiva dos crimes premeditados, daqueles delitos que tiveram um planejamento prévio. Contudo, se essa conclusão prima facie pode transparecer, cumpre atentar que não resiste a exame mais atilado. Da mesma forma que a cogitação, no iter criminis, não se confunde com a premeditação (v. n. 9.2), igualmente a noção desta não coincide com a da representação. A representação também existe nos crimes de ímpeto, id est, nos delitos que não contam com planificação prévia e ocorrem ex abrupto, repentina e inopinadamente. A título de ilustração: Tício se desavém com Caio e ambos discutem acirradamente, trocando impropérios. Tício se exaspera e, irado, ao perder seu autodomínio e controle, saca de um revólver e o aponta na direção de Caio, abatendo-o com certeiro disparo. É inegável, nessa hipótese, que Tício, quando estava prestes a atirar, teve, ainda que em momento fugaz, a percepção mental daquilo que estava prestes a desencadear, alcançando, pois, a representação do fato.

Não se compreende que alguém, doutrina Basileu Garcia, queira determinado evento sem ter sua percepção prévia. A manifestação volitiva une-se à intelectiva865.

Tendo o sujeito ativo a representação dos fatos, é imperioso que por meio dela alcance, na esfera psíquica, o conhecimento da antijuridicidade.

O conhecimento da antijuridicidade, embora técnica a expressão, não se traduz pelo conhecimento das leis e princípios jurídicos. Incurial seria que assim sucedesse, pois, fosse essa a ideia transmitida, chegar-se-ia à conclusão esdrúxula e de todo estapafúrdia de que somente os bacharéis em Direito ou pelo menos os estudantes desta ciência poderiam delinquir, de modo a não existir o crime se seu autor fosse jejuno e leigo nas letras jurídicas.

Não se requer precisão técnica.

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Ora, é perfeitamente possível conhecer um automóvel e saber dirigi-lo sem que, necessariamente, se deva conhecer mecânica; tuberculose e pneumonia são moléstias conhecidas, e todos sabem dos riscos que representam, embora, para isso, não sejam necessários conhecimentos de medicina; logo, todos devem saber o que é antijurídico, mesmo sem conhecer o Direito866.Assim, não se exige propriamente o conhecimento da norma que se transgride ou da punibilidade do fato. Não se trata do conhecimento jurídico, só possível a juristas, mas aquele contido no limite do profano, e que, em geral, todo homem formado dentro da nossa cultura será capaz de possuir em relação aos fatos puníveis867.

A experiência da vida social - remarca Nélson Hungria - faz com que o homem normal, ainda que analfabeto ou jamais tenha lido um exemplar de Código Penal, saiba o que é reprovado pela ordem jurídica, de forma a não ignorar o mínimo ético cuja transgressão constitui o ilícito penal868.

Gierke lembrou que na lei apenas se expressa o que já existe ou deve existir na consciência jurídica de cada indivíduo. Assim, adverte Hungria, consciência da injuridicidade, na contextura do dolo, é o juízo de valor pelo qual o agente reconhece na ação, que empreende, aquela mesma que a lei ou a opinio juris popular reprova como violação do dever de disciplina éticossocial869.

O dolo - assinalou Bianchedi - não está na intenção de ofender a lei ou, o que vem a ser o mesmo, de cometer um fato que se reconhece contrário a ela, mas na consciência de ofender um bem tutelado pela lei penal e, portanto, no conhecimento da contradição entre o próprio fato e o exigido pelo respeito ao direito subjetivo pertinente ao indivíduo ou à sociedade870.

Desta sorte, o conhecimento da antijuridicidade, haurido mediante a prévia representação mental dos fatos, significa a consciência da reprovabilidade, lesividade e nocividade do ato. Apercebe-se o agente, pela representação, que sua conduta contrasta com os parâmetros sociais idealmente estabelecidos e, por colocar-se desgarrada desses padrões éticos, por sua desarmonia com eles, incide na censurabilidade.

É por nascermos e vivermos em sociedade - pontua Magalhães Noronha - que cedo adquirimos essa consciência de agir no sentido do lícito ou permitido. Em regra, o crime, antes de se achar definido em lei, já é, para nós, ato nocivo e contrário aos interesses individual e coletivo871.

Esse o conhecimento da antijuridicidade: a percepção ou sensação - na esfera psicológica - do injusto, do recriminável e condenável, segundo os padrões éticos e sociais. É o que se denomina conhecimento do profano.

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Nessa conjuntura, é imprescindível que o sujeito ativo tenha reconhecido, perante o episódio, ou pelo menos tenha podido reconhecer, a ilicitude de seu comportamento. No primeiro caso, aponta Heleno Cláudio Fragoso, louvando-se em Maurach, o agente se põe deliberadamente em conflito com as exigências do ordenamento jurídico e, no segundo, revela, diante de tais exigências, reprovável indiferença872, de modo que, podendo o autor do fato conhecer a ilicitude de sua conduta, podia omiti-la (Welzel).

Não é necessário, enfatiza Anibal Bruno, que o indivíduo reprove o próprio ato, bastando que saiba que a consciência comum o reprova. Não é exigível, assim, um juízo de valor do sujeito sobre o seu comportamento, precedendo e justificando o juízo de valor da ordem jurídica. O criminoso, em geral, não desaprova o próprio ato, mas sabe ou deve saber que ele é desaprovável873.

Por conseguinte, não se requer o conhecimento efetivo da antijuridicidade, mas o conhecimento potencial.

A concepção do dolo, sem a consciência da ilicitude, além de estreita e limitada, é contrária aos fundamentos éticos do direito penal. Quem atua de boa-fé, pois acredita não estar em oposição à ordem jurídica, nada apresenta de reprovável em sua conduta. Nesse caso, diz Beling, renomado catedrático de Munique, só lhe pode ser censurada a inadvertência, o que não corresponde ao comportamento doloso, expressão máxima da culpabilidade874.

O dolo envolve na sua formação, portanto, um elemento cognitivo (conhecimento do fato e da sua antinomia com a ordem estabelecida) e um elemento volitivo (vontade de realizar o comportamento censurável).

Em suma: dolo é a vontade dirigida a determinado propósito, mas estruturada com a representação prévia dos fatos e o conhecimento da antijuridicidade pelo sujeito ativo. Daí afirmar-se que dolo é a vontade consciente e livre de praticar o delito. A consciência - assegura Magalhães Noronha - deve abranger não só a ação ou a omissão do agente, tal qual é caracterizada pela lei, mas deve igualmente compreender o resultado e o nexo causal entre este e a...

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