O Estado de negacao e o presente-futuro do antirracismo: Discursos oficiais sobre racismo, 'multirracialidade' e pobreza em Portugal (1985-2016)/The State of Denial and the present future of anti-racism: official discourses about racism, 'multiraciality' and poverty in Portugal (1985-2016).

AutorMaeso, Silvia Rodriguez
  1. Os casos de racismo sao pontuais? Por um arquivo do Estado de negacao (1)

    No dia 21 de Marco de 2015, no ambito da comemoracao do Dia Internacional de Luta pela Eliminacao da Discriminacao Racial--proclamado pela ONU em 1966--, a Comissao pela Igualdade e contra a Discriminacao Racial (CICDR) em Portugal, lancou a campanha Descobre a tua cor!, (2) destacada pela CICDR como a sua principal atividade nesse ano. (3) "Descobre a tua cor! " convidava usuarios da rede social Facebook a aceder a um website onde a sua "cor de pele" seria identificada com base numa foto que colocariam no referido site. (4) Para alem do mais, os/as participantes eram convidados/as a denunciar casos de racismo dos quais tivessem sido vitimas ou aos quais tivessem presenciado. Segundo o relatorio da Comissao, esta iniciativa "permitia a cada um conhecer o seu panton [cor pantone] e perceber a (in)significancia de tal detalhe na sua vida. Pretendeu sensibilizar-se a opiniao publica para a tematica da discriminacao racial" (CICIDR 2015, p. 5, grifo no original). Tres anos mais tarde, o Alto-Comissario para as Migracoes e Presidente da CICDR, Pedro Calado, afirmou, numa entrevista radiofonica, que

    os portugueses nao sao genericamente racistas. Mas, como todos os outros, temos preconceitos. Acho, ainda assim, que os casos que temos em Portugal sao pontuais. Nao temos no dia-a-dia, nas nossas ruas, nas nossas escolas, nas nossas cidades, fenomenos de tensao permanente e esse e um sinal que e importante sublinhar" (Lourenco; Cordeiro, 2018). (5) Calado respondia, assim, a uma questao sobre dois "epis?dios graves" de agressao perpetrados por forcas de seguranca no pais: i) o caso de uma mulher negra, de nacionalidade colombiana, agredida na cidade do Porto por um funcionario de uma empresa privada de seguranca, (6) ao servico da Sociedade de Transportes Coletivos do Porto; ii) a agressao a varios jovens negros por agentes da Policia da Seguranca Publica (PSP) num bairro da periferia e numa esquadra da Area Metropolitana de Lisboa, que resultou na acusacao de 17agentes pelo Ministerio Publico (MP). (7)

    A campanha publica da CICDR e as declaracoes do Alto-Comissario sao exemplos paradigmaticos da relacao entre uma compreensao eurocentrica de racismo, que e hegemonica (Cf. Hesse, 2004), e a banalidade dos diferentes regimes institucionalizados de negacao do racismo em Portugal, e em outros contextos (Cf. van Dijk 1993; Goldberg 2009; Maeso 2018). Neste cenario, o racismo e visto, sobretudo, como resultado de preconceitos individuais, efeito de crencas erradas/nao-cientificas sobre outros povos e pessoas e, mais especificamente, da crenca na existencia de racas (diferenciadas pela cor da pele), que nao representam a diversidade humana (visivel na cor da pele), mas sim hierarquias entre populacoes superiores e inferiores. Segundo esta abordagem, o Estado e as relacoes mais amplas de poder que regulam e se inscrevem, por exemplo, nas politicas publicas e na legislacao, nao sao consideradas responsaveis pela reproducao do racismo. Pelo contrario, sao consideradas instancias e mecanismos de protecao das vitimas de discriminacao racial. Assim, as campanhas de sensibilizacao sao vistas como boas praticas de combate ao racismo.

    Ha um argumento aparentemente contraditorio nesta compreensao de raca e de racismo: ainda que a raca seja declarada uma fantasia, uma crenca errada e, portanto, uma palavra a ser evitada ou ate proibida na recolha de dados e nos textos oficiais, (8) qualquer compreensao de raca para alem da diferenca corporal visivel e do universo das ideias fomentadas por "mentes racistas", e inviabilizada (Cf. Hesse 2007). Neste contexto, a nocao de raca e simultaneamente vetada e reificada. Este aparente paradoxo encontra-se enraizado na producao de imaginarios sobre Portugal, a nacao portuguesa, a sua historia e a sua composicao racial. Assim, o antirracismo aparece, como analisado por David T. Goldberg, "reduzido principalmente, substancialmente ou completamente ao antirracialismo. [...] o fim da raca substitui em graus variados o compromisso de--as lutas por--acabar com o racismo" (Goldberg, 2004, p. 211, traducao nossa; para o contexto portugues Cf. Sanches, 2012, p. 11-12).

    A partir desta constatacao, este artigo analisa a interrelacao entre a producao de imagens aparentemente contraditorias da nacao portuguesa (i.e. uma nacao homogenea atraves da miscigenacao) e a negacao do racismo por parte do Estado portugues, isto e, a repeticao da imagem de Portugal como uma pais nao-racista, mas sim tolerante. Esta analise centrar-se-a nos discursos de representantes oficiais do Estado portugues, em particular na esfera parlamentar, e em relatorios produzidos como justificacao do estado do (anti)rracismo em diversos contextos institucionais e no seguimento da assinatura de tratados internacionais, desde meados da decada de 1980. Considero estas narrativas como um arquivo da institucionalizacao do Estado de negacao do racismo--em cumplicidade com o trabalho academico--, em Portugal. Este Estado de negacao revelara nocoes hegemonicas sobre raca e racismo, assim como a legitimacao de interpretacoes sobre a situacao das populacoes racializadas em que o racismo e silenciado a favor de certas narrativas sobre "a pobreza", resultando numa pretensa abordagem "universalista" das politicas publicas. Nao obstante, estas narrativas tem sido desafiadas pelos movimentos antirracistas, que reclamam outro tipo de acao politica e tracam contranarrativas que nao so interpelam o Estado, mas tambem alguns setores da esquerda progressista.

    O artigo esta organizado em quarto seccoes. Uma primeira seccao oferece uma visao global das principais narrativas sobre o racismo em Portugal desde meados dos anos 1980, em discursos oficiais em torno de temas como a discriminacao racial, a extrema-direita e nos relatorios europeus. Em seguida identifico e analiso discursos sobre a nacao portuguesa--a sua configuracao historica, condicao multirracial/homogenea e nao-racista--em particular, a partir dos relatorios elaborados pelo Estado portugues para o Comite das Nacoes Unidas sobre a Eliminacao da Discriminacao Racial (CERD), e com especial atencao a sua conceptualizacao de "minorias" e "imigrantes". Neste contexto, debruco-me, em particular, sobre o debate em torno da condicao da populacao Roma (9) como "minoria etnica" nos relatorios do governo portugues elaborados no ambito do Comite Consultivo da Convencao Quadro para a Protecao das Minorias Nacionais. Na terceira seccao considero como um certo discurso sobre a "pobreza" e mobilizado para despolitizar o debate sobre racismo e racializacao no mercado de trabalho, bem como a concecao de "trabalhador" e "classe trabalhadora", com especial atencao ao racismo anti-negro. Concluo com algumas reflexoes sobre os horizontes politicos do antirracismo no contexto portugues e europeu mais alargado, que deve questionar o poder branco e reconsiderar a relacao ente raca, classe e nacao como parte da formacao/reproducao racializada da soberania.

  2. Portugal nao e um pais racista? Legislar, inquirir e informar sobre o estado do racismo

    A 12 de junho de 1985, Portugal formalizou a sua adesao a Comunidade Economica Europeia (CEE), num periodo crucial para os debates sobre racismo, imigracao e a possibilidade de uma legislacao antidiscriminacao no contexto europeu. Em dezembro desse ano, foi apresentado o relatorio com o resultado dos trabalhos da Comissao de inquerito sobre a escalada do fascismo e do racismo na Europa--conhecido como o Relatorio Evrigenis (10)--e em 1991, o relatorio com as conclusoes da Comissao de Inquerito sobre o Racismo e a Xenofobia--conhecido como o Relatorio Ford--, sendo ambos trabalhos comissionados pelo Parlamento Europeu. Os dois relatorios afirmavam que o voto na extrema-direita em processos eleitorais era diminuto em Portugal (11) depois da Revolucao de 1974 (Evrigenis, 1985, p. 58, par. 166; Ford, 1991, p. 36). Nao obstante, no Relatorio Ford (12) era assinalado que "[h]a, contudo, muitos residentes portugueses de origem ou descendencia africana ou chinesa que tem constituido o alvo da propaganda racista e da violencia de grupos politicos marginais e desordeiros nao organizados, nomeadamente de > que professam o nazismo." (Ford, 1991, p. 38). Era tambem apontada a resposta de representantes da populacao negra no pais:

    A violencia dos > constitui um problema tao serio para a comunidade negra que dois dos seus representantes encontraram-se com o ministro do Interior, em 16 de Janeiro de 1990, para decidir a criacao de uma comissao com o objectivo de controlar e estudar a situacao vivida pelas minorias etnicas em Portugal. Sera composta por funcionarios do Ministerio do Interior, da policia judiciaria e da guarda fiscal, bem como por representantes das associacoes representativas dos cabo-verdianos e guineenses (Ibid., 76). Neste relatorio, o lugar do racismo no pais e explicado em relacao ao "passado colonial" de duas maneiras. Em primeiro lugar, considera que "apesar de os portugueses serem conhecidos pela sua heranca etnica e cultural mista, de terem sido muito permeaveis a casamentos mistos onde quer que estabelecessem colonias ou territorios ultramarinos em seculos passados, [...] seria errado partir do principio que o pais goza de harmonia racial", afirmando qua a probabilidade de ser vitima de "discriminacao ou rejeicao racial" depende do grau de negritude: "uma pessoa filha de um ascendente negro e mais aceitavel do que aquela que tem os dois ascendentes negros" (Ibid., p.7576, grifo da autora). Em segundo lugar, ao fazer referencia a incidentes de brutalidade policial, afirma que "os oficiais da policia mais racistas sao os que combateram na guerra colonial" (Ibid., 76). Ademais, sao feitas alusoes a "certas formas de rejeicao por parte da sociedade portuguesa" sofridas pelos imigrantes de origem africana, por exemplo no aceso a moradia: "muitos senhorios recusam-se a alugar apartamentos a...

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